RUY VENTURA........
Quatro poemas de Álvaro Valverde

Tradução de Ruy Ventura
Então, a morte

1

Na cabeça, palavras amargas;

palavras dolorosas

pelo seu peso de morte.

Nos olhos, tristeza.

E de súbito, ali,

numa esquina apertada da terra,

algo te reconcilia com o tempo.

Uma árvore devolveu-te a esperança.

Com ela regressou essa verdade,

para o resto sempre precária,

com que se pode justificar até a vida.

Com a visão humilde de um marmeleiro.

2

Junto desta cama de hospital,

utilitária e branca, em que agora

descansa o corpo doente do meu pai,

neste mesmo sítio onde agora

eu mesmo estou sentado,

esteve um dia ele

velando o seu.

Recorda-mo às vezes, lá pela noite,

quando apagam as luzes do corredor

e se ouvem os passos silenciosos

do pessoal de vigia

e a tosse do vizinho e o gemido longínquo

de alguém que sofre alheio

no quarto do fundo.

Em voz baixa, conta outras noites de insónia

semelhantes a esta,

ainda que ele não fosse então

o sujeito passivo dos meus inábeis cuidados

e somente o representante dessa força

que sem dúvida tiramos da fraqueza

para poder estar à altura

de tão penoso acontecimento.

Entre duas luzes,

com a respiração forçada do oxigénio,

enquanto altera as doses no conta-gotas,

penso em mim por momentos

e, sem querer,

vejo-me a mim mesmo

estendido nesta cama,

e, ao meu lado, sentado, como eu,

na mesma cadeira,

um dos meus filhos segurando

com muita força a minha mão.

3

Na realidade, não sei

se vamos ao encontro da morte

ou se provimos já da sua certeza.

Não me recordo, de qualquer modo, alheio

à sua larga sombra sigilosa.

Ali estava, no escuro, na enfermaria,

ao fundo do corredor, na penumbra

daquele mesmo canto em que agora

estou encolhido contra o tempo.

Estava nas palavras sussurradas

e estava nos silêncios clamorosos

e nos olhos tristíssimos e húmidos

dos meus pais voltando da igreja

sem outras explicações para além das naturais.

Estava ali, sem dúvida,

e sempre estivera

fazendo-me a mesma companhia

e sei perfeitamente como cheira

e a formas que adopta e reconheço,

como se fossem minhas, as suas mentiras.

Por isso tenho dúvidas se vamos morrer

ou de uma vez por todas deixaremos

de estar já nesta vida mortos.

4

Tudo me leva a ti; assim, esta tarde

aberta ao céu azul que sucedeu

ao irado negrume da tormenta,

sob esta luz que, mais do que vespertina,

me parece ofuscante e matinal,

quando atravesso o vale

e volto a Jerte, sem conhecer a razão,

seguindo não sei bem que raro impulso,

curva a curva, bem sabes, leito acima,

até às mesmas nascentes da vida.

É tudo igual, porém também diferente,

e me remete para ti. E as cascatas,

e os talhões e o rio e as cerejeiras

parecem ser olhados pelos teus olhos

e através deles ainda me falas

e voltas a explicar-me o importante:

sentir-se aqui feliz e rodeado

de quanto qualquer homem necessita:

a luz, o campo, a árvore, a montanha,

coisas, talvez, vulgares ou anacrónicas

mas que nos confortam e nos salvam;

os seres e as forças desse mundo

solar onde vivias;

onde, para meu bem, comigo vives.

Álvaro Valverde (Plasencia, Espanha, 1959) é autor de livros de poesia (Las aguas detenidas; Una oculta razón; Ensayando círculos; Mecánica terrestre), de ficção (Las murallas del mundo e Alguién que no existe) e de relatos de viagem (recolhidos em Lejos de aqui) – sendo considerado em Espanha um dos poetas mais importantes da sua geração. Os poemas aqui traduzidos pertencem à sua colectânea mais recente, Desde fuera, editada em 2008 pela Tusquets Editores (Barcelona) na sua colecção “Nuevos textos sagrados”.

RUY VENTURA (Portalegre, 1973) é professor na península da Arrábida, a trinta quilómetros de Lisboa. Publicou, em poesia, Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa, 2003), Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003), Um pouco mais sobre a cidade (Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem  (Badajoz, 2006); em 2009 editará o original Chave de ignição, com edição simultânea em Portugal (edições Cosmorama) e em Espanha (Littera Libros). Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra de São Mamede (Almada, 2005), Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (na revista Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro José do Carmo Francisco, uma aproximação (Almada, 2005). Traduziu a antologia 20 Poetas Espanhóis do Século XX (Coimbra, 2003) e os livros de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado (Coimbra, 2003), Jola, de Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A Árvore-das-Borboletas, de Anton van Wilderode (Badajoz, 2003). É colaborador de várias revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras e americanas. Poemas e/ou livros seus estão traduzidos em castelhano, francês, inglês e alemão. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea, Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia.
Coordena o blogue Estrada do Alicerce (www.alicerces1.blogspot.com).