Há
cerca de uma dezena de anos participei em Castelo de Vide numa tertúlia
que teve como pretexto uma obra de José Luís Peixoto, publicada havia
pouco tempo. Em dado ponto da conversa, o conteúdo do romance levou os
presentes a reflectirem sobre o estado do interior, em geral, e do
Alentejo em particular. Estávamos nós tecendo considerações, quando um
cidadão lisboeta, com ar de hippie fora de prazo, resolveu
afirmar com sobranceria: “Eu cá gosto muito do Alentejo porque é
deserto... tem pouca gente... Assim é que é bom!” Todos entendemos
que não se referia ao deserto simbólico dos místicos. Com visível
incómodo, olhámos uns para os outros. O silêncio imperou. Até que um dos
presentes respondeu ao indivíduo: “O senhor diz isso porque é um gajo
bem amanhado. Tem dinheiro suficiente para ir à capital a bons médicos,
para encontrar naquelas bandas o que aqui falta. Mas, e quem cá mora e
de cá não pode sair?” O forasteiro nada retorquiu – nem poderia
retorquir. E o colóquio informal continuou, ignorando-o, sobre as causas
do suicídio no Alentejo. Chegámos à conclusão de que o alentejano se
mata, se sacrifica, quando perde a dignidade. (E quanta dignidade lhe
têm retirado, uns que “gostam muito do Alentejo” mas só sabem
espezinhar quem por lá habita, outros que, sendo alentejanos, gostam de
fomentar um viver social pequenino e dependente, o melhor meio para
exercerem o seu caciquismo político, económico, social e/ou cultural.)
De
vez em quando vêm-me à memória os dilates do hippie fora de
prazo, sobretudo quando me confronto com algumas medidas que os últimos
governos têm vindo a pôr em prática. Quem as vê de longe – e nenhuma
estima ou compreensão o liga às distantes terras da “província”,
às suas necessidades e à sua cultura – pode até vislumbrá-las como
benéficas, redutoras da despesa do Estado e fomentadoras do
desenvolvimento tecnológico. (Encerrar escolas é bom, segundo afirmam,
pois colocará todos os alunos num só edifício com condições para atingir
o seu sucesso. Obrigar homens e mulheres a deslocarem-se, em plena
noite, a um centro de saúde fora da sua área de residência pode até ser
positivo, pois terão cuidados médicos que na sua terra não teriam.
Obrigar as elvenses, por exemplo, a terem os seus filhos na maternidade
de Badajoz é porreiro, pois assim ficarão com a cidadania espanhola, que
os seus pais já vão adoptando quando fazem nas localidades extremenhas.
Extinguir freguesias e concelhos rurais até está bem visto – pois que
falta faz uma junta ou uma câmara municipal à porta, se a podem ter a
trinta ou quarenta quilómetros de distância...) Quem conhece o interior
português e lhe tem amor sabe que essas medidas são uma machadada fatal
na dignidade de quem lá vive. Concretizadas ou pensadas pelos mais
recentes gestores da coisa pública, mas idealizadas por decisores que
são peças da sinistra engrenagem da desumanização, são um veneno que
aniquilará a vida de muitas aldeias e vilas.
Claro que nada disto interessa a quem vê as aldeias apenas como fontes
de rendimento. Gente dessa (indígena ou forasteira) tem pena quando uma
aldeia começa a ser muito habitada, pois nesse momento as casitas
baratas passarão a ter um justo preço. Não se preocupa quando uma
localidade deixa de ser autarquia, quando perde o médico, o posto de
correios, a farmácia ou a escola, quando os centros de saúde deixam de
oferecer atendimento permanente, quando as maternidades passam a ser
ambulâncias paradas na berma da estrada... As pequenas terras são, para
essa turma de patos-bravos, pavilhões de caça ou campos de férias,
lugares de passagem transformados em não-lugares, em locais sem vida,
cenários para turista ver ou áreas de serviço.
Os
reis dos primeiros tempos da nossa história pelo menos legislavam
favorecendo a fixação das populações. Os nossos governantes fizeram e
fazem o contrário. Primeiro esqueceram os habitantes do interior, não
pondo em prática quaisquer estratégias que contrariassem o êxodo,
adubando antes os caciques locais (que, diligentemente, pela sua
passividade, pela sua mediocridade e pelo seu fechamento, obrigaram à
fuga da população residente, sobretudo a mais jovem). Agora, retiram aos
portugueses que restam no interior condições mínimas de dignidade – para
que o esvaziamento se complete e mais facilmente cerquem a sua coutada
com arame farpado, real ou simbólico. Não tenhamos dúvidas: para muitos
cidadãos sem raízes nem moralidade (que vêem na “província”
apenas uma terra de cafres e de broncos), a atracção do mundo rural será
tanto maior quanto mais rapidamente se transformar num deserto. Então
poderão reinar – e, talvez, passear com ligeireza a sua cáfila.
Ruy
Ventura |