Projectos de investigação diferentes, que nos últimos
tempos me têm ocupado, levaram-me ao encontro de vozes e pensamentos
diversos, mas confluentes. Têm todos eles um centro – a percepção das
relações sociais e políticas em tempos de crise e de desigualdade entre os
homens.
Há cerca de dois mil anos, alguém escreveu numa
carta: “[…] ricos, chorai em altos
gritos por causa das desgraças que virão sobre vós. As vossas riquezas
estão podres, e as vossas vestes comidas pela traça. […] Olhai que o
salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos
está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor
do universo! Tendes vivido na terra, entregues ao luxo e aos prazeres,
cevando assim os vossos apetites… para o dia da matança!”
No século XII, houve por sua vez quem dissesse
sem hesitações nem medos: “Os ricos
e poderosos roubam aos pobres os seus haveres, adquiridos com suor e
lágrimas. Ainda por cima, chamam-lhes seus vilãos, quando eles é que são
vilãos do diabo. […] O rico deste mundo perverte a justiça, roubando os
pobres ou não lhes dando o que é seu.” E acrescenta com igual ousadia
e firmeza: “É sacrilégio dar a
pertença dos pobres a quem o não é. Se dás a um parente, deves dar não por
ser parente mas por ser pobre. […] Não dês, portanto, sangue ao sangue,
mas dá ao peregrino e ao pobre.”
Já muito mais perto de nós, um dos gigantes da
nossa literatura portuguesa e da literatura de qualquer parte do mundo
afirmou: “[…] um novo e inesperado
actor calcou o tablado. […] Ao pé dele tudo é mesquinho: homens de estado,
negociações, guerreiros e príncipes. Salvou-nos. E logo que nos salvou
sumiu-se na mesma estúpida resignação […]. Mas nem tudo se perde: alguma
coisa de amargo – dúvida ou cólera – ficou na consciência colectiva, que
há-de desentranhar-se no futuro em novos gritos. Esperemos o que a noite
vai gerando…”
Acrescento a estas erupções verbais, tão
oportunas, as palavras ditas por um homem do povo mais humilde, ou seja,
mais próximo do húmus, da terra fértil: “Quem
trabalha e mata a fome / Não come o pão de ninguém; / Mas quem não
trabalha e come, / Come sempre o pão de alguém!” “Entre
grandes e pequenos / Ficávamos quase iguais, / Dando a uns um pouco menos
/ E a outros um pouco mais.” “Vós
que lá do vosso império / Prometeis um mundo novo, / Calai-vos, que pode o
povo / Q’rer um mundo novo a sério.”
Que interessa que estes textos tenham sido escritos em
momentos distintos da História da Humanidade? É importante sabermos que
eles saíram da mão e/ou do pensamento de Tiago-o-Justo, Santo António de
Lisboa, Raul Brandão ou António Aleixo? Parece-me que não. Importa a sua
justiça, a clarividência que nos dão e a mudança de atitudes que possam
propor ou proporcionar. Assim eles fiquem na nossa memória, na memória de
quem os lê, e empurrem para aquilo que interessa nestes tempos
conturbados, de transição: a mudança e o avanço.
Ruy Ventura
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