No último texto, a função narrativa de base é o regresso. Nele se faz, com alguma ironia, a alusão ao relato bíblico do filho pródigo. Pródigo mas não prófugo, neste sentido: o poeta nunca fugirá de si, acabará sim por fugir de outros. Começa por se dar (nada tendo, resultando assim o acto na mais absoluta das dádivas), dissipando os seus bens, como acontece na parábola. A doação de si aparece em quase todos os textos herbertianos, desde «O amor em visita» (2), dos mais antigos -
«E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.»
- até aos mais recentes. Em Os Passos em volta, de forma muito directa (embora o texto seja dos mais obscuros e complicados), no conto «Aquele que dá a vida» ; de forma muito indirecta em «Coisas eléctricas na Escócia» (cuja arquitectura narrativa, do tipo reportagem, se mostra simplicíssima; o estilo 'noticioso' surge algumas vezes, encontramo-lo em «Retrato em movimento», por exemplo). A dádiva não é bem recebida porque, tratando-se de um excesso, traz a marca do excepcional. Nas sociedades bem regulamentadas e policiadas, o excepcional tende a ser considerado anormal, sendo por isso susceptível de marginalização punitiva.
Em «Teorema» encontramos o típico caso de doação e de doador, ou seja, a poesia e o poeta, exactamente como se verifica no fragmento citado de «O amor em visita» : a invenção cria o que se não tem, vir a tê-lo significa ter excesso. Na medida em que esse excesso se oferece a outrem, bem vemos que o poeta dá o que não tem. Mas importará talvez mais notar a razão e a natureza da dádiva: a paisagem regressa ao ventre, a mãe gela, significando isto o tempo da escassez, da esterilidade; o poeta cria a natureza exuberante do poema para responder com excesso à avareza da terra. A Natureza criada poeticamente só pode ter natureza imaginária: a música, a loucura, o mar. Três oferendas que representam a poesia em plenitude, o mais dadivoso gesto de amor: dar poesia à terra revela a mesma grandeza da terra quando dá os seus frutos ao poeta e à poesia. No campo da escrita poética o amador mostra-se capaz da mais absoluta das doações, porque dá justamente o que nele fal(t)a. Entenda-se o poeta como ser em necessidade; no fundo, a palavra poética exprime a carência, por isso apenas pode ser doada em fal(t)a: a fala presentifica a falta do objecto referido pelo desejo.
No conto «O grito», retrato da falta expressa, toda a carência se volve excesso no grito: por cumular em absoluto a totalidade das palavras em falta, impossíveis, transforma-se na doação mais pura, a doação efectiva em poder de comunicação. O grito não só dispensa a informação, como se sobrecarrega de potencial emotivo: o homem que grita consegue fazer chegar o apelo de liberdade a toda a prisão, consegue agir emocionalmente e de forma duradoura sobre quem à distância o sente e escuta :
«Um empregado de escritório está metido numa cela por suspeitas políticas. ( ...) Serenidade por toda a parte. Serenidade cósmica, individual e prisional. Fora o rato, que trabalhava no escuro da serenidade. E então acordo. Não acordo como se o rato estivesse a roer. Acordo por explosão. É um grito. Depois, vários ruídos. Um rumor espalhado, no meio do qual esse grito permanece - alto, material como uma agulha de gelo. Uma coisa impossivelmente terrífica e humana.»
Não se trata de exprimir por palavras, trata-se de enviar uma comunicação com grau elevado de informação, em contacto directo (corpo-a-corpo, donde a reacção do preso que ouve o grito terá de ser fisiológica: «Então começo a sentir uma dor na barriga e tenho de ir defecar.»), através de algo que, não sendo propriamente conjunto de signos, concentra em si a totalidade do sentido do humano. Neste conto, como em bastantes outros textos, o mais fundo sentido do humano será o pavor :
«Claro que nunca mais dormi. Espero os gritos. Espero-os todas as noites. Fico deitado na tarimba, tiritando. Estou vazio. O meu desespero é este vazio completo, estranha forma de terror que nunca mais deixarei de sentir.»
Desta maneira, o grito vai encontrar-se com o seu antónimo: o silêncio. Da homologação de ambos nasce o objecto desejado por todos os poetas: a poesia sem palavras, ou a palavra que encerra toda a poesia. Sendo a poesia o grito em silêncio, ou, se quisermos, o silêncio gritante, ela terá de assumir o carácter trágico que envolve este conto, um dos que melhor evidenciam a presença do locus clausus : a cidade policiada enquanto sistema fechado, a prisão, a cela, o locus clausus interior onde se trava a batalha contra o terror.
Como observei anteriormente, este conto funciona em sobreimpressão de imagens; recorda-se a estadia na cadeia no momento em que o poeta narra, no presente, a visita a um bar: a embriaguez (do mesmo modo que em «Brandy») e a relação com a prostituta do vestido vermelho representam a tentativa de alienação do grito (a recusa do estatuto), modo de escapar pelo 'adormecimento' ao pânico interior. Beber para dormir, ou beber para sonhar: actividades nocturna e onírica equivalentes do erotismo e da poesia quando se opõem à actividade diurna estatuída, à degradação.
Voltando a «Teorema», o conto começa por evidenciar o desinteresse de Herberto Helder pela história do assassínio de Inês de Castro, e o seu maior interesse pelo que aconteceu posteriormente. Neste aspecto, verifica-se flagrante diferença entre esta narrativa e outras que trataram o mesmo tema: os tempos importantes da história de Pedro e Inês são diversos em Herberto Helder e Garcia de Resende, António Ferreira ou Camões, por exemplo. Isto sucede porque importa sobretudo a identificação do poeta com o assassino, a reversibilidade posterior dos acontecimentos. Em «Teorema», a personagem central não é Inês de Castro, sim Coelho. Tal facto altera imediatamente os dados do problema, visto que não se trata tanto de nova versão da história, mas de perspectivação pessoal do mito. O poeta reactualiza algo situado fora do tempo e do espaço, vive o drama segundo a relação psíquica estabelecida com a personagem semelhante a si. O seu duplo é Coelho.
«Teorema» evidencia de maneira subtil a vivência da poesia em termos alimentares e corporais: o poeta cria, mas acaba por ser destruído pela própria criação, a sua criatura. Naturalmente, só podemos pro-criar a partir do corpo, o qual na nova criatura se perde de nós: procriar implica morrer um pouco, amar é ir morrendo. Por isso o poeta nunca se assume como pai, sempre como mãe; não apenas cria, mas procria. Este aspecto é extremamente original, talvez relacionado involuntariamente com o horror do poeta a toda a prepotência, em geral expressa pela autoridade paterna, quer dizer, tem o emblema mais óbvio naquilo a que usualmente se chama a pátria. Na obra herbertiana não há pátrias nem países, há somente mátrias e maíses, a carta poética pela qual se vai dando a vida, à qual se vai dando o corpo. Estranho mas pungente, o assumir-se como mãe nota-se em muitos textos, e já lhe fiz referência casual. Insistindo, por me parecer das maiores singularidades da obra, o filho assume a dimensão materna (por essa razão, em «A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe -» (29), muito estranhamente a mãe aparece associada ao enxofre, quando logicamente deveria ser expressa só pelo mercúrio; porque a mãe, aí, também é filho, e porque o filho se junta à mater - matéria-prima -, temos a mater na forma da rebis), gerando a mãe nas próprias entranhas, como sucede em «Fonte» (14) :
«..............................E as mães
aproximam-se, soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.»
O poeta é mãe e genitora tanto de sua mãe como do seu filho. Note-se a homologação de procriado a canto n'«As musas cegas» (8) , com a descrição do parto oral. Já me referi inicialmente a esta série de poemas, quando afirmei partirem eles de factos que se percebe terem sido vividos na realidade concreta e, no caso presente, do nascimento de uma criança. Porém, como sucede normalmente, o facto original vai-se diluindo em progressiva metaforização que o transforma em puro imaginário, em real. Transcrevo fragmentos muito semelhantes ao anterior, que evidenciam a situação procriadora do poeta, apenas, neste caso, dando à luz o filho cantante, em vez da mater cantante :
«Essa criança tem boca, há tantas finas raizes
que sobem do meu sangue. Um novo instrumento,
uma taça situou-se na terra, e há tantas
finas raizes que sobem do meu sangue.»
(...)
«Mas é tão belo uma criança ainda enevoada,
uma criança que ascende como uma
grande música
desta rede de ossos, deste espinho do sexo»
(...)
«Essa criança tem os pés na minha boca
dolorosa.» (8)
A mãe e o filho ascendem pelo arbusto de sangue, pelo arbusto de cálcio, até se sentarem no arbusto de mel da cabeça filial, que o mesmo será dizer, na cabeça maternal. Ambos irrompem do interior do corpo do poeta obscuro. Mas do mesmo modo que o verdadeiro filho destrói a mãe, e esta mais não pode gerar além do «cadáver adiado», assim poeta e poesia se criam na destruição; o poeta devora a poesia, a poesia devora o poeta: impossível separar ambos, pois se confundem no mesmíssimo poema-corpo. Em «E outros exemplos» (13), algumas imagens exprimem bem a agressividade e poder devorador da mater cantante:
«Esta é a mãe central com os dedos luzindo,
sentada branca sob a cúpula da cabeça truculenta, enquanto
as ressacas do sanguecantam nas cavernas ;
este é o pólipo vivo agarrado ao meu peito como um mamilo
nas massas tecidas
sobre o coração»
Note-se a estreita comunhão das duas carnes, a truculência da mater, idêntica à truculência do canto e da criança de «Cobra». Note-se ainda a interiorização da mãe no sangue do poeta, e os seus «dedos luzindo» : o corpo tem sempre luminosidade, não que a pele disponha de cromatóforos - ela apenas funciona em termos de quebra-luz -, mas porque essa espécie de cromatóforos se localiza nas vísceras: trata-se do canto, da música, ascendendo da rede de ossos à cabeça, e transmitindo-se daí à garganta, quer dizer, aos dedos que escrevem.
A mãe vai também assumir a significação alimentar de «A colher na boca» (17), entendida como a poesia: «Ou porque a colher / pode ligar a terra à violência do espírito» (12). A terra alimenta-se de morte. Por isso há crimes, antropofagias, assassínios na obra do autor; leia-se em «As maneiras» (32) :
«Mes mots sont des crimes - disse o jovem suicida Jean-Pierre Duprey .
Mes mains sont des crimes - digo eu.
Mes mains et mes sculptures sont des crimes - diria o escultor»
A mãe só pode gerar a morte, embora mãe e filho constituam a rebis de que pode nascer a pedra filosofal com seu poder de imortalidade, tal podendo ler-se n'«A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe -» (29) .
Não fugi a «Teorema», era importante mostrar como a mãe pode ser o filho e vice-versa, como o crime lhes mora perto, e recordar que a antropofagia poética é algo de essencial na obra do autor. Em «Teorema» estes dados condensam-se, sendo fundamental entender que o poeta não reescreve uma história relatada pela História, mas escreve a sua História do mito, o alimento espiritual por excelência. Tal narrativa equivale a cometer um crime, por subverter radicalmente o estatuto: o sistema social não consente aos cidadãos fundarem-se nas verdades situadas fora da verdade concreta das relações de trabalho e de produção. No investimento poético não se produz objecto material comerciável, antes se destrói tal produto, criando-se em termos puramente de sangue e desejo.
Em «Teorema», a mãe vai matar. Ela projecta-se em Coelho, o poeta. Declina-se a responsabilidade da narrativa na boca de quem está a ser executado, a narração vai-se fazendo ao longo da execução e após ela. Quem fala morrendo e morre falando é Coelho, executado por ter morto para salvar o amor, ou seja, a história, a verdade do mito alimentadora da população: «O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração para geração.»
Transporta-se a narrativa para a actualidade, sendo feita em directo do lugar: do centro do mundo, da praça, neste caso a praceta Sá da Bandeira, em Santarém. Do mesmo modo que em «Aquele que dá a vida», o plano cinematográfico da execução corresponde a pequena festa dos homens. Qualquer festa implica a violação da ordem, a ruptura brutal com a norma, portanto não existe sem violência.
A narrativa nada tem em comum com a versão de Garcia de Resende ou outras : narra-se o depois da história (Inês aparece apenas como figurante referida), além de que o fundamento histórico do incidente serve só de pretexto para uma reflexão sobre a natureza antropofágica da poesia e do poeta, e correlata necessidade de saber. Querer saber significa ter fome de conhecimento, o poeta pode trazer o acréscimo de conhecimento. Por esse motivo n'«O Poema» (12) aparece a afirmação: «poema, substância de Deus servida / como ceia», a qual se prende à área de significação antropofágica. Os homens não podem viver sem histórias, sem mitos, sem qualquer espécie de objectos ou imagens sobre os quais possam projectar-se, com os quais possam identificar-se. Há necessidade de se alimentar imaginariamente, pondo a colher na boca cheia de narrações. O homem precisa de ligar a terra à violência do espírito (12) .
Os ouvidores de mitos, ouvidores da palavra poética, sentem necessidade de se salvar da alienação da sua existência insignificante e inútil. O fundamento das religiões é bem capaz de ser esse, o mito aguenta o homem de pé. Não será por acaso que os rituais mais fundamente significativos de qualquer religião passam pela antropofagia, quero dizer, pela comunhão de poderes, e pela identificação com o outro. De resto, nos 'mitos' profanos bem se vê não existir plataforma de entendimento alcançado sem antes se ter passado pelo contexto político do banquete, da participação do mesmo vinho e mesmo pão. Finalmente, qualquer reunião social (até um funeral) passa pela refeição comunitária, a profanização da antropofagia ritual. E esta resulta provavelmente da necessidade de cumular a falta, a ancestral impotência do homem para atingir a saciedade absoluta da sua fome espiritual de saber, ou seja, de amor. E voltamos sempre ao primitivo ponto de partida com a conjugação do verbo amar-matar. Pois saciar seria matar a sede.
A historicidade do tema de Inês de Castro não tem importância nenhuma em «Teorema» ; onde figuram Pedro e Inês poderiam figurar Tristão e Isolda, Orfeu e Eurídice, Romeu e Julieta, ou Simão e Teresa. Importa no conto devorar para criar algo que subsista como alimento dos homens e do próprio genitor: de facto, se Inês não tivesse desaparecido, o amor não poderia ter sido salvo. A história de amor vive do crime e do sangue. Não desaparecendo um ou os dois do par, a história deixa de ter sentido, não merece ser narrada. Herberto Helder não narra todos os aspectos da realidade, apenas o que na realidade se mostra incomum e marginal. Por isso será escusado procurar na sua obra discursos de amor doméstico ou domesticado; o amor não se inscreve no estatuto. A vida familiar decorrente do casamento ou de contrato afim não existe na obra, justamente por ser suporte da estrutura social. Na obra só encontramos situações eróticas marginais e corruptoras da moral instituída.
O poeta é animal carnívoro, no sentido em que as suas narrações são trágicas, violentas, sagradas: o narrado tem sempre na base as pulsões mais arcaicas do inconsciente, exprimindo-se por impulsos de agressão e de devoração do outro, como forma primordial de comunhão estreita de poderes. Não há grande diferença de conteúdo entre os textos do autor e os dos livros sagrados, ou das literaturas parareligiosas da mais remota idade. Nesse aspecto «O bebedor nocturno» (22) oferece ao leitor informações preciosas sobre as tendências de HH, poeta obscuro em muitos sentidos. Com a diferença, porém, de que o autor tem conhecimento da natureza arquetípica das suas efabulações. É ele próprio quem, no livro Apresentação do rosto (24), analisa o complexo edipiano, estabelecendo a sua relação com a hierogamia. Desmistifica o complexo de Édipo, reduzindo-o a algo que me parece também muito correcto: a ligação à mãe não seria senão a pulsão para a morte, para a autodestruição. Suicídio não é palavra rara na obra. Querer casar com a mãe, quer dizer, com a Tellus Mater, significa desejar regressar a ela, morrer. E de novo o amor se confunde com a morte e crime.
Em «Teorema» a situação amorosa assume-se enquanto acontecimento trágico, mortal, donde os vários tipos de violência e violentação a ela associados. Digamos que o amor, significando a relação sentimental entre pessoas, não existe tematicamente na obra do autor: quando parece existir, só existe como metáfora, apontando outra relação sempre erótica e vivida em paixão, embora não sentimental. De outro modo, o amor é algo de tão vago e expansivo que quase perde o sentido usual. Não tem grande sentido falar de amor relativamente a estes textos, simplesmente não há modo de escapar à incorrecção, por falta de outro termo, e porque, indiscutivelmente, raros são os textos de Herberto Helder não eróticos ou não erotizados. É curioso verificar como Ruy Belo (vide nota bibliográfica) se deu conta deste quase paradoxo, de ser e não ser simultaneamente Herberto Helder um poeta de amor. Ora, nos textos, amor só há este, podendo embora partir de relação amorosa concreta: ««o centro» essa paixão da unidade / «o compacto discurso» das trevas ou da luz» (31) .
Quando no capítulo inicial se referiram as musas cegas (8), e se enumeraram de acordo com os pontos de partida dessa série de oito poemas, visava-se sobretudo explicar que há sempre uma realidade concreta qualquer donde parte o poeta. Simplesmente, e só por isso Herberto Helder não é escritor realista, os dados do quotidiano são poeticamente seleccionados e superados, de modo que o poema acaba por se instalar no imaginário. O imaginário significa o mundo de outro desejo, a pura Utopia. Utopia entendida à maneira de Roland Barthes, quando afirma ser a literatura a utopia na linguagem. Assim sendo, tal utopia nunca tem hipótese de se degradar em tempo e lugar, porque o mundo profetizado não pode tornar-se presente: será sempre poesia, expressão de desejo sem resposta, por isso eterna utopia, a única a merecer tal nome: só ela se identifica inteiramente com o espaço de Deus. Mas não daquele Deus presente em «Teorema», pois esse pertence à instituição católica, a qual para ali não é chamada: a comunidade poética está contra o Deus cristão.
O modo como o poeta agarra o tema de Inês de Castro decorre por conseguinte da sua própria visão do amor, indissociável do «compacto discurso» poético e, também, da natureza da sua escrita poética, algo que envolve da maneira mais pungente a totalidade das energias corporais, intelectuais e psíquicas. Entrega-se sem reservas ao poema, numa aventura onde mergulha a completude do ser. E por se tratar de «oficina» viva e vital, o leitor a sente em vertigem e arrebatamento: o leitor envolve-se de maneira profunda com os poemas por libertarem energias emocionais muito sentidas e reais. Mas por ser a mais profunda experiência na vida do poeta, a poesia acarreta riscos, e muito concretamente o risco da loucura : e é aqui que mais se entende o sentido das antropofagias (31) .De resto, OPEV evidencia de maneira clara o percurso poético enquanto existência de fome, dor e miséria, contrapontos dramáticos para a alegria do canto.
O pacto estabelecido entre Coelho e Inês (carrasco/amador vs vitima/coisa amada; passagem de amador a coisa amada quando o assassino se transforma em assassinado), a identificação seguinte entre Coelho e Pedro (através da antropofagia ritual, que em nenhum outro texto do autor assume carácter de tanta evidência; penso, mesmo, ter sido a presença deste episódio o que levou Herberto Helder a glosar o tema), resultam em apenas uma unidade de significação, fundamental para a compreensão do erotismo na obra: o amor é um crime, amor e conhecimento reduzem-se ao mesmo, dentro e através da poesia. Por esta razão se poderá afirmar, em «Estúdio» (40), que «o amor é subversivo». O amor só pode ser subversivo quando se situa fora de esquemas domésticos e domesticáveis. A casa (note-se como a partir do momento em que HH estabelece a analogia entre casa, corpo e texto poético a palavra passa a ser assimilada pela literatura portuguesa contemporânea com as três significações) herbertiana é grande e múltipla, mas nada tem de comum com a domus, domus nostra. Trata-se de lugar habitado por um só, um contra todos, como se lê em «Holanda». O grande amor, em «Teorema», não será portanto o de Inês por Pedro ou vice-versa; ele pertence a Coelho, é a escrita do que maquinou e a comunidade criminal que fundou. Por isso a população excitada por esse carnevale aplaude a pequena festa dos homens frente à Barbearia do Vidigal (senhor que, nos tempos de D. Pedro, teria também lidado de perto com o sangue, fazendo sangrias) : o grande gozo vem da história legada e representada teatralmente por Coelho, o sangue por ele doado aos homens.
«Teorema» relaciona-se de perto com «Holanda». Neste conto, o poeta está isolado numa comunidade ignorante dos poderes do fogo, fundada nas leis da razão, do senso comum, e da domesticidade. O poeta é o único representante da raça dos homens loucos, num mundo avesso às razões espirituais, embora espirituais em sentido 'demoníaco', bem expresso pelo anjo das trevas. O poeta recebe a visita do Demónio, Demónio que se passeia do poeta para os holandeses, porque a inocência do poeta lhe não permite destrinçar quais são mais diabólicos: se poetas, se holandeses. Todo o peso do concreto e do bom-senso vai ser expresso pelas vacas e produtos alimentares delas derivados, em referência directa à ausência de desejo de alimentação intelectual por parte da comunidade :
«Na Holanda não se fazem fogueiras ao ar livre. Nada se percebe do fogo. A Holanda é um país cada vez maior. O mar rouba-lhe meio metro, e logo os holandeses roubam dois metros de terra ao seio fervente das águas.
- Não compreendo a justiça cósmica.
E murmura para si: Nada sabem das coisas do fogo. Os dons mais profundos do homem murcham dentro deles. Deverei amá-Ios?»
Que busca o poeta na Holanda ? Busca o mesmo que por todos os lugares da Europa: o amor, justamente o amor subversivo, fundado no conhecimento, por isso no manuseio dos metais e do fogo :
«Eu preciso de amor. Preciso de aprender. Mas parece que na comunidade já tudo se aprendera, e tudo estava ensinado e sabido desde sempre. Depois, os homens preocupavam-se extremamente com preservar-se do sofrimento, e desejavam indemne toda a sua linguagem.»
Ao contrário da comunidade holandesa, estagnada na ignorância dos «dons mais profundos do homem», nada tendo por isso para ensinar, nem para amar, «Teorema» representa a comunidade experiente dos dons do fogo, devoradora do elemento ígneo. Se em «Holanda» tínhamos o poeta contra a comunidade fundada nas leis normais, em «Teorema» está presente a comunidade de poetas, fundada nas leis da poesia, contra um só representante do senso comum, a rainha :
«Ah, não tenho medo. Sei que vou para o inferno, visto que sou um assassino e o meu país é católico. Matei por amor do amor - e isso é do espírito demoníaco. O rei e a amante também são criaturas infernais. Só a mulher do rei, D. Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha.»
Raça infernal, demoníaca, porque fundada nas verdades poéticas, que são, basicamente, a comunhão do sangue e devoração do fogo:
«- Só o coração - diz. E levanta de novo o meu coração, e depois trinca-o ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão, e encomenda-me a alma ao Diabo. Eu gostaria de poder agradecer a este meu povo bárbaro e puro as suas boas palavras violentas.»
Eis porque falo de carnaval, associando-lhe a antropofagia. Eis também o motivo por que é sempre corpo o poema escrito com o próprio sangue.
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