RUY VENTURA:::
Beleza em tempos de guerra

[…] alguém duvidará, ainda, de que estamos em guerra?” – A pergunta obriga-nos a suspender o passo e a enfrentar a barbárie. Vêm-nos à memória imagens que gostaríamos de esquecer: crianças que não se concentram na escola porque têm fome; velhos que vão definhando porque não têm dinheiro para aviar os medicamentos (enquanto outros gastam centenas de euros numa noite só); homens e mulheres catando no lixo dos supermercados alimentos fora de prazo para matar a fome (e ao lado o luxo, indiferente, exibindo-se); a frieza dos governantes pugnando pela redução do orçamento público da educação e da saúde (nunca dizendo que os filhos estudam em colégios privados e consultam médicos nos melhores hospitais particulares); e muitas, muitas outras…

De repente, ao lado do aviso de guerra, ouço as palavras de María Zambrano, lidas há pouco no seu livro A Agonia da Europa: “Ser cristão é também não se resignar, agarrar-se à esperança no impossível”. As duas juntas, constatação e exaltação, enrijam e preparam para a luta: – uma luta de paz, mas de firmeza, contra o logro, contra um mundo centrado nesse demónio chamado dinheiro, contra aqueles que dissolvem deliberadamente a dignidade humana por actos ou omissões.

A frase com que iniciei este texto é de José António Falcão. Faz parte do texto de abertura do programa do festival “Terras sem Sombra”. Creio que, ao escrevê-lo, também deve lhe ter passado pela mente, consciente ou inconscientemente, a definição da filósofa espanhola. Todo este evento, que se realiza pela nona vez, se estrutura sob o signo da Beleza, não dispensando contudo na sua proposta sólida uma Verdade ecuménica que não se impõe e uma Bondade que nos interpela:

A Verdade e o Bem têm sido apontados insistentemente, no último século, como via privilegiada para Deus. Porém, a Beleza não o é menos. Hoje vemo-nos órfãos dela e desejamo-la ardentemente. Alguém duvidará de que saber descobri-la e partilhá-la representa uma prova suprema de amor?” (p. 10)

Descobrir – “inventar” no melhor sentido etimológico – e partilhar a Beleza será a tarefa suprema dos seres humanos, porque ao mesmo tempo, discretamente, estará oferecendo também a Verdade e o Bem, escadas para o Divino, que se concretiza na mais sólida e inviolável dignidade do Homem e da Natureza. Passar da “tolerância”, quase sempre indiferente e relativista, à “benevolência”, ao desejo activo do bem comum – como dizia e bem o papa emérito Bento XVI. E sabemos hoje o quanto nós, seres humanos, dependemos de uma natureza amada e preservada, o quanto a nossa existência depende dessa devoção:

[…] Arte, cultura, espiritualidade e conservação da natureza são as armas de uma resiliência necessária em tempos de escolhas. Ser faber ou sapiens, eis o que está em jogo.” (p. 28)

Por isso precisamos tanto de “ração de combate” nestes tempos de guerra fria, surda e suja, porque a “ração” – as palavras não mentem e ainda menos as suas raízes – será sempre uma “razão” de combate, desse “bom combate”, como dizia São Paulo, pela imanência e pela transcendência.

Um conjunto de concertos ajudará pouco nestes tempos, dirão. Asseguro-vos contudo que ouvir, no vazio (espaço aberto dentro de nós), Machaut, Escobar, Mozart, Pergolesi, Haydn, Ligeti ou Schönberg, enquanto se contemplam belas esculturas e pinturas que tornam visível um Espírito que nos consola, será encontrar a nascente da esperança, essa que nenhum de nós, crente ou descrente, poderá perder, como já referiu o papa Francisco, que decerto não esqueceu o Amor (Charitas) como centro de tudo.

Volto às palavras de José António Falcão, à sua habitual sabedoria (espero que um dia decida recolher em livro essas suas reflexões):

[…] Eis o momento em que tudo depende da capacidade de julgar, com lucidez e serenidade. Nestas circunstâncias – alguém duvidará, ainda, de que estamos em guerra? –, um módico pecúlio de coisas fundamentais pode fazer a diferença. O soldado sabe que a ração de combate lhe permite sobreviver, ganhar forças para fazer frente aos obstáculos do inimigo e prosseguir até à fonte que saciará a sua sede e ao vergel que fartará a sua fome. […]” (p. 15)

Neste tempo de guerra não podemos faltar à Beleza, pois sem ela nunca a Verdade e o Bem constituirão por si só o triângulo sagrado. Com firmeza e lembrança, temos de recordar sem rancor quem foram os judas desta peleja, mas também os nossos “excessos de confiança” e a nossa “complacência face aos corruptos (e aos seus corruptores)” (p. 22). Com alegria e esperança, “sem queixumes”, temos de arregaçar as mangas porque são necessários “sinais de confiança”. Este marco da cultura no Alentejo “assume-se como um deles”. (Talvez um dia se alargue além da diocese de Beja, assim queiram os alentejanos dos distritos de Évora e de Portalegre…) Temos de dar outro uso à frase tristemente célebre de um governante: custe o que custar, não podemos acabar, por falta de água, à beira da nascente. Não fomos castigados como Tântalo, apesar das nossas faltas. Saibamos pois descobrir a beleza que as “Terras Sem Sombra” nos oferecem neste tempo de guerra para que, depois, reconciliados connosco e com o mundo, possamos descobri-la dentro de nós e à nossa volta.

Ruy Ventura

 

RUY VENTURA (Portalegre, 1973) .
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