Moro a trinta quilómetros de Lisboa. Nas minhas (poucas) passagens pelos centros comerciais que nascem como tortulhos em redor da capital portuguesa, é frequente encontrar portalegrenses em passeio de compras, entrando e saindo das lojas que povoam esses espaços de transacção. Acontece verificar o mesmo sempre que me desloco às cidades espanholas da Extremadura. Com razão ou sem ela, todo e qualquer lagóia que se preze e tenha dinheiro no bolso (ou pense tê-lo) parece preferir sair da sua cidade e região para gastar o ordenado que por lá ganhou. Podem trazer para o seu dia-a-dia os mesmos artigos que mais facilmente comprariam nas ruas de Portalegre, mas comprar fora tem outro estatuto, alimenta os comentários no emprego e as conversas na pastelaria.
Pensando a partir desta constatação, comecei a entender o que levou ao ar acabrunhado das ruas de comércio existentes na cidade onde nasci mas não fui criado. Quem se disponha a dar um passeio desde o início da rua de Santo André até ao Corro – subindo a rua Direita, passando pelo arco da Devesa e ascendendo pela rua do Comércio com passagem pela da Carreira e entrada na praça pelas portas de Alegrete – depara-se com um cenário entristecedor e deprimente. Lojas (até há poucos anos florescentes) estão fechadas e, a seu lado, outras ostentam o anúncio de trespasse – declaração verbal de estado comatoso que ombreia com idêntica afirmação não-verbal daqueles espaços comerciais onde os empregados ou os proprietários têm um olhar vazio, ou virado para o vazio, perante a ausência dos clientes. Há comerciantes que lutam pela modernização das suas casas, mas nada parece dar resultado. Outros desistem ou persistem na preguiça, deixando os estabelecimentos no exacto estado em que estavam há trinta-quarenta-cinquenta anos.
Vejam-se os cafés… Neste momento poucos conseguem beber uma bica e ler o jornal no Rossio – onde antes coexistiam o Facha, o Plátano e a Cadislegre; aí pouco mais salta à vista do que as lojas de quinquilharia chinesa. O Central já teve melhores dias. O Alentejano lá vai sobrevivendo com vetusta dignidade (até quando?). Tente o leitor, que não conheça bem Portalegre, beber um café na cidade velha na tarde dum domingo soalheiro… Acabará por desistir e rumar até Castelo de Vide, onde menos habitantes dão mais vida a uma vila com coluna vertebral. E a praça? A praça, apesar de todos os arranjos cuidadosos, tem quartas e sábados que são uma mísera sombra do movimento comercial de há poucos anos…
Ao lado do mamarracho mastodôntico que ofende a discrição abnegada dos doadores de sangue de Portalegre, o quadro humano no interior dos hipermercados (quatro? cinco? seis?...) é mais povoado. A irresponsabilidade (ou os interesses) das várias gestões autárquicas dos últimos anos não hesitou sangrar os comerciantes cujas pequenas empresas davam vida à cidade alta. Essa estratégia está a custar e custará muito caro a Portalegre e aos seus moradores. Porque uma cidade a que não estancam uma hemorragia grave acaba por definhar (ou morrer) enquanto espaço económico e cívico vivo. |
RUY VENTURA (Portalegre, 1973) é professor na península da Arrábida, a trinta quilómetros de Lisboa. Publicou, em poesia, Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa, 2003), Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003), Um pouco mais sobre a cidade (Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem (Badajoz, 2006); em 2009 editará o original Chave de ignição, com edição simultânea em Portugal (edições Cosmorama) e em Espanha (Littera Libros). Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra de São Mamede (Almada, 2005), Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (na revista Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro José do Carmo Francisco, uma aproximação (Almada, 2005). Traduziu a antologia 20 Poetas Espanhóis do Século XX (Coimbra, 2003) e os livros de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado (Coimbra, 2003), Jola, de Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A Árvore-das-Borboletas, de Anton van Wilderode (Badajoz, 2003). É colaborador de várias revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras e americanas. Poemas e/ou livros seus estão traduzidos em castelhano, francês, inglês e alemão. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea, Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia.
Coordena o blogue Estrada do Alicerce (www.alicerces1.blogspot.com). |