“[…] alguém duvidará, ainda, de que estamos em guerra?”
– A pergunta obriga-nos a suspender o passo e a enfrentar a
barbárie. Vêm-nos à memória imagens que gostaríamos de esquecer:
crianças que não se concentram na escola porque têm fome; velhos
que vão definhando porque não têm dinheiro para aviar os
medicamentos (enquanto outros gastam centenas de euros numa noite
só); homens e mulheres catando no lixo dos supermercados alimentos
fora de prazo para matar a fome (e ao lado o luxo, indiferente,
exibindo-se); a frieza dos governantes pugnando pela redução do
orçamento público da educação e da saúde (nunca dizendo que os
filhos estudam em colégios privados e consultam médicos nos
melhores hospitais particulares); e muitas, muitas outras…
De repente, ao lado do aviso de guerra, ouço as palavras de
María Zambrano, lidas há pouco no seu livro A Agonia da Europa:
“Ser cristão é também não se resignar, agarrar-se à esperança
no impossível”. As duas juntas, constatação e exaltação,
enrijam e preparam para a luta: – uma luta de paz, mas de firmeza,
contra o logro, contra um mundo centrado nesse demónio chamado
dinheiro, contra aqueles que dissolvem deliberadamente a dignidade
humana por actos ou omissões.
A frase com que iniciei este texto é de José António Falcão.
Faz parte do texto de abertura do programa do festival “Terras
sem Sombra”. Creio que, ao escrevê-lo, também deve lhe ter
passado pela mente, consciente ou inconscientemente, a definição
da filósofa espanhola. Todo este evento, que se realiza pela nona
vez, se estrutura sob o signo da Beleza, não dispensando contudo
na sua proposta sólida uma Verdade ecuménica que não se impõe e
uma Bondade que nos interpela:
“A Verdade e o Bem têm sido apontados insistentemente, no
último século, como via privilegiada para Deus. Porém, a Beleza
não o é menos. Hoje vemo-nos órfãos dela e desejamo-la
ardentemente. Alguém duvidará de que saber descobri-la e
partilhá-la representa uma prova suprema de amor?” (p. 10)
Descobrir – “inventar” no melhor sentido etimológico – e
partilhar a Beleza será a tarefa suprema dos seres humanos, porque
ao mesmo tempo, discretamente, estará oferecendo também a Verdade
e o Bem, escadas para o Divino, que se concretiza na mais sólida e
inviolável dignidade do Homem e da Natureza. Passar da “tolerância”,
quase sempre indiferente e relativista, à “benevolência”,
ao desejo activo do bem comum – como dizia e bem o papa emérito
Bento XVI. E sabemos hoje o quanto nós, seres humanos, dependemos
de uma natureza amada e preservada, o quanto a nossa existência
depende dessa devoção:
“[…] Arte, cultura, espiritualidade e conservação da
natureza são as armas de uma resiliência necessária em tempos de
escolhas. Ser faber ou sapiens, eis o que está em
jogo.” (p. 28)
Por isso precisamos tanto de “ração de combate” nestes
tempos de guerra fria, surda e suja, porque a “ração” – as
palavras não mentem e ainda menos as suas raízes – será sempre uma
“razão” de combate, desse “bom combate”, como dizia
São Paulo, pela imanência e pela transcendência.
Um conjunto de concertos ajudará pouco nestes tempos, dirão.
Asseguro-vos contudo que ouvir, no vazio (espaço aberto dentro de
nós), Machaut, Escobar, Mozart, Pergolesi, Haydn, Ligeti ou
Schönberg, enquanto se contemplam belas esculturas e pinturas que
tornam visível um Espírito que nos consola, será encontrar a
nascente da esperança, essa que nenhum de nós, crente ou
descrente, poderá perder, como já referiu o papa Francisco, que
decerto não esqueceu o Amor (Charitas) como centro de tudo.
Volto às palavras de José António Falcão, à sua habitual
sabedoria (espero que um dia decida recolher em livro essas suas
reflexões):
“[…] Eis o momento em que tudo depende da capacidade de
julgar, com lucidez e serenidade. Nestas circunstâncias – alguém
duvidará, ainda, de que estamos em guerra? –, um módico pecúlio de
coisas fundamentais pode fazer a diferença. O soldado sabe que a
ração de combate lhe permite sobreviver, ganhar forças para fazer
frente aos obstáculos do inimigo e prosseguir até à fonte que
saciará a sua sede e ao vergel que fartará a sua fome. […]”
(p. 15)
Neste tempo de guerra não podemos faltar à Beleza, pois sem ela
nunca a Verdade e o Bem constituirão por si só o triângulo
sagrado. Com firmeza e lembrança, temos de recordar sem rancor
quem foram os judas desta peleja, mas também os nossos “excessos
de confiança” e a nossa “complacência face aos corruptos (e
aos seus corruptores)” (p. 22). Com alegria e esperança, “sem
queixumes”, temos de arregaçar as mangas porque são
necessários “sinais de confiança”. Este marco da cultura no
Alentejo “assume-se como um deles”. (Talvez um dia se
alargue além da diocese de Beja, assim queiram os alentejanos dos
distritos de Évora e de Portalegre…) Temos de dar outro uso à
frase tristemente célebre de um governante:
custe o que custar,
não podemos acabar, por falta de água, à beira da nascente. Não
fomos castigados como Tântalo, apesar das nossas faltas. Saibamos
pois descobrir a beleza que as “Terras Sem Sombra” nos
oferecem neste tempo de guerra para que, depois, reconciliados
connosco e com o mundo, possamos descobri-la dentro de nós e à
nossa volta.
Ruy Ventura