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ANTONIO SÁEZ DELGADO: DIAS, FUMO
(Tradução de Ruy Ventura)
ALMA AZUL . 2003

DIAS, FUMO - INDEX

PARTE III

A memória é agora um montão de brasas fumegantes no meio de uma paisagem desolada. Os dias são barcos que se afundam lentamente rasgando a pele do mar, com seu fundo lamento que faz tremer o pano do horizonte.

O ruído da cidade concentra-se na minha cabeça, e anuncia com sua oxidada monotonia o sarmentoso passo da vida. Fica para trás a terra ao atravessar esta porta; para trás, muito para trás ficam as vozes afogadas pelo açoite do tempo.

O espelho da noite abre-se às trevas do mundo.


Anoitece. A bruma destrói a paisagem onde tem sentido esta casa e deixa-la vazia, oca, esperando que a quietude do momento acolha algum milagre.
O solo que pisas enche-se de fendas.

A recordação é uma arma inútil, o hóspede definitivo de uma fogueira que nunca se apaga. As brasas de outros dias repousam a teu lado vás para onde fores. Como é possível que não me tivesse dado conta de que o meu coração também ardia?


O próprio incêndio acalma a tua espera. O eco de um latejar assegura o regresso a uma casa habitável.

Que é esta serena força que dilata a alma e a liga à vida?


Chega o momento de ver em silêncio o trânsito dos dias felizes até outra morada.

Habitamos uma paisagem de cartão onde a vida não é mais do que uma caixa de sapatos esquecida no fundo do armário. Um dia descobrimo-la quase sem querer e esforçamo-nos por ver os tesouros que contém: o valor de uma palavra, o calor de um abraço, a vida de um amigo. Coisas que não cabem numa caixa de cartão e que, por isso, às vezes fazem estalar as suas frágeis paredes construídas com nomes que o pó vai ocultando.


No que fica do mundo, alguns homens constróem paredes que escoram com madeiras partidas. Um deles coloca uma flor num vaso de cristal.

É impossível não ver, a cena repete-se em todas as partes. Um sopro de vento destruirá quanto criaram com suas mãos.

Para além do bosque a tarde prolonga-se, aguarda uma luz diferente, mais alta.


A casa está deserta neste instante em que a luz se concentra no terraço. Pousas delicadamente a tua mão sobre o meu ombro e reconciliam-se estas horas de outono com as densas neblinas de outro tempo. Passamos assim os dias, em sua lentidão, pressentindo a frágil frialdade do mundo, sem reparar na poeira escura e húmida que cresce sem remédio à nossa volta.

Que rumor é esse que alivia a nossa espera e que faz com que se aninhem aves no peito como o faziam noutro tempo? Ilumina-se o mundo com esse gesto simples, com esse tremor da pele nua que nunca foi tão transparente.

Às vezes desvanece-se a névoa e é azul e dourada a alegria.

RUY VENTURA (Portalegre, 1973) é professor na península da Arrábida. Publicou, em poesia, Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa, 2003), Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003) e Um pouco mais sobre a cidade (Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem (Badajoz, 2006 – no prelo). Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra de São Mamede (Almada, 2005) e Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (na revista Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro José do Carmo Francisco, uma aproximação (Almada, 2005). Traduziu a antologia 20 Poetas Espanhóis do Século XX (Coimbra, 2003) e os livros de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado (Coimbra, 2003), Jola, de Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A Árvore-das-Borboletas, de Anton van Wilderode (Badajoz, 2003). É colaborador de várias revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras e americanas. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea, Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia.