Esta figuração é permitida por um pequeno, mas importante, pormenor de índole ortográfica. Decerto conhecedor de que nada existe enquanto memória se não existir primeiro enquanto expressão (verbal ou não-verbal), Júlio Maria dos Reis Pereira introduziu nas duas identidades-entidades em que se apagou para se dividir uma quase imperceptível modificação: suprimiu o acento da esdrúxula “Júlio” e acrescentou-o à aguda “Saul”. Há um passo de um texto seu de 1980 (“Nos Dois Pratos da Balança”) que nos parece significativo:
“[...] embora as artes plásticas me tenham ocupado muito mais tempo do que a poesia, a verdade é que foram os versos que mais alegria me deram (refiro-me à alegria interior que se sente quando uma obra realizada ou em realização nos sai bem). Não sei explicar isto, mas assim tem acontecido.”
Subvertendo as regras da língua portuguesa e da sua gramática, o autor empírico retirou ao acento gráfico a sua funcionalidade prática, transformando-o num sinal deíctico, num dedo que aponta para “Saúl Dias”, desviando a atenção de “Julio”, aquele nome que mais aproximaria o(s) seu(s) ser(es) poético(s) do cidadão Reis Pereira e levaria os leitores dos seus poemas e os observadores dos seus quadros a formarem com ele um pacto autobiográfico, que aparentemente desejou afastar.
Embora tenha passado mais tempo a pintar do que a escrever, tal como declara no excerto acima transcrito, a personagem em que mais se revê (isto é, a parte da sua obra em que mais se realizou enquanto eu-próprio-outro) é a do criador literário e não a do criador plástico. Ao contrário do que se tem proposto ao longo de décadas e por muitas vozes, Reis Pereira não é assim um pintor que escreve, mas um poeta que também pinta. A Poesia assume-se enquanto edifício largo, totalizador, de que a pintura é apenas uma das fachadas (ou, talvez, um dos pilares). Há um domínio maior, assinado pelo “fazedor” Saúl Dias, o da Poesia, do qual fazem parte tanto a obra versificada quanto a pintada e desenhada – processos diversos, linguagens diferenciadas que contribuem para o mesmo todo, embora os poemas se situem no patamar criativo mais importante.
Perante estes dados, não erraremos muito se considerarmos que toda a obra criada por Júlio Maria dos Reis Pereira foi por ele enquadrada numa ficção autoral. O autor empírico apagou-se logo de início, afastou-se para que a sua personagem, Saúl Dias, vivesse. Pseudónimo ou semi-heterónimo, num processo de inversão identitária, enquanto na realidade material “Júlio” é o homem e “Saul” a sua invenção virtual, na escrita o jogo transfigurador inverte os termos: é “Saúl” o ser vivente que assina os poemas e, em simultâneo, pinta sob o nome de “Julio”. |
Se a ficção autoral apenas se vislumbra nos indícios deixados na fixação onomástica, a figuração do Poeta enquanto personagem dentro do poema e da pintura está bem presente em toda a produção de Saúl Dias-Julio. Mais evidente na justamente célebre “Série Poeta” (conjunto de desenhos e de pinturas que têm como tema a personagem que lhe dá título), encontra-se também presente ao longo da sua poesia. Excluindo os dispersos e inéditos recolhidos postumamente nas suas poesias completas, não podemos menosprezar o facto de que, em todos os seus livros, se encontram textos onde, de forma mais desenvolvida ou mais elíptica, se reflecte sobre o fazer poético ou sobre a figura idealizada do Poeta.
O primeiro poema do seu livro inicial, ...mais e mais..., de 1932, é uma declaração de princípios, um prefácio a toda a sua obra, um programa de vida para essa personagem dupla, Saúl Dias-Julio, que produzirá durante mais de cinco décadas uma obra ímpar na literatura de expressão portuguesa e nas artes plásticas lusas.
Um obra chã, próxima do húmus terreno e humano, nasce da contemplação e do confronto com essa trindade identitária e vital, triangulada em verbos que procuram resumir toda a vivência psicológica de um ser arquetípico, que se torna personagem de uma “história” (como refere Júlio Reis Pereira no artigo citado no capítulo anterior):
“(Aquele triângulo, ali, / pintado a rubro no chão, / desperta em mim a obsessão / de que tudo o que eu senti, / amei, chorei ou sorri / era pintado no chão.)”
Não sem antes se situar esteticamente perante a literatura e a arte do passado, defendendo implicitamente, na senda dos manifestos do Segundo Modernismo português, assinados por José Régio na revista presença, uma “literatura viva”, mais autêntica (ainda que, para ele, a defesa da “sinceridade” levada a cabo pelos presencistas como valor artístico e literário se configure antes, ao longo dos seus poemas, como uma procura da veracidade e de outros fundamentos que adiante descortinaremos). Há um claro corte com o passado:
“Eram outras as guitarras / e as melodias intensas... / Partiram-se as cordas tensas / que eram enormes amarras, / a separar-me das charras, / medíocres existências!...”
Um corte que se faz, sobretudo, pela escavação interior, na consciência de que a exploração de um “corpo” exterior poderá revelar a sujidade de uma alma, até aí escondida. O psicologismo (decorrente, talvez, de leituras de Dostoiewsky e das intuições especulativas de Freud) é evidente, assumido enquanto caminho para o encontro com a verdade ontológica:
“A inconsciente devassa / cujo corpo é uma tulipa, / esguio como uma ripa, / airoso como o da garça!... / A perturbante comparsa / transmudou-se em suja pipa.”
A proposta do poema inicial de Saúl Dias é, no entanto, consequente. Não se dirige aos outros, mas a si próprio. O lirismo de imparável escavação / desvendação interior é assumido pelo sujeito poético:
“Que os meus versos sejam líricos / e me desvendem!... Ascendam / e – maravilha! – se acendam / quando a noite toda em círculos, / como o falar dos ventrílocos, / de ignoto brota... se estendam!... // Que eles sejam o reflexo / de tudo o que me embriaga: / esta ânsia que me alaga, / e as exigências do sexo, / e os pensamentos sem nexo, / e aquela hora toda chaga... // e esses minutos todos / ferindo-me quais punhais, / e risos, lágrimas, ais, / e rios de oiro e de lodo, / e esse vago, estranho modo... / isto tudo... e mais e mais...”
O resultado expressivo, vertido em textos versificados, é no entanto o da incompletude. Fragmentos poéticos resultantes de um ser fragmentado, imperfeito, são assumidos pelo autor textual enquanto excrescências também imperfeitas. A ironia remata o poema, como forma de desconstrução da solenidade que, por vezes, rodeia o ideal romântico do Poeta, enquanto figura superior, aureolada. O triângulo poético pinta-se no chão, lembremos... Não é apenas uma humildade ritualizada, feita de falsas modéstias. Trata-se de um sarcasmo auto-crítico, que deseja destruir a vaidade de ser Poeta:
“Os meus poemas bizarros / quase nunca os acabo. / São um luxo de nababo / p’r’os meus nervos afiados. / Inacabados, quebrados, / lembram-me galos sem rabo.”
Saúl Dias irá aprofundar (por vezes modificando pequenos pormenores) estes propósitos ao longo da sua obra curta, quase bissexta. A escolha da onomástica literária não é alheia a este poema-prefácio. “Saul” foi o primeiro rei de Israel escolhido por Javé, destronado por David, devido à sua ignomínia. A unção (real ou poética), parece dizer-nos, pode ser revogada a qualquer momento se a soberba pretender elevar a criatura acima do criador. “Dias” parecem ser, simplesmente, os dias vividos, o quotidiano passado conservado na memória, que o sujeito poético – seguindo as teorias de Bergson – pretende restituir ao presente, iluminando-o, dando-lhe assim capacidade para se projectar no futuro. Assim no-lo indica um soneto publicado no livro Ainda, como cólofon:
“Eu não quero esquecer os dias que viveram. / Por eles escrevi estes versos mofinos; / escrevi-os à tarde ouvindo rir meninos, / meninos loiro-sóis que bem cedo morreram. // Eu não quero esquecer os dias que enumeram / desejos e prazeres, rezas e desatinos; / e, em loucuras ou entoando hinos, / lá na Curva da Estrada, azuis, desapareceram. // Eu não quero esquecer dos dias mais felizes / a bênção branca-e-astral, lá das Alturas vinda, / nem tampouco o travor das horas infelizes. // Eu não quero esquecer... Quero viver ainda / o tempo que secou, mas que deixou raízes, / e em verde volverá, e florirá ainda...”
Rei destronado à procura dos dias perdidos? Assim parece ser. Ente desdobrado, “os dias consome / a cantar ao desafio, / ao desafio consigo” (in Essência). Saúl Dias não parece considerar-se sequer poeta. Se fala com voz própria quando trata de reflectir sobre a estrutura muscular e óssea do poema, esta personagem criada por Júlio Maria dos Reis Pereira (talvez imagem espelhada de si próprio) pronuncia-se sobre o Poeta (e dirige-se ao Poeta) sempre como de alguém exterior a si, como de uma terceira pessoa. Descreve-lo como um ser ideal, fora do mundo, asceta e mendigo, vagabundo, louco, visionário, humilde, recolector de imagens visíveis ou invisíveis, transmissor de emoções, de sentimentos e de experiências, solitário, temerário, eternizador dos instantes (“Uma palavra quente! / Uma palavra para todo o sempre!”, in Essência) ao lutar contra “o Tempo / irreversível e eterno” (in Essência), com “a pretensão / de que [um] intenso clarão / [é] um sinal lá dos céus, / e de, no meio do assombro, / [pressentir] a mão de Deus / tocar-lhe, amiga, no ombro” (in Essência). Um ser distante de si – como se revivesse o cenário bíblico de um Saul impotente e transviado, substituído por David, o verdadeiro rei e poeta.
Nisto tudo, há a procura da leveza, expressão do pensamento essencial que só se concretiza no extremo rigor da exactidão de uma palavra:
“Na tarde longa / imaginei um longo poema. / Depois, / fui-o encurtando / e reduzi-o a pequenos versos. // Quisera que os meus versos / fossem duas palavras apenas, / aéreos como penas, / leves / como tons dispersos…” (in Sangue)
Ao longo de toda a sua busca, Saúl Dias vai encontrando “receitas”, expressas em diversas artes poéticas que tenta concretizar. À maneira de Rainer Maria Rilke, pensa que “Versos / escrevem-se / depois de ter sofrido. / O coração / dita-os apressadamente. / E a mão tremente / quer fixar no papel os sons dispersos. // É só com sangue que se escrevem versos.” (in Sangue)
O poema, “estranha rosa / rubra e preta”, abre-se “na alma do poeta”, porque é a fixação de “uma pena”, de quem sente “estoirar / o calabre / do coração, / nostálgico do éden…” e deve deixar “o coração sangrar” (in Gérmen).
Sujeito à transitoriedade da existência, o texto poético, nascendo da meditação (ascética?) nos domínios da imaginação, é “Um esquema dorido. / Um teorema / que se contradiz. / Uma súplica. / Uma esmola ” que transmite as dores do Homem, “vividas umas, sonhadas outras… / (Inútil destrinçar.)” (in Essência).
A Saúl Dias interessa sobretudo a capacidade fertilizadora do texto, matéria orgânica que alavanca o crescimento do mundo e a ressurreição da vida. Como as rosas, que não devem conservar-se numa jarra, porque murchariam:
“Joga-as fora! / A valeta / que dessora / húmida, quente, / fá-las-á reviver / em húmus, sangue, lume… // E, rosas outra vez, / serão cor e perfume, / abraçando o jardim / de lés a lés…” (poema inicial de Gérmen)
Na hora da morte (isto é, no final da narrativa que se inicia com o primeiro poema de Saúl Dias e termina com o último publicado num livro em vida), o autor textual – que vê na Poesia um vislumbre de alegria, mesmo na doença e na dor (“Mesmo na dor / a sua alma é contente / se uma rima fugace / poalha de harmonia / um verso recortado…”, in Essência) – sabe que o Poeta, cessante enquanto ser biológico, não cessa enquanto ser virtual e verbal que é. Como José Duro nos versos finais de Fel (1898), sabe que “enquanto escreve / vive ressuscitando fugidias horas / mudadas em auroras…” (in Essência), porque a permanência de um escritor, ser feito de palavras, se deve à actividade revivificadora dos leitores, multiplicadores de sentidos.
O testamento de Saúl é, no entanto, mais uma manifestação do sentimento de incompletude de um caminho. O Poeta, até aí um ser ideal a alcançar na sua eminência, passa a coincidir com o sujeito da escrita. Poeta-desejo, sente que nunca alcançou a meta desejada (“Dias e dias / a tentar um verso, uma rima… / (um pobre verso, uma pobre rima…)”, in Vislumbre), conseguindo embora manter a alegria da ingenuidade infantil (“no coração do Poeta / há música, foguetes / e bandeiras ao vento… / (como outrora, na infância, nalgum dia de festa…”, in Vislumbre).
No fundo, sabe que a Poesia é um interminável exercício de depuração interior, manifestação da “sabedoria da linguagem, […] uma aventura de linguagem” (Ruy Belo, 1970). Um Poeta ideal ou idealizado chegaria ao fim. Na sua humildade, Saúl Dias tem a convicção de que ficou a meio do caminho. Numa estrutura circular, o poema final da sua obra retoma, meditativo, um sentimento semelhante ao expresso, de forma irónica, no início:
“Só conheço, talvez, uma palavra. // Só quero dizer uma palavra. // A vida inteira para dizer uma palavra! // Felizes os que chegam a dizer uma palavra!” (in Vislumbre)
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Júlio Reis Pereira afirmava que a “Série Poeta” contava a mesma narrativa presente nos poemas de Saúl Dias. Podemos afirmar que os desenhos e as pinturas do conjunto pictórico mais conhecido de Julio legendam (lêem e interpretam) os poemas. E não apenas esse ciclo coerente, mas muitas outras obras plásticas que, ao contrário do que poderá parecer, não ilustram um texto, mas iluminam-no, desverbalizando-o, de modo a torná-lo, talvez, mais universal.
Praça onde confluiram várias avenidas da arte europeia do século XX, foi José Régio quem – em nosso entender – melhor compreendeu essa centralidade do pintor. Não existem influências, se as entendermos enquanto processo epigonal. Como refere o autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos… , num texto de 1967, na pintura de Julio
“[…]cabem manifestações tão diversas como a de um expressionismo violento, alimentado por uma tendência caricatural, dramática, satírica; a de uma espécie de dadaísmo muito pessoal (ou ultra-realismo) gerado no pendor tão instintivo como consciente para certos achados da arte infantil ou popular; a de um realismo mágico – feliz expressão que gozou em tempos de certo prestígio – transfigurador da realidade através das semialucinações do sonho; a de um decorativismo fundado na cor e na construção; ou a de um moderno classicismo banhado no lirismo congénito […]”
Num artigo de 1935, o mesmo autor já diagnosticara:
“Do futurismo, do cubismo, do dadaísmo, do expressionismo, do super-realismo […] resulta, embora não sistematicamente, o que nesses quadros e desenhos é mais característico de uma certa época de pintura. Neles perpassam ecos das vozes dos seus principais criadores ou intérpretes, e efeitos da vasta literatura especulativa ou crítica sobre tais escolas e mestre. […] / […] Nada, porém, […] se refere propriamente ao íntimo da obra de Julio. […] A aceitação de quantas inovações e liberdades trouxe à pintura moderna não aparece na obra de Julio senão como meio da mais completa expressão. Por isso se não poderá dizerdele que seja um futurista, um cubista, um super-realista, ou qualquer ista puro – ainda que dos vários ismos se aproveite a sua arte. E dizendo que ela se aproveita deles, disse tudo.”
Ao olharmos para a globalidade da obra pintada e desenhada pelo pseudónimo de Saúl Dias, mesmo para aqueles quadros onde mais se nota uma expressão sarcástica, a primeira e principal impressão com que ficamos é a da permanência em todo o lado de uma extrema leveza. Italo Calvino, num ensaio dos anos ’80 (in Seis Propostas para o Próximo Milénio, 1990), considerava a leveza um dos valores fundamentais a serem transmitidos como herança ao futuro (que já começámos a viver). Em conjunto com a exactidão e com o rigor (propostas também para este novo tempo), a leveza e a luminosidade da arte verbal e não-verbal criada por Júlio Maria dos Reis Pereira faz dele não só um autor universal, como o “proprietário” de uma obra que o futuro ganhará em observar, lendo e legendando.
O irmão de José Régio contou certo dia um sonho que tivera, onde se via avaliado no dia do Juízo Final. Perante o peso dos seus pecados, colocou na balança das virtudes quanto criara de belo na “Série Poeta”. A balança começou a pender para o lado da salvação. Em 1980, “dez anos passados sobre essa antevisão”, assaltava-o uma dúvida: “terão ainda esses desenhos peso suficiente para forçar a descer o prato?” A pergunta ficou sem resposta. Não sabendo nós responder – por não conhecermos totalmente a cotação junto de tal juiz das boas obras artísticas (apesar de vermos hoje beatificado pela Igreja um pintor como Fra Angelico…) –, resta-nos uma convicção interior. Podemos até estar enganados; acreditando nós que a Justiça não será cega no futuro, parece-nos contudo que nesses tempos se julgará toda a obra de Saúl Dias-Julio (não só a “Série Poeta”, mas a sua pintura inteira e toda a sua poesia) como virtudes e valores a preservar e a transmitir.
Aljezur e Cotovia, Páscoa / 2007
(para o Eng. José Alberto Reis Pereira)
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