A memória é agora um montão de brasas fumegantes no meio de uma paisagem desolada. Os dias são barcos que se afundam lentamente rasgando a pele do mar, com seu fundo lamento que faz tremer o pano do horizonte.
O ruído da cidade concentra-se na minha cabeça, e anuncia com sua oxidada monotonia o sarmentoso passo da vida. Fica para trás a terra ao atravessar esta porta; para trás, muito para trás ficam as vozes afogadas pelo açoite do tempo.
O espelho da noite abre-se às trevas do mundo.
Anoitece. A bruma destrói a paisagem onde tem sentido esta casa e deixa-la vazia, oca, esperando que a quietude do momento acolha algum milagre.
O solo que pisas enche-se de fendas.
A recordação é uma arma inútil, o hóspede definitivo de uma fogueira que nunca se apaga. As brasas de outros dias repousam a teu lado vás para onde fores. Como é possível que não me tivesse dado conta de que o meu coração também ardia?
O próprio incêndio acalma a tua espera. O eco de um latejar assegura o regresso a uma casa habitável.
Que é esta serena força que dilata a alma e a liga à vida?
Chega o momento de ver em silêncio o trânsito dos dias felizes até outra morada.
Habitamos uma paisagem de cartão onde a vida não é mais do que uma caixa de sapatos esquecida no fundo do armário. Um dia descobrimo-la quase sem querer e esforçamo-nos por ver os tesouros que contém: o valor de uma palavra, o calor de um abraço, a vida de um amigo. Coisas que não cabem numa caixa de cartão e que, por isso, às vezes fazem estalar as suas frágeis paredes construídas com nomes que o pó vai ocultando.
No que fica do mundo, alguns homens constróem paredes que escoram com madeiras partidas. Um deles coloca uma flor num vaso de cristal.
É impossível não ver, a cena repete-se em todas as partes. Um sopro de vento destruirá quanto criaram com suas mãos.
Para além do bosque a tarde prolonga-se, aguarda uma luz diferente, mais alta.
A casa está deserta neste instante em que a luz se concentra no terraço. Pousas delicadamente a tua mão sobre o meu ombro e reconciliam-se estas horas de outono com as densas neblinas de outro tempo. Passamos assim os dias, em sua lentidão, pressentindo a frágil frialdade do mundo, sem reparar na poeira escura e húmida que cresce sem remédio à nossa volta.
Que rumor é esse que alivia a nossa espera e que faz com que se aninhem aves no peito como o faziam noutro tempo? Ilumina-se o mundo com esse gesto simples, com esse tremor da pele nua que nunca foi tão transparente.
Às vezes desvanece-se a névoa e é azul e dourada a alegria. |