Tenho de
começar este texto recordando os sinónimos da palavra “cobardia”.
Se começa por ser falta de força moral, ausência de coragem, rapidamente
se transforma em deslealdade, em baixeza, em perversidade e em traição –
ou seja, em maldade. A esta perigosa forma de fraqueza (que normalmente
caracteriza pessoas, sociedades e regimes que só são fortes perante os
fracos), tenho de somar contudo a ignorância – não apenas falta de
conhecimento, mas também ausência de instrução, de cultura e de saber.
Perigosa estupidez, quando elevada aos cumes da técnica, transforma-se em
maldade, numa maldade convencida e sobranceira.
A reforma administrativa, recentemente “proposta”
ao governo e ao parlamento, não parece dispensar qualquer destes
ingredientes. É cobarde – porque é desleal, traidora, perversa e maldosa,
ao escolher a adopção de uma violência inusitada contra os fracos, como
forma de protecção dos fortes. É ignorante, inculta, iletrada e maldosa –
porque a sua concepção (além de critérios financeiros, demográficos e
outros que só o diabo conhece), não teve em conta nem a geografia, nem a
história, nem a sociologia e muito menos a economia e a política. Tais
qualificativos bastariam para lhe atribuirmos o epíteto de “ignóbil
porcaria”, não se tratasse ainda de um acto discricionário onde saltam
à vista a incompetência técnica, um espírito anti-democrático e um total
desprezo pelos mais elementares direitos do ser humano que vive em
sociedade.
Se este conjunto de documentos não
manifesta incompetência, então é, deliberadamente, um exemplo de mentira,
o que, a ser verdade, revelaria critérios de actuação política só
admissíveis em ditadura ou tirania. Como se explica, por exemplo, que num
dos relatórios se proponha a extinção de duas freguesias do concelho de
Portalegre (Carreiras e São Julião) porque as respectivas sedes distam
apenas cerca de dois quilómetros “sem acidentes orográficos ou outros obstáculos relevantes” pelo
meio, quando, na realidade, a distância entre elas é muito maior, tendo a
dividi-las montes e serras com reconhecida altitude (num dos casos, o alto
de São Mamede, ponto cimeiro a sul do Tejo, com mais de mil metros)?
Há, ainda, a admissão de critérios
tirados da roleta. Como é possível que, numa sede municipal como Castelo
de Vide, só porque tem a sorte de estar num concelho com apenas quatro
freguesias, se mantenham três delas no interior de uma vila pequena – e
uma cidade com a dimensão de Setúbal, porque tem mais autarquias, seja
obrigada a ficar apenas com uma no seu núcleo urbano?
Das três, uma: ou houve incompetência, ou
houve desleixo, ou houve maldade, maldade substanciada na manipulação de
dados como forma de fundamentar o inaceitável. E tudo pago, e decerto bem
pago, com o dinheiro dos contribuintes, tão escasso!
Esta reforma é, ainda, anti-democrática.
Não respeita qualquer praxe de um regime livre. Afirma, por exemplo, que a
pronúncia de uma assembleia municipal pela conservação de todas as
freguesias do seu concelho é considerada uma não-pronúncia… Mais grave que
isto é, contudo, retirar às populações residentes e proprietárias o
direito de se pronunciarem directamente sobre o seu futuro. Só aos
eleitores/contribuintes caberia decidir, num eventual referendo, a
manutenção da sua freguesia, a sua junção com outra vizinha e, até, a
possibilidade de mudar de município, se essa fosse a vontade maioritária.
Quem tem medo da voz do povo? Começo a dar razão àqueles que afirmam que
Portugal parece uma democracia, mas na realidade está longe de o ser, seja
gerido por socialistas ou por social-democratas.
Integrada numa estratégia geral de
abandono das populações fragilizadas do interior, esta maldosa e injusta “reforma”
é, ainda, violentadora dos direitos elementares dos mais fracos. Não pode
ser vista isoladamente. É mais um passo da marcha para o abismo do mundo
rural, do caminho para a desertificação, que tem levado ao encerramento de
maternidades, escolas, centros de saúde, hospitais, postos de correio,
tribunais, quartéis, etc.. Há neste momento aldeias que são antecâmaras da
morte: só têm casas, total ou parcialmente desabitadas ou arruinadas, lar
de idosos, igreja para missas de sufrágio e cemitério. Tudo o mais foi
abandonado pelos poderes públicos – o que se acentuará com rapidez se esta
reforma for por diante como está.
Sendo evidente que pouca poupança trará a
extinção de mais de um milhar de freguesias, haveria ainda assim outras
formas de reduzir a despesa do estado, nomeadamente nos municípios e
noutros serviços supérfluos do Estado. A opção foi, contudo, assassinar
num terço das nossas terras o único órgão eleito que serve povoações com
escasso acesso a outros meios de acção sócio-política. Valeria a pena
reformar com saber a administração da grande faixa litoral e promover
medidas que atraíssem mais habitantes ao interior, numa estratégia de
discriminação positiva. Mas não é esse o objectivo dos cobardes e velhacos
que há muito decidiram esvaziar o interior para melhor o ocuparem e
dominarem com “projectos de
interesse nacional” que só a eles interessam (assim me confidenciou há
cerca de um ano um homem que ocupou o cargo de ministro). Sabem que, do
outro lado, terão pouca luta, pois os adversários são pessoas envelhecidas
ou cidadãos sem meios para expressarem a sua indignação e a sua revolta.
Sabem que, ao seu lado, está a ignorância de uma população urbana que
despreza tudo quanto vá além do seu mesquinho mundo exibicionista e
consumista…
Chegados a este ponto, urge perguntar sem
medo se não existirão traidores por obras ou por omissão. Devemos
estranhar a falta de acção de alguns políticos, de alguns autarcas que
pouco ou nada dizem, pouco ou nada fazem, que talvez de propósito
fundamentaram mal as decisões tomadas. Não seria inédito se, mais uma vez,
trocassem o bem-estar dos seus conterrâneos por futuros proveitos, por
benefícios vindouros retirados da nova organização do território.
Pensarão, em segredo, no novo fôlego que ganharão em freguesias
refundidas, agora que já não podem concorrer àquela que dominaram durante
anos a fio. Há sempre traidores – e nem sempre distantes. É preciso estar
alerta.
Quanto a nós, simples cidadãos, é
importante continuar a lutar, ainda que o pior venha a acontecer. E, se o
pior acontecer, transformemos a extinta autarquia numa comunidade. Ou
seja, mesmo que a freguesia desapareça, devemos continuar a viver em
comum, a trabalhar para o bem comum, fazendo valer os nossos direitos.
Será preciso trabalhar para futuro, com os olhos abertos, olhos postos
numa identidade que deve ser reconquistada e reinventada como alicerce de
um novo e inovador edifício social e convivente.
Vila
Nogueira de Azeitão, Novembro de 2012
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