:::::::::::::::::::RUY VENTURA:::::

POESIA ORAL COM AUTOR:
UM TERRITÓRIO ULTRAPERIFÉRICO

 

 

1. Os especialistas em Teoria da Literatura são unânimes: não existem critérios suficientemente claros para distinguir o texto literário dos textos não-literários. Jonathan Culler afirma: "Apesar do carácter manifestamente central desta questão para os estudos literários, devemos confessar que não chegámos a uma definição satisfatória da literariedade" (Culler, 1995: 45). A definição deste objecto artístico acaba por ser envolvida, na maior parte das vezes, em critérios meramente circunstanciais, critérios esses que vão evoluindo com o andar do tempo, do gosto e das mentalidades.

Se nos centrarmos na poesia, a visão não é mais clara. Colocar dentro deste espaço textual um certo número de objectos ou retirar dele outros tantos é jogar com uma relativa arbitrariedade que só a existência de critérios intrínsecos de definição poderia dissolver ou eliminar. Infelizmente para encontrarmos esses critérios intrínsecos podemos apenas ater-nos a alguns dos pilares fundamentais do paradigma literário actual, provisórios (como todos), mas ainda assim suficientemente seguros para a partir deles podermos traçar um raciocínio que nos permita uma aproximação, ainda que muito sucinta, à realidade que procuramos olhar sem preconceitos.

 

2. São sempre diversas as reacções quando se fala de "poesia popular". Mesmo quando estamos em presença de conhecedores e/ou estudiosos, a confusão acaba sempre por instalar-se perante a ambiguidade de um termo que tem gerado ao longo do tempo as reacções mais diversas. As questões e as afirmações são múltiplas, conforme os interlocutores. Vão, geralmente, desde a mais apaixonada adesão à mais ostensiva desconfiança, passando pela bajulação interesseira ou pela renitência metódica.

A verdade é que nem sempre há concordância na definição deste objecto cultural. Partindo do princípio de que todos lhe reconhecem características que o colocam no campo do texto poético, o adjectivo "popular" coloca problemas semânticos derivados da sua polissemia, gerando muitas vezes a confusão entre os interlocutores.

Ao utilizarem a expressão "poesia popular" nem todos falam da mesma realidade artística e cultural. Enquanto alguns se referem apenas aos textos anónimos transmitidos oralmente ao longo de um maior ou menor número de gerações, outros englobam nesse domínio toda a produção (folclórica ou não) que nasce nas classes populares ou lhes agrada. Colocam estes, assim, no mesmo saco realidades completamente distintas (embora algumas delas se toquem por diversas razões). Confundem produtos culturais tão diferentes quanto a Etnoliteratura (ou Literatura Tradicional Folclórica), a Literatura de Massas ou a Literatura Oral (passada à escrita ou não) com autor conhecido. Fomentam-se inclusivamente, com esta imprecisão verbal, juízos de valor sobre a literatura que nascem no olhar sobranceiro do elitismo social, que divide os textos entre o "popular" e o "erudito", entre o "popular" e "culto", entre o "rural" e o "urbano".

Manuel Viegas Guerreiro, um dos mais intensos estudiosos deste fenómeno em Portugal, afirma: "Literatura popular é a que corre entre o povo, a que ele entende e de que gosta. E está neste caso não só a de sua autoria, como a que adopta, de origem erudita" (Guerreiro, 1976: 5). Acrescenta ainda: "Com a designação de literatura popular concorrem as de literatura tradicional e oral. Tradicional não é adjectivo preferível. Tradicional é do mesmo modo a literatura erudita, que persiste no tempo, sem nunca chegar à voz do povo ou ao seu uso. Oral, por outro lado, contradiz literatura, que por si quer dizer arte expressa em palavra escrita, além de que literariamente exclui as produções escritas que, anónimas ou não, o povo tem por suas" (Guerreiro, 1976: 5 e 6).

Esta definição, demasiado alargada em nosso entender, parece aproximar-se da apresentada por João David Pinto-Correia a partir da obra de Bernard Mouralis (cf. Mouralis, 1982: 115 - 175): "[...] esta [a literatura popular] poderá ser concebida como conjunto de práticas discursivas aceites pelo povo, a par das que são provenientes (isto é, produzidas) desse estrato social [...]" (Pinto-Correia, 1984: 18). Só que este ensaísta clarifica o âmbito da designação. Mostra, nomeadamente, que o termo "aceites" aponta para a transmissão entre gerações de textos que, a princípio, teriam sido enunciados por indivíduos cultos e posteriormente adoptados por toda uma comunidade cultural. Pena é que na afirmação de Pinto-Correia tenha ficado mais ou menos na sombra a distinção feita por Bernard Mouralis entre várias dimensões deste fenómeno cultural, depois misturadas por muitos investigadores no termo "Literatura Popular". O ensaísta francófono sabe, por exemplo, que uma realidade são os textos que fazem parte da cultura de uma comunidade e, por isso, foram - depois de produzidos - transmitidos ao longo de um maior ou menor número de gerações. Outra realidade são as produções verbais que o povo ouve ou lê com gosto. E outra ainda são os textos poéticos autorados criados, pronunciados e apreciados através dos recursos da oralidade.

Sobre estas questões merece atenção um artigo de Maria Antonieta Garcia (cf. Garcia, 1999) que, partindo da posição de Viegas Guerreiro anteriormente expressa, aponta reflexões críticas interessantes sobre este problema da designação.

Discute, nomeadamente, a impropriedade do termo "literatura" para designar a arte verbal a que nos temos vindo a referir, relevando a carga semântica que hoje em dia atribuímos a esta palavra, muito distante da sua origem etimológica, relacionada apenas com o texto escrito, como parece entender Guerreiro.

Por outro lado, olha com a atenção devida o adjectivo "popular", retirando-o de um olhar mais ou menos elitista de quem através dele recorda (ainda que subrepticiamente e com interesses muitas vezes opostos - de elevação ou de desprezo) a divisão medieval da sociedade em três classes (clero, nobreza e povo), ou então o vê no domínio político das ideias sobre o conflito (ainda que latente) entre "burgueses" e "rurais", entre "exploradores" e "explorados". Esta autora, para evitar confusões, opta pela designação "Etnoliteratura", questionando-se e com razão: "Existirá [...] uma literatura popular? Há uma hierarquia na literatura, como na sociedade?" (Garcia, 1999: 12).

Infelizmente existe, respondemos nós à questão colocada por Maria Antonieta Garcia. Pondo de lado, neste nosso olhar, a etnoliteratura (a literatura oral, tradicional e popular - a literatura etnograficamente popular), infelizmente existe uma hierarquização dos textos literários, sejam eles poéticos ou de outra índole. Uma divisão, quantas vezes abissal, que leva ao surgimento de distinções entre o "popular" e o "erudito", entre o "periférico" e o "central", entre o "maior" e o "menor".

A História da Literatura já nos deu lições suficientes para sabermos o quanto são provisórios os juízos que, do alto dos pedestais mais ou menos alicerçados, algumas elites académicas, económicas ou de outra índole costumam lançar, elevando ídolos com pés de barro e lançando para a vala do esquecimento obras que, passados anos e consideradas sem preconceitos de qualquer índole, facilmente destronam aquelas que as haviam ofuscado. O caso de Cesário Verde, na Literatura Portuguesa, é absolutamente paradigmático. Impossibilitado de divulgar devidamente a sua poesia em vida, era ofuscado por um tal Cláudio José Nunes, deputado nas Cortes. Cento e tal anos depois, Cesário é justamente considerado um dos nomes universais da cultura portuguesa; o deputado é apenas nome de rua em Lisboa - a que conduz a um dos cemitérios da capital... Como referia num dos seus livros o historiador italiano Carlo Maria Franzero, "a única coisa que a História parece ensinar-nos é que os homens jamais aprendem algo da sua leitura"...

Critérios de distinção entre os textos literários, como dissemos há alguns parágrafos atrás, apenas devem ser considerados aqueles que intrinsecamente definem a sua qualidade, face a outros sucedâneos que recolhem (e frequentemente mal) a sua aparência e nunca a essência, sem terem em conta que aquilo que define um poema, um romance, um conto, uma crónica ou uma peça de teatro é a aliança inseparável entre a forma e o conteúdo.

Embora tudo evolua, embora os critérios mudem conforme o gosto da época e os propósitos dos diferentes movimentos artísticos e / ou das "comunidades de idade" (na expressão do ensaísta e poeta espanhol Antonio Sáez Delgado), podemos colocar sobre a mesa alguns dos pilares essenciais que o paradigma literário actual (com raízes fundas que remontam à cultura clássica) tem tornado unânimes: universalismo, opacidade da palavra e preponderância do significante sobre o significado, promoção da plurissignificação, imitação / subversão / criação de mundos.

 

3. Intitulámos o nosso texto "Poesia oral com autor: um território ultraperiférico". Chegados que somos a este ponto do nosso artigo, urge entrar no assunto principal, preenchidos que estão os alicerces e elevada que está a estrutura prévia absolutamente necessária para o breve edifício a que nos propusemos.

Pretendemos viajar pela habitualmente chamada "poesia popular". Porém, como deixámos claro nos parágrafos anteriores, não podemos conceber que esta expressão seja atribuída aos textos poéticos autorados, produzidos com os recursos da oralidade e da tradição versificatória e rimática portuguesa. A nossa opinião é simples. A utilização do adjectivo "popular", para além de ser incorrecta, peca por impedir o acesso à cidadania literária de quantos criaram / criam textos dotados de beleza com os instrumentos expressivos que tinham / têm à sua disposição. Por que razão um poema há-de ser à partida marginalizado em relação aos seus congéneres só por ter nascido num paradigma cultural diferente daquele que hoje domina? A memória precisa ser refrescada. Sobretudo a de quantos esqueceram a origem oral dos belíssimos poemas recolhidos em cancioneiros que hoje colocam à nossa disposição a maior parte da poesia portuguesa criada até inícios de quinhentos.

O termo "popular" aponta para um contexto folclórico ou etnográfico. Para sermos rigorosos, deve apenas ser colocado ao lado daquela literatura ou daquela poesia que foi, ao longo do tempo, alvo de um processo de produtransmissão (produção-transmissão-recriação-transmissão). Todos os restantes usos são interessados (para não dizer "interesseiros"), positiva ou negativamente. E os interesses são vários: valorizar a expressividade das classes mais desfavorecidas para as elevar socialmente; lisonjear essas produções para através delas desvalorizar os autores que têm acesso à imprensa e - desta maneira - a cultura que nasce de uma instrução formal; colocar os recursos expressivos destes autores ao serviço da propaganda política; criar preconceitos em relação a todas as obras que se aproximem dos instrumentos habituais na versificação tradicional e de uma linguagem humilde e simples, etc..

A raiz destas atitudes é, do ponto de vista ideológico, muitas vezes profunda. Nas melhores hipóteses radica nos ideais românticos, que viam nessa entidade abstracta chamada "Povo" a fonte da autenticidade de uma Cultura e de uma Nação, ou no socialismo democrático, que procura dignificar a todos os níveis o ser humano, especialmente as classes laboriosas. Naquelas que mais nos repugnam vemos com nitidez o Estalinismo (aquele que queria toda a arte "ao serviço do povo" e mandava para a prisão todos os artistas que ousavam ser livres...) ou o conjunto de "doutrinas" políticas que foram advogando ao longo dos séculos o imobilismo social.

Que terminologia utilizar então para designar o objecto que temos sob o olhar neste artigo?

João David Pinto-Correia, num excelente artigo de 1992 intitulado "Para uma teoria do texto da Literatura Popular Tradicional", chama às produções verbais que nele se incluem "textos populares tradicionalistas", correspondendo "à produção moderna, composições dos ditos 'poetas populares', quer no sentido português (poetas como Calafate, António Aleixo, Manuel Pardal, Carlos dos Jornais, entre outros), quer no sentido brasileiro (poetas de poesia de folhetos [...])" (Pinto-Correia, 1992: 112).

Demonstrando precisão terminológica, este autor distingue a poesia oral autorada dos textos popularizantes, produzidos por autores da literatura institucionalizada como imitações do gosto temático e / ou versificatório popular. Mas não deixa, no entanto, de lhe acrescentar o adjectivo "popular", colocando a poesia oral no campo da Literatura Popular. Mais uma vez não parece vislumbrar-se neste adjectivo uma qualidade intrínseca dos poemas, mas apenas um reflexo de quem os produziu. Perante uma constatação deste tipo, embora a semântica pareça apontar para a marginalidade literária, estamos em crer que a realidade subjacente é, na verdade, a de uma profunda marginalização.

Considera-se "marginal" uma obra que deliberadamente se põe à margem do sistema literário dominante, ou então uma produção parecida com o texto literário canónico mas que uma menor elaboração estética ou conceptual coloca nos seus subúrbios (cf. Saraiva, 1980: 5). Quando falamos em "literatura marginalizada" estamos perante uma área da produção artística que, por condicionalismos de produção, sociais, de mercado ou de divulgação, se vê forçada a permanecer afastada dos veículos normais de transmissão e fruição.

Este texto que, talvez involuntariamente, escolheu como eixo da circulação a necessidade de clarificar os termos com que aparece designada uma parcela da arte verbal literária, tem pois que tornar clara a sua posição. Como designar então a poesia oral criada por autores na sua maioria pertencentes às classes desfavorecidas?

O ideal seria não existir qualquer tipo de distinção. Oral ou escrita, saída da mão de académicos ou de cavadores, a Poesia aponta para o ecumenismo e nunca para a hierarquia. Por outro lado, versejadores há-os em qualquer parte: nos bancos das tabernas e nas academias, nas leivas de terra e nos jardins relvados, nos jogos florais e entre luxuosas encadernações... A Poesia é outra coisa.

Mas já que urge propor um nome, escolhemos aquele que nos parece descrever com maior certeza as características dos textos de que temos vindo a falar: poesia oral com autor ou autorada. A expressão adjectiva final seria dispensável; justifica-se apenas para que estes textos se distingam da poesia oral anónima, quase sempre tradicional. Preferindo esta denominação, não deixamos no entanto considerar extremamente válida a proposta de João David Pinto-Correia (embora sem o adjectivo "popular", pelas razões já expostas), na medida em que esta literatura, apropriando-se dos modelos versificatórios e rimáticos utilizados ao longo de séculos pela Literatura Oral / Tradicional / Popular, é de facto "tradicionalista".

Quanto a todos os outros adjectivos que poderíamos acoplar a esta poesia ("marginalizada", "menor", etc.), embora se justificassem tendo em conta os condicionalismos da sua difusão, pertencem apenas à sua envolvência e, assim esperamos, desaparecerão logo que ela tenha direito de aceder à cidadania. Por agora temos que resignar-nos com uma constatação: se no sistema literário, por mecanismos quantas vezes pouco claros, assistimos à colocação na periferia de um conjunto de obras que satisfazem todas as condições definidas pelo paradigma literário (são veiculadas pela escrita, são publicadas em edições comerciais, possuem qualidade estética e conceptual...), então temos que olhar para a poesia oral autorada como um território pertencente à ultraperiferia.

 

4. Ultraperiférica sobretudo por o seu veículo (a oralidade) entrar em confronto com o do paradigma literário actual (a escrita), será que as suas características intrínsecas correspondem ao conjunto de critérios que hoje em dia parecem definir o bom texto literário em termos estéticos e conceptuais e que enumerámos no final do ponto dois deste artigo?

Antes de respondermos a esta questão temos que olhar com atenção para a sua condição de textos orais. Dependendo da oralidade, tanto ao nível da produção como da transmissão e da recepção, revelam características técnico-formais que os individualizam, de alguma forma, em relação aos outros textos poéticos. Ao contrário de todos os poemas que são concebidos através da escrita, cuja fixação e transmissão depende tecnicamente apenas de meios físicos e / ou mecânicos, a poesia oral necessita sobretudo dos instrumentos propiciados pela capacidade de elaboração mental, de memorização e de verbalização oral. Assim sendo, salvo raras excepções, tem que sujeitar-se a modelos métricos e versificatórios relativamente rígidos (quadra, quintilha ou sextilha, décima sujeita a mote - quase todas em redondilha maior de sete versos, entre outros metros menos utilizados), correndo embora o risco de mostrar a quantos não estão habituados ao seu circuito de emissão-recepção uma certa monotonia formal. A razão é óbvia. Seria possível guardar na memória toda uma produção se esta não fosse revestida com essa armadura de salvação? Aqui, como em todos os poemas, a forma é um precioso instrumento para construir o sentido. Com a indissociável função de estar ao serviço da fixação do texto, como único meio ao alcance destes poetas, na sua maioria analfabetos ou com fraca instrução formal. Verdade seja dita que estes condicionalismos têm sido também o pior inimigo desta área da poesia portuguesa. Fernando Pessoa, ao falecer, deixou numa arca a sua produção literária. Os poetas orais - a não ser que alguém tenha registado no papel, ou noutros meios, os seus poemas - no momento em que morrem (ou no momento em que se apaga a sua memória) fecham para sempre no arca do peito e do cérebro todas as palavras que souberam encadear para formar beleza. As excepções (António Aleixo é a mais conhecida) confirmam a regra.

Esta fixação em modelos formais muito rígidos, num apego constante à tradicionalidade, leva-nos à constatação da existência de uma verdadeira centração no significante, muitas vezes em detrimento quase total do significado. Nos bons exemplos desta poesia oral, as palavras são exploradas nas suas virtualidades semânticas, criando uma interessante plurissignificação, frequentemente servida pelos recursos estilísticos mais comuns, como a metáfora, a metonímia, a ironia, etc..

A opacidade da palavra é, no entanto, instável. Nascendo de uma necessidade de comunicação, tendo em conta que os ouvintes do texto produzido não terão a possibilidade de o retomar (tal como acontece com o poema escrito), a palavra poética oral não pode ser totalmente opaca, sob pena da emissão não encontrar a recepção desejada. O texto é opaco apenas na exacta medida em que o enunciado transmitido possa suscitar uma multiplicidade de significados nos ouvintes. Nunca ao ponto extremo atingido às vezes pelas obras escritas, suscitando um número infinito de sentidos.

Quanto ao universalismo, entendido no sentido aristotélico de representação verosímil do mundo, encontramos na poesia oral - com matizes próprios da cultura empírica assimilada pelos seus produtores - todos os grandes temas universais: desde a alegria à solidão, desde a vida à morte, passando pelo deslumbramento perante o cosmos e por uma vasta gama de afectos que este e os seus habitantes suscitam. O real transfigura-se, é representado / imitado / subvertido por quem eleva uma nova realidade nas palavras encadeadas numa certa musicalidade verbal. Agarrada à terra e ao húmus, esta poesia humilde e religada, de registos (para utilizar a expressão de Carlos Garcia de Castro (cf. Castro, 1991)), atinge ainda, sem preconceitos, a própria decomposição do mundo, criando textos em que se apresentam ao ouvinte / leitor ficções onde a subversão dos sentidos chega ao ponto de criar universos que habitam o domínio do fantástico e / ou do surreal.

Partilhando embora todas as características que é costume atribuir à literatura institucionalizada, a poesia oral tem no entanto traços que a revestem de alguma peculiaridade. Para além dos já referidos ao longo do texto, tanto formais quanto conteudísticos, convém, no final deste artigo, listar ainda outros, embora não tenhamos como objectivo chegar à exaustão. Aqui ficam como pistas para um futuro aprofundamento:

  • preocupação crítica e moralizante;
  • contestação, nomeadamente perante as injustiças e o imobilismo sociais;
  • recurso à sátira individual ou social;
  • necessidade de reflexão sobre o mundo;
  • proximidade entre a ficção e o autobiografismo;
  • autocomiseração, caldeada frequentemente pela auto-ironia;
  • equilíbrio instável entre o universal e o circunstancial;
  • tendência para a simplicidade vocabular;
  • sintetização de formas e de conteúdos;
  • capacidade para criar uma meta-poesia, reflectindo quer sobre a condição do poeta quer sobre o seu ofício.

Em todas estas dimensões da poesia oral, assim como noutras, é evidente que nem todas as produções revelam a mesma capacidade estética ou conceptual. Nesta literatura como naquela que todos os dias vemos nos escaparates das livrarias, só uma atenção crítica permite distinguir o trigo do joio. Em todos os domínios existem verdadeiros poetas (aqueles que procuram servir a Arte através da sua autenticidade de fazedores) e os versejadores (aqueles que se servem da uma certa habilidade para fins mais ou menos claros). Temos que dirigir às produções que nos chegam aos olhos ou aos ouvidos uma atenção exigente que nos faça acolher, sem preconceitos sociais ou de qualquer ordem, apenas aqueles textos que transmitem o testemunho que receberam do passado de forma melhorada.

Em relação ao campo específico da poesia oral portuguesa, temos que louvar quantos ao longo do tempo conseguiram fixar na escrita os poemas guardados na memória por muitos poetas que, sem isso, veriam a sua produção ser engolida pela terra do cemitério. Neste domínio da literatura portuguesa há, no entanto, que lembrar sempre os versos de António Aleixo, poeta oral do sul de Portugal:

"Vejo a arte definida / Na forma de descrever / O bem ou o mal que a vida / Nos faz gozar ou sofrer. // [...] // Ser artista é ser alguém! / Que bonito é ser artista... / Ver as coisas mais além / Do que alcança a nossa vista! // [...] // A arte é dom de quem cria; / Portanto não é artista / Aquele que só copia / As coisas que tem à vista. // A arte em nós se revela / Sempre de forma diferente: / Cai no papel ou na tela / Conforme o artista sente."

 

Há, felizmente, sinais de mudança, como por exemplo a recente inclusão, num dos volumes de actualização do Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho, de uma entrada sobre o poeta António Aleixo.