FRAGMENTOS DA TERRA
Ao Herberto Helder e ao Luís Carlos
Patraquim
Os meus mortos deram-me versos, assombros – um rio
acampado na memória.
(Os pássaros tomam o ar do seu canto – vento,
vento espantado.)
E se troveja,
cobrem-se de colchas e de toalhas os espelhos
da casa;
colocam-se três montículos de cinza fresca
nos cantos interiores das portas,
e um fio de sorte, em sal grosso, ao longo do
peitoril
das janelas voltadas a nascente – que se fecham,
flor do mato,
sem luz eléctrica nem água canalizada;
sem pára-raios.
Sem pára-raios,
desmembram os relâmpagos, faísca
sobre faísca,
as árvores antigas da terra – que rodeiam,
estremecem – amuleto e feitiço,
como se Deus se soletrasse
na pedra inaugural do meu rosto.
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VISGO SOBERANO
Eu sou as minhas mãos ─ o rosto,
esta voz ─ de ar e fogo,
líquida.
Sou a minha voz,
as minhas mãos ─ e o meu rosto:
todas as caligrafias ─ do alfabeto
à escrita,
a sua leitura ─
trespassando espaços, horizontes,
luas – visgo soberano,
a memória.
Zetho Cunha Gonçalves
In: Noite Vertical, Ed. Nóssomos, no prelo.
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Zetho Cunha Gonçalves nasceu na cidade do
Huambo, em Angola, em 1960. Poeta, ficcionista, autor de literatura
infanto-juvenil, antologiador, tradutor de poesia e organizador de
edições. Publicou, desde 1979, mais de 30 livros,
entre os quais se destacam, de
poesia, A palavra exuberante, 2004;
Sortilégios da terra: Canto de
narração e exemplo, 2007; Rio
sem margem: Poesia da tradição oral, 2011;
Terra: Sortilégios, 2013;
Noite vertical, no prelo.
De literatura infanto-juvenil, publicou no Brasil:
Debaixo do arco-íris não passa
ninguém (poemas), Língua Geral, 2006;
A caçada real (teatro),
Matrix, 2011; Brincando,
brincando, não tem macaco troglodita (poemas), Matrix, 2011;
A vassoura do ar encantado
(estória), Pallas, 2012; Rio sem
margem: Poesia da tradição oral africana, Melhoramentos, 2013;
Dima, o passarinho que criou o
mundo: Mitos, contos e lendas dos países de língua portuguesa
(Antologia), Melhoramentos, 2013.
Organizou edições da obra de poetas e escritores
portugueses como António José Forte, Luís Pignatelli, Natália Correia,
Mário Cesariny, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, e do poeta moçambicano
Luís Carlos Patraquim. Está representado em várias antologias e tem
colaboração dispersa por jornais e revistas de Angola, Brasil,
Moçambique, Portugal, Itália, Espanha e Alemanha.
Vive atualmente em Lisboa, dedicando-se
inteiramente à literatura.
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