O dia entoa a sua última canção, o latejar final da tarde espera-nos.
A tua voz passeia entre sombras, chegada de um tempo que arrasta sacos de areia e os despeja na memória. Pensas no desejo que noutras vezes alentou a tua vida, e que cobre agora toda a habitação com suas velhas mantas remendadas, como um vagabundo que dormita sobre um montão de escombros.
Sei-o. O tempo tudo devasta. É em vão este empenho de passar em cada dia por uma paisagem de casas desoladas como animais feridos. Sei-o. O ruído da nostalgia torna-se insuportável. Caminho de uma estação à outra do inferno.
O som das velhas madeiras imita o ruído do mundo.
É verdade que um tempo existiu em que as horas se entregavam lavadas pela chuva, com uma suavidade estranha, como o murmúrio longínquo de uma oração sem sentido.
Sobre os lençóis cresce uma fogueira em que ardem as vozes de outros dias. Há flores murchas perto das brasas. Não é difícil escutar os lamentos que construíram as paredes da tua casa noutro tempo.
O coração treme ao ouvir a tua voz crepitando entre um mar de sussurros enquanto, junto de ti, um corpo nu respira em sua própria obscuridade, alheio ao fulgor que alumia o dormitório como uma carruagem de soledades que nunca se detém.
A noite abre os seus olhos infinitos e torna-se impossível reconhecer os poucos vestígios de vida abandonados por detrás destas paredes.
Na memória ressoa a mais triste de todas as canções. Fala-te do medo e de sonhos que são chagas no deserto dos anos. Areia e cinza misturam-se até desenharem o perfil exacto do tempo.
A luz vai cedendo à força da noite. Com a escuridão dissipam-se os limites da existência como o faz a silhueta da casa.
O frio converte em ruínas a paisagem deste outono.
Outra vez as estantes. Coloco lentamente os livros em caixas de cartão e detenho-me por vezes perante alguma lembrança. Vêm à luz os obscuros hóspedes dos interstícios de livros e prateleiras: uma fotografia, um par de bilhetes de comboio, postais com a voz de um amigo vinda de lugares que nunca visitaste.
Pouco a pouco, a ordem das tábuas vai cedendo à força da tua mão. E acendes a rádio e deixas-te levar pela mesma doçura daqueles domingos em que a sua voz era a única música que fazia girar o mundo. Com ela voa o tempo até ao último momento em que desmontaste os móveis e as vitrines. Era então a viagem mais longa, mais difícil sem dúvida.
As estantes também sofreram muitas mudanças. A poeira acumula-se sobre estas madeiras que um dia talhou meu pai e deixa sobre o ar um frio presságio que nos faz tremer no meio desta luz que parece rasurar tudo.
Com os anos, descobrimos que apenas no tempo se viaja, e aprendemos a domesticar as recordações e a construí-las à nossa imagem e semelhança. Não sabemos o que se esconde por detrás de cada dia de luz pálida que nos acolhe como hóspedes passageiros, como os frágeis habitantes que desafiam a poeira que cobre sem remédio o mundo.
O céu está quieto e mudo, devora tudo na fria penumbra desta solidão agreste, alheio à erosão feroz do costume.
Uma nuvem atravessa a memória.
Entre as ruínas reluz um punhado de mentiras, a vida disfarçada com roupas quotidianas.
Que armas nos restam perante tanto passado, se não habitarmos esta luz mansa que cai sobre os nossos passos e ressoa sempre na distância?
Uma música estranha incendeia o bosque que construíste durante tantos anos e, no entanto, tudo é repouso nesta hora. Nada espero que não seja esta lentidão que inunda a alma, sabendo que o mundo gira, monstruoso e sem pressas, alheio ao gesto que te devolve a vida.
Hoje brotou no terraço a primeira flor desta primavera. Leve e subtil, quase doente de tanta felicidade. E o dia despe-se perante a beleza dessa imagem que se reflecte na água que delicadamente verto no seu vaso.
Tudo volta a ser perfeito.
Quem se atreveria a quebrar esse frágil caule que faz girar neste instante a pesada nora desse mesmo mundo e dá sentido ao mapa em branco em que se converte a esperança? |