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MARIA ESTELA GUEDES
Herberto Helder, Poeta Obscuro
Maria Estela Guedes
Herbert
o Helder: Poeta Obscuro.
Moraes Editores, Lisboa, 242 pp.
1ª edição (esgotada), 1979. Edição on-line : Agosto de 2002.

I V- OS PASSOS EM VOLTA 
4. O futuro anterior

 

Em «Descobrimento» o poeta caminha em frente e vem ter sempre ao ponto de partida, pois a rua é circular. Regressa ao princípio, mas nunca atinge, na verdade, a origem (no continuum espaço-tempo não há princípio nem fim, tudo é simultâneo). Ao regressar a casa, em «Trezentos e sessenta graus», o viajante atinge o vazio da vida eternamente cristalizada em gestos mecânicos.

O texto dirige-se para a criação e esta, sim, representa o lugar absoluto que no futuro se pretende tocar. Porém, este lugar no futuro é de facto anterior:

«Dizem que Goethe escreveu várias vezes alguns dos seus melhores poemas. Leonardo era mortalmente paciente em frente das cores. E que sabemos dos outros, dos mais antigos ? Tudo é eternamente recomeçado. Não se sabe o que acharam. Acharam alguma coisa, os antigos, os modernos ?»

O descobrimento incide em tempo anterior relativamente ao acontecimento, e em tempo posterior relativamente ao viajante. Mas de que natureza é - foi, será - o acontecimento ? Que coisa foi ou será descoberta no regresso, ou que espécie de descobrimento corresponde ao próprio regresso ?

Julgo que ao sair de casa já o poeta está na posse do seu estilo, razão pela qual esse texto abre o livro, quando também poderia fechá-lo. Vem no início para poder coincidir com «Trezentos e sessenta graus», assegurando a «Os Passos em volta» a estrutura zodiacal. No último conto não só a parábola do regresso aponta a circularidade do percurso poético, como pequenos motivos habitantes da casa antiga dos pais, sobretudo a mesa oval. De pais para filhos a vida transmite-se, e transmite-se o envelhecimento, do mesmo modo que o pessegueiro dá frutos e se alimenta de matéria em decomposição; subjacente à renovação cíclica, a pêndula dá horas, muitas. O viajante chega a casa, voltando da viagem e do quarto estrangeiro onde ia morrendo de fome e de solidão, para reencontrar a eterna velhice da mãe, com o súbito descobrimento do seu próprio envelhecimento: mais que cíclica, a vida é círculo vicioso. Contra a casa doméstica e podridão dos bordados iniciados nas origens da vida, só a casa poética pode erguer-se como pilar de salvação. E neste conto o poeta ensina o que representa a casa :

«A casa é o poema onde as palavras se motivam e desenvolvem por si próprias, e as metáforas se geram como significações da própria carne, do espírito. (...) Assim se perde toda uma vida, ou só ela serviu para este ganho obscuro: a pureza adquirida na vã dispersão, o amor reajustando a sua dignidade a um imaginável centro da vida, como um ramo caído que se recompusesse no tronco originário.»

O poema revela-se o centro do mundo, eixo religador da casa poética à casa primordial: entre os dois espaços, o poeta move-se em eterna circum-ambulação. Já o mesmo sucedera com a organização dos poemas dentro de «Cobra», com a posição não final do texto «Cólofon», e temática do movimento zodiacal. O poeta tende a organizar livros e textos segundo esta arquitectura, tanto do ponto de vista técnico, como da expressão das suas angústias.

Ao sair de casa o viajante não sabe estar já na posse do seu estilo. A grande descoberta consiste em verificar, posteriormente, que tudo quanto havia para saber já de início estava sabido. Por isso o futuro será sempre anterior: quanto mais o poeta caminha no devir tanto mais se aproxima daquele anterior anterior a tudo, daquele princípio situado antes ainda de «O Coelacanto» (literalmente, o conto narra a fascinação do biólogo-amador pela possibilidade de encontrar exemplar de espécie tão remota), peixe cuja origem se perde a mais de trezentos milhões de anos de distância de nós.

Eterno retorno, com implícita subversão do tempo histórico (subvertido igualmente em «Teorema»), será por consequência o nome deste movimento cíclico visando situar-nos na utopia e ucronia da força e pureza absolutas daquela criação realmente primeira, por ser anterior a cronos. A utopia herbertiana, se pode antever em algumas circunstâncias um futuro redutivel a presente, é estruturalmente a utopia do anterior, da Palavra enquanto gesto fundador ab initio. Se Goethe escreveu várias vezes o mesmo poema, foi porque concluiu não corresponder o primeiro da série à criação original absoluta. Por isso lhe foi necessário progredir retroactivamente a antes desse primeiro poema. E todo o avanço e apuramento posteriores será um incessante vir mais longe no anterior de quanto foi feito. Toda a real descoberta está nas origens, e só nisso poetas e cientistas estão de acordo, mais não tendo feito do que procurar de desvairadas maneiras descobrir a chave do mesmo segredo.

«Teorema» regressa falsamente à Idade Média, «O Coelacanto» representa da maneira mais nítida o movimento circular ao tempo das origens, com o biólogo apaixonado pelo segredo da vida. Mas não é um verdadeiro ictiologista, tão-só amador; o cientista de facto inscreveria o princípio na História, o ictiologista-poeta age contra a História, contra o profano, e quer e não quer simultaneamente chegar onde deseja: quer saber, mas sabe que se soubesse nada mais seria possível saber, esperá-lo-ia a morte. No mundo da razão, o poeta, mesmo ateu, exprime o homem puro desejo, o homem religioso por excelência, opondo-se a quanto seja profano, religião inclusa, quando esta se insere na História sob a forma de instituição. Eis a razão do ictiologista em «O Coelacanto» : burocrata cumpridor das leis até que um dia a paixão pela descoberta das origens o leva a voltar costas à realidade «pequeninamente redonda» da sua existência, e a mover-se para o mundo da verdade, da poesia. Contra a cidade sobrevivendo - sobrevivente - na sua morna pasmaceira, calculada e pendulada maquinalmente, ergue-se a comunidade dos loucos ictiologistas, que mais não são do que a bárbara população que aplaude o sacrifício de sangue em «Teorema» :

«A inverosímil loucura dos ictiologistas ia e vinha pela cidade, realizava os seus círculos apaixonados e estéreis, entre as dignidades da ordem. Apareceram fulgurantes monografias que descreviam o peixe fabuloso, peixe com trezentos milhões de anos de existência, a sua cabeça monstruosa, as escamas ósseas, as barbatanas selvagens. Amor - eis a palavra. O puro amor dos ictiologistas. Contudo, a cidade era incorruptível. As repartições funcionavam, os bancos funcionavam, os ministérios funcionavam, os comboios funcionavam, o trânsito funcionava, os bombeiros funcionavam, a polícia funcionava. Tudo funcionava regularmente. Mas os ictiologistas executavam gestos excessivos. Proferiam palavras absurdamente luminosas. Escreviam monografias onde a paixão interna corrompia a objectividade, o que era admirável de ver-se numa cidade tão certa como a nossa. »

Eis pois: corromper o tempo da História significa recuperar o não-tempo da infância primordial, a Utopia. KZ, a personagem central de «O Coelacanto», desvia-se das normas burocráticas e policiais da polis, formas como quaisquer outras de degradar a vida: menosprezar a pessoa humana para apenas ter em conta as relações ordeiras de cidadão para cidadão, de cidadão para autoridade. À ordem e à produção de bens de consumo os ictiologistas opõem a desordem da paixão, os seus passos em volta do nada que é tudo, esterilmente : o círculo corrompe, ou tenta corromper, a linearidade diacrónica do tempo histórico; o círculo é síncrono, na paixão simultânea da origem do coelacanto, inominável coisa com suas barbatanas selvagens, coisa fabulosa. E porque fabulosa, nunca as monografias poderão ser objectivas, produtoras ou reprodutoras de matéria; terão de ser estéreis, inúteis como os poemas, pois a escrita dos ictiologistas tem exactamente a natureza da poesia. A inutilidade poética vai contra o utilitarismo do trânsito, das repartições, dos ministérios, dos bancos, da polícia, dos bombeiros, por se situar no plano do desejo e da fruição. Note-se como os bombeiros, por exemplo, vão hostilizar as palavras luminosas dos ictiologistas: onde se viu poeta que amasse os bombeiros, esses destruidores do fogo ? 0 fogo representa a paixão dos ictiologistas pelo conhecimento da verdade fundamental.

KZ abandona tudo para ir à caça do coelacanto. Um voltar costas à realidade citadina, apresentando-se como a mais feroz das críticas e o maior dos desprezos relativamente à realidade desumanizadora do tempo histórico. Que dá o amante em «Teorema» ? Dá o que tem de mais puro: o mito, aquilo que de geração em geração se transmite, por ser eterno: nem passado, nem presente, nem futuro: a vida simultânea, o amor do amor.

«Tudo é eternamente recomeçado», diz-se em «Descobrimento». Será legitimo perguntar, então, se antigos ou modernos descobriram alguma coisa. Será KZ capaz de encontrar o seu peixe fabuloso ? Para se descobrir o objecto da caça seria talvez necessário que inquiridor e objecto inquirido se situassem no mesmo plano, e não em mundos paralelos, dificilmente comunicáveis. Mas se a algum foi possível transitar para lá, não pode sabê-Io quem aqui está.

Penso que a dramática inquirição das origens mascara um tanto a ignorância do que será o fim : inquirir do principio da vida é a metáfora da inquirição da morte. Não sabendo isso, nunca saberemos nada. E não o sabemos; nem a ciência nem a metafísica têm a tal respeito a menor certeza certa. A ignorância do homem é tão grande como o seu grande saber de nada. Eis a experiência que o poeta alcançou das suas viagens, a sua esmagadora sabedoria. Provavelmente, o único limiar possível para essa Utopia estará na divisão não assoalhada da casa construída à beira do oceano. Seria (será) trágico que, chegados a ponto tão extremo, mais não lográssemos que um inominável buraco negro, o sem sentido do finito. Chegando aqui o logos, é necessário e urgente situar o reino de Utopia na carta dos homens, de outro modo o percurso da idade carecerá completamente de razão de ser. Também por isso se regressa sempre ao ponto de partida, discorrendo agora noutra direcção.

 




 




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