A grande maioria dos poetas, após a sua morte, tende a entrar num limbo que precede ou o esquecimento ou uma consagração duradoura. Numa sociedade como a nossa – em que a exposição pública nos grandes meios de comunicação social faz a notoriedade dos seres, mas nunca o seu génio –, a ausência física de um autor pode relegá-lo para as caves de um injusto (ou justo) esquecimento. A não ser que, previdente, tenha tratado em vida da sua presença póstuma, tenha deixado uma influência suficientemente forte para permitir uma continuidade temporal ou uma obra dotada de importância incontestável. Há ainda o caso de herdeiros diligentes ou de amigos bem colocados que, para não desmentirem as devoções manifestadas durante a presença biológica do poeta (seria vergonhoso reconhecer um erro ou uma amizade interesseira...), continuam a incensá-lo. Temos, depois, os casos (transversais) de necrofilia ou de antropofagia, em que certas hienas do meio literário aproveitam o silêncio de um autor morto para se banquetearem à vontade com a sua obra suculenta, manipulando-a ou mostrando dela apenas aquela parte que não incomoda ninguém ou, sobretudo, não macula a sua própria imagem de “especialistas”.
Existem sempre, é claro, os amigos e os leitores desinteressados que se encarregam de zelar pelo futuro da arte édita e/ou inédita dos seus poetas, mas esses pertencem a outro campo – e não é bom misturar o ouro com a trampa...
Reconheçamos, no entanto, com Fernando Pessoa: “o presente não vê para além do óbvio.” O futuro, às vezes longínquo, é sempre o grande juiz. O autor de Heróstrato ou a busca da imortalidade chega mesmo a afirmar: “Não é possível servir simultaneamente a nossa época e todas as outras, nem escrever o mesmo poema para deuses e homens.” E acrescenta: “Que as obras superiores acabam sempre por se evidenciar no decurso da sua futuridade é verdadeiro; mas também é verdadeiro que uma obra meritória de segunda categoria acaba sempre por se evidenciar na sua própria época. / [...] / Se o grande poeta aparecesse, quem aqui estaria para reparar nele? Quem poderá dizer se não apareceu já? O público leitor vê nos jornais recensões da obra de homens cuja influência e amizades os tornaram conhecidos, ou cuja subalternidade os tornou aceites pela multidão. O grande poeta pode já ter aparecido [...].”
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Quer se goste quer não da poesia de Al Berto, todos temos a obrigação de reconhecer que o autor d’ O Medo tem, por enquanto, fugido ao limbo que sucede aos poetas mortos. Em parte porque foi/é um autor influente – com a sua poesia desmedida, de um confessionalismo torrencial, matizado por imagens surreais –, em parte porque os seus herdeiros materiais têm diligenciado pela contínua publicação e divulgação da sua obra (por vezes em edições que nada acrescentam à glória do autor, mas apenas ao pecúlio de quem recebe os direitos), em parte porque a sua personalidade transgressora mas afectiva deixou marcas fundas de amizade em seres que, desinteressadamente, pensam ser seu dever pugnar pela memória integral do poeta de Horto do Incêndio, mesmo que isso os obrigue a sofrer a hostilidade de alguns habitantes das trevas do nosso pífio meio literário.
Joaquim Cardoso Dias – autor de um auspicioso O Preço das Casas – pertence ao último grupo. Fiel a uma amizade intensa (“Al Berto [...] foi o mais perfeito dos amigos que a vida me ofereceu”), resolveu organizar um livro como forma de homenagem ao autor nos dez anos da sua morte. Sem interesses subreptícios. Apenas com o desejo de conservar a presença de um ser humano singular feito poeta. Apesar de, noutros tempos de maior inocência, não ter reconhecido a dura verdade das palavras de Pidwell Tavares (“Vivemos num país de merdas, Quim”), Joaquim Cardoso Dias vê-se obrigado a revelar no prefácio que “todos aqueles que de qualquer forma ou de todas as maneiras tentaram impedir a edição desta antologia [...] pensaram que este livro de homenagem a Al Berto seria um perigo explícito para as suas mentes perversas, circulares, mesquinhas”.
Dez Cartas para Al Berto, Dez Cartas de Al Berto é um belo livro, introduzido por um texto de Joaquim Cardoso Dias com passos comoventes. Discreto, atinge os seus objectivos. Entre as “quase duas centenas de cartas, postais, poemas, textos, recados, convites, confidências, desabafos, conselhos e tanta solidão”, o organizador escolheu uma dezena de missivas, de modo a apresentar “uma espécie de microbiografia” do autor, embora tendo o cuidado de seleccionar textos que não revelassem ou expusessem “entidades, acontecimentos ou situações susceptíveis de ferir ou desnudar atitudes, ressentimentos e interesses que se referem à vida privada de pessoas que conviveram com Al Berto”. Convidou ainda dez escritores (Alexandre Nave, Fernando Pinto do Amaral, Francisco José Viegas, José Agostinho Baptista, José Luís Peixoto, Luís Quintais, Nuno Artur Silva, Nuno Júdice, Tiago Torres Silva e Vasco Graça Moura) que aceitassem homenagear o poeta, comentando ou escrevendo a partir de cada uma das cartas, os quais produziram textos com género, intensidade e interesse muitos diferentes.
Leitor assíduo de textos íntimos de artistas de todo o mundo, neste livro interessam-me sobretudo as dez cartas do poeta homenageado, reproduzidas em fac-símile e cuidadosamente transcritas. Se não constituem, de facto, uma “microbiografia” de Al Berto, estruturam-se enquanto retrato revelador, políptico com os traços sinuosos de Lucien Freud ou de Francis Bacon. Em todas elas, desnudam-se um imenso abandono e uma enorme melancolia, cortados apenas pela necessidade de intensificar um contacto epistolar e uma amizade que se estruturam enquanto analgésicos possíveis, enquanto dádivas: “é-me tudo tão indiferente, distante, aborrecido. mas por hoje basta de lamúria. tenho-te a ti, a quem escrevo, e que me dá imenso prazer fazê-lo. não devia queixar-me tanto.”
Quem deseje conhecer um pouco melhor a verdadeira face do poeta que se refugiava por vezes em Sines – localidade com que tinha uma relação contraditória (“nada é como era há alguns anos. tudo se modificou. as pessoas voltaram a uma espécie de bimbalhice surpreendente. Aflitivo.”) –, tem neste livro documentos indispensáveis. Entre 30.06.1989 e 17.04.1997 existiu uma intensa amizade entre dois autores que, quando um dia for totalmente revelada nas suas epístolas, permitirá entender melhor não só os sujeitos escreventes, mas também o meio literário e artístico em que se inseriram. Vislumbre desse documento, estas dez cartas merecem o tempo devotado à sua leitura.
Duas frases de Al Berto ficam na cabeça, talvez como máximas de vida. Conhecemos a doença que o afectava quando as escreveu, meses antes de morrer. Mas, mesmo assim, teimam não sair da memória: “Apenas o silêncio... depois da barafunda. Olhar para dentro e limpar... limpar – apenas o silêncio.” |
RUY VENTURA (Portalegre, 1973) é professor na península da Arrábida. Publicou, em poesia, Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa, 2003), Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003) e Um pouco mais sobre a cidade (Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem (Badajoz, 2006 – no prelo). Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra de São Mamede (Almada, 2005) e Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (na revista Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro José do Carmo Francisco, uma aproximação (Almada, 2005). Traduziu a antologia 20 Poetas Espanhóis do Século XX (Coimbra, 2003) e os livros de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado (Coimbra, 2003), Jola, de Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A Árvore-das-Borboletas, de Anton van Wilderode (Badajoz, 2003). É colaborador de várias revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras e americanas. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea, Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia.
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