RUY VENTURA:::
A norma e a crise

 Não é nova a teoria de que tudo, no mundo, oscila entre a norma e a crise. Podemos ver neste movimento a afirmação de Eça de Queirós, segundo a qual a História é uma velhota que se repete sem cessar, ou essoutra visão do devir humano em que os acontecimentos surgem sob o símbolo do pêndulo. Ou seja, periodicamente há uma repetição modificada de convulsões e pacificações, de disforias e euforias, de depressões e acalmias. Houve mesmo quem, a partir desta concepção da História, teorizasse o percurso das revoluções científicas, sublinhando que a passagem de uma norma a outra norma (ou seja, de um paradigma a outro paradigma) só se faz através de períodos mais ou menos dilatados de crise e de intensa discussão.

Se olharmos atentamente, sem paixão mas com interesse, para tudo quanto se vem passando no mundo ocidental, sobretudo nos países sujeitos a uma penúria financeira (entre os quais, Portugal), não é difícil perceber que se inicia, agora de forma generalizada, um período de transição nas relações sociais, políticas e económicas. O paradigma anterior estilhaçou. O que era normal deixou de o ser. Há muito que vozes autorizadas e clarividentes o vinham anunciando, algumas delas há mais de um século. Mas foi preciso que a norma vigente – suportada não pela dignidade humana, mas pelo império do dinheiro, dos jogos financeiros e das suas diabólicas seduções e intenções – rebentasse, para que todos nos movimentássemos e começássemos a agir.

É esta a crise – e não apenas a falta de dinheiro nas nossas contas bancárias. Há quem lhe chame “crise de valores” – e não está mal visto. Creio que ela não cessará enquanto os seres humanos não mudarem por completo as suas relações com a Natureza, com a Memória, com os seus semelhantes, com o Poder político e social, com o Trabalho, com a Educação, com a Saúde, com o dinheiro, com tudo quando os rodeia, os eleva e os limita.

A maioria dos nossos concidadãos, por enquanto, ainda reivindica apenas uma “devolução”, a devolução de um tempo dourado em que não faltava numerário (próprio ou emprestado) para tudo e mais alguma coisa. Mas, a pouco e pouco, vão-se ouvindo frases que desejam uma mudança verdadeira e completa. Infelizmente, a miopia, a falta de conhecimento da História ou a maldade leva muitos dos autores dessas reivindicações a misturarem realidade com ficção, a desejarem (consciente ou inconscientemente) o regresso a “soluções” que, de forma directa ou indirecta, deram nascimento a algumas das maiores monstruosidades políticas e sociais dos últimos cento e cinquenta anos. Lembro o comunismo nas suas várias expressões localizadas e, obviamente, o nazismo e outras formas de poder tirânico mais ou menos evidentes. É preciso ter muito cuidado neste tempo em que “Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem.” (Fernando Pessoa).

Angustia-nos termos consciência de que este período de crise ou de transição poderá ser mais longo do que se espera. Mais tarde ou mais cedo, afectará, assim o creio, todos os países que têm vivido sob o mesmo paradigma (mesmo aqueles que agora se apresentam como “credores”), norma em que o ter estrangulou o ser. A resistência deve ser feita tendo em conta a memória ou lembrança do que nos antecedeu e cessou e um olhar virado para o futuro, esperançoso. Se necessário, não deveremos ter medo de “abdicar” para sermos outra vez “reis” do nosso destino. Talvez tenhamos de admitir as palavras de Teixeira de Pascoaes, ditas em 1925: “[…] estamos numa época caótica e de transição, de que há-de nascer uma nova harmonia social, para além de quaisquer formas de governo, que não me interessam. […] É preciso […] que se dê uma grande renascimento religioso, porque só pela religião, pela Fé em Deus, se pode redimir a Humanidade.
 
 
 

RUY VENTURA (Portalegre, 1973) .
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