Se no princípio do Universo
esteve – como creio – a aliança entre o Pensamento e Palavra, só pela
Palavra e pelo Pensamento cresceremos no confronto e na aceitação do
mistério que nos transcende e nos rodeia. Só com a ajuda da sabedoria
nascida do Verbo (encarnado há cerca de dois mil anos) poderemos
reconciliar-nos com o Mundo, com o Outro e, sobretudo, connosco – neste
tempo tão complexo, de sociedade em crise, à procura de um novo
paradigma civilizacional. Não interessa se a Sabedoria nos chega por
palavras, por imagens, por sons, por movimentos ou pela contemplação do
“jardim do mundo”. Vale a pena tão só aceitar, entender e
praticar com humildade os seus atributos: “há nela um espírito
inteligente e santo, / único, múltiplo e subtil, / ágil, penetrante e
puro, / límpido, invulnerável, amigo do bem e perspicaz, / livre,
benéfico e amigo dos homens, / estável, firme e sereno, / que tudo pode
e tudo vê, / que penetra todos os espíritos, / os inteligentes, os puros
e os mais subtis” (Sabedoria, 8: 22 – 23).
Verdade seja dita que há também
palavras que nos salvam ou que, pelo menos, nos consolam. Lembro, por
exemplo, quanto me pacificou, há uns anos, a dedicatória inscrita por
José António Falcão numa das suas mais belas obras (A a Z – Arte
Sacra da Diocese de Beja, 2006): “Este livro é dedicado a todos
os que, saindo do Alentejo, não o abandonaram”. Alentejano exilado
por vontade alheia, na co-movente Península da Arrábida, tão simples
frase teve a capacidade de cauterizar feridas ainda recentes de alguém
que continuava a martelar a letra de um velho fado: “Abalei do
Alentejo, / olhei para trás chorando. / Alentejo da minh’ alma, / tão
longe me vais ficando”.
Já tive oportunidade de
manifestar a minha integral admiração pelo trabalho desenvolvido no
Baixo Alentejo pelo Departamento do Património Histórico-Artístico da
Diocese de Beja. Não vale a pena repetir razões, tantas elas são. É
contudo, importante, sublinhar o seu exemplo clarividente, em áreas só
aparentemente separadas da preservação e divulgação dos bens artísticos
da Igreja Católica. Bastará recordarmos a sua abertura ao Outro e ao
mundo poliédrico da Cultura contemporânea, a revitalização dos Caminhos
de Sant’ Iago no sul de Portugal ou o Festival “Terras sem Sombra”,
neste momento a decorrer na sua oitava edição. Mesmo no “exílio”,
penso que todos os alentejanos se sentirão serenamente felizes ao verem
a sua terra como palco de um evento musical com ecos espalhados pelo
mundo fora.
É belo o seu nome, “Terras Sem
Sombra”. E ainda mais belo ao revelar, aos ouvidos de quem o saiba
entender, a essência da espiritualidade do Alentejo – proposta ao Mundo.
Para compreendermos esta “terra sem sombra”, tão minguada de
gentes, é preciso meditar os dois primeiros versos da quadra que deu
origem ao título: “O Alentejo não tem sombra, / senão a que vem do
Céu.” Não tem sombra material. É quase um deserto (aquele deserto
que tanto aproximou os homens de Deus, no confronto com o interior e o
exterior do seu ser). Tem apenas a sombra “que vem do Céu” (como
diriam os místicos islâmicos heterodoxos). Ou seja, o Alentejo possui a
terra inteira dentro de si, porque toda a criação, aos olhos do crente,
é uma “sombra de Deus”, uma manifestação da realidade divina.
Abdicou – e transformou-se em rei de si próprio (como diria Fernando
Pessoa por Ricardo Reis).
Sem sombra divina, não teria
alma. Por isso me permito afirmar que a música do espírito apresentada
pelo Festival “Terras sem Sombra” revela, na ausência de matéria,
uma outra sombra que é, no fundo, um símbolo da Vida, daquela que
transcende a existência. Tem pois José António Falcão toda a autoridade
para espicaçar os ouvintes do festival com um texto claro e perturbador
na sua análise e nas suas propostas. Interpretando a espiritualidade
alentejana como proposta e exemplo, afirma no programa do evento:
“Se o ‘tempo dos guerreiros’ e
o ‘tempo dos agricultores’ souberam reconhecer até que ponto a
benevolência apaziguada e a violência extrema se podem cruzar na
natureza, o ‘tempo dos mercadores’ entregá-la-ia a uma pilhagem sem
precedentes, exacerbada pela industrialização , que conduz o planeta até
à fronteiras do descalabro. […] Depois do caçador, do lavrador, do
metalurgista, do comerciante, emerge cada vez com maior nitidez a imagem
do cuidador de um jardim que, como arquétipo, se projecta sobre os
quatro pilares da sustentabilidade: ambiente, economia, sociedade,
cultura. […] Este jardineiro […] vislumbrado [por Charles Péguy] não
será, afinal, o mesmo que apareceu a Maria Madalena, junto ao túmulo,
após a Ressurreição […]?”
Ameaçado e em grande perigo, o
planeta só salvará se os homens de boa vontade souberem interpretar “a
sombra que vem do Céu” e cuidarem do “jardim do mundo” em paz
e harmonia. É, para isso, necessário, acolhermos o mistério da Vida e
percebermos que esse acolhimento só acontecerá se abrirmos no nosso
interior o espaço necessário, entrevendo – como refere J. A. Falcão – “a
essência criadora do nada”, tão próxima quando vivemos a boa, a bela
e a verdadeira terra do nosso Alentejo.
Ruy Ventura |