|
|
José Augusto Mourão (UNL-DCC)
EM TORNO DE UM TEXTO TEÓRICO DE
A.
RAMOS ROSA
|
|
A literatura e o real |
|
É opinião de M. Blanchot que: Esta chegada da escrita não poderia ter lugar senão depois do acabamento do discurso (que Hegel representou com a sua metáfora do saber absoluto)(1). Uma das premissas hegelianas consiste em dizer que o pensamento conceptual coincide com o grau mais elevado da consciência, o que implica que a arte é a expressão sensível, particular, da ideia. O artista diz de modo diferente o que o filósofo sabe desde há muito. Quer dizer, as obras de arte exprimem ideias, sem ambiguidade. A esta visão mecanista do reflexo (Lukács ou Goldmann, por exemplo), reagiram alguns: O erro seria ceder (como Goldmann, por exemplo) a um sociologismo vulgar que não reconhece o nível "escritural" da produção, e que cedendo a um naturalismo burguês clássico, cola a etiqueta "progressista" ao efeito mais exterior do texto: a sua representação. Uma tal leitura só serve para perpetuar o modo d eleitura burguesa (a do "sentido") (2).
A questão do sentido e da significação é uma questão hegeliana por excelência porque remete para uma outra questão de saber que consciência se manifesta numa obra de arte particular. A legitimidade científica destas duas questões é hoje contestada, seja pela sociologia empírica da literatura, seja por uma teoria semiótica da literatura onde a investigação dos "conteúdos de verdade" ou de "estruturas significativas" não tem sentido. A obra de arte não é uma manifestação "sensível" de uma estrutura de consciência que se pudesse definir de maneira unívoca. Os textos literários são irredutíveis a sistemas conceptuais. Na escrita de ficção, até os "conceitos" perdem o seu carácter de significados. Barthes nota em S/Z , a propósito do texto ideal, "scriptible": este texto é ua galáxia de significantes, não uma estrutura de significados (3). As palavras, enquanto imagens acústicas, não são redutíveis aos conceitos que lhes correspondem, mas quue elas designam de modo arbitrário. Por outras palavras: os signos verbais da linguagem convencional são utilizados pela escrita conotativa na sua totalidade (que compreende o significado e o significante) como significantes, e que dá conta do enfraquecimento do seu aspecto conceptual (significado). Os processos conotativos da literatura tendem a enfraquecer a dimensão conceptual (e referencial) da linguagem, suspendendo o valor convencional (social) dos signos verbais, sem os apagar completamente (4). A monossemia está ligada á estética hegeliana que deduz toda arte, bem como as obras particulares, enquanto manifestações da Ideia, de um discurso conceptual compreensivo que se identifica com a realidade histórica (5). É este mundo das premissas hegelianas que Ramos Rosa recusa ao longo do artigo que estamos percorrendo. Quer dizer, a monossemia:
a produção do sentido, a temporalização criador. Assim, a produção do texto não está subordinada à repetição dos significados que oreal constituído nos fornece (p. 48)
Nada nos diz este verso de uma ordem existente porque ele é o próprio movimento da aparição indivisível de uma forma nascente (p. 50).
|
|
O preconceito aristotélico |
Le mot, l´écrit s´est libéré non du sens, mais du monde. Meschonnic
Il y faut un écho, dans les choses, et de l´imitation,
parmi les hommes. M. Serres |
|
Libertar o real é a tarefa própria ao texto literário. Quem será o sujeito dessa libertação? Tudo parece indicar que se trata de um processo sem sujeito. O acto de criação, de libertação, que é escrever, resume-se no movimento da pena. O objecto da escrita escapa ao comando consciente do escritor. Se a primeira forma do poema e do seu objecto é o corpo (p. 47), este só poderá apresentar a dimensão possível, morte do somático, morte da coisa: o signo linguístico não faz outra coisa senão separara-se do objecto, da coisa que apresenta. O seu trabalho, como diz Kristeva, consiste em colocar-se na dimensão vertical entre o somático e o significante, assumindo assim o aspecto sacrificial que a língua apresenta, e intentar aproximá-lo o mais possível do somático sacrificado de que ela se separa e que designa, o corpo, a pulsão (6).
A literatura é uma experiência do real, ao mesmo tempo que o fingimento da sua unidade inteligível. Uma verdade do real contra as suas formas socializadas: uma verdade "vréel", como dizia Kristeva, ou a própria forma como a realidade se desrealiza: a poesia é indiferente relativamente ao objecto do enunciado (7). Qual a relação existente entre imitação literária e realidade factual? O maior mérito da Poética está porventura na argúcia com que ao mesmo tempo que vincula a poesia à realidade, Aristóteles acentua a autonomia do reino estético perante as normas do mundo exterior (8). Depois de lembrar as normas de toda a actividade mimética, Aristóteles introduz a diferença específica que caracteriza a poesia: a expressão (lexis). O poeta é antes de tudo aquele que modela a sua história como uma figura que se depura (Cf. cap. 6, 50B1); no sentido etimológico, o seu trabalho é de ficção. Como o jogo dramático, que é mimo, a mimese é "poética", quer dizer, criadora. Não ex nihilo : o material de base é o homem dotado de carácter, capaz de acção e de paixão. O poeta não imita este dado como se faz um decalque, mas constrói a "história" ( mythos) com os seus actantes funcionais. Mimese designa então o movimento que parte de objectos pre-existentes para chegar a um artefacto poético. se o objecto "imitado" não é nunca evacuado - contrariamente aos que pensam a mimese como pura criação, o acento é colocado no objecto representado que deve obedecer às regras de arte definidas por Aristóteles. Só como preconceito se pode falar de teoria aristotélica como referência às teorias mecanistas. |
|
O mundo do texto |
O sentido do texto é o acto da sua própria produção, a sua função é mostrar-se, manifestar-se, e ao fazê-lo manifestar-se a si e ao mundo, manifestar a possibilidade de libertá-lo. Ramos Rosa
|
|
É a Paul Ricoeur que se deve a denominação "coisa do texto" ou "mundo do texto", enquanto categorias da hermenêutica geral. A "coisa" do texto é mesmo o objecto da hermenêutica. A "coisa" do texto é o mundo que ele abre diante de si. Este mundo é o mundo toma distância em relação à realidade quotidiana para que tende o discurso ordinário. Esta categoria tem a vantagem de nos afastar da tentação para introduzir categorias existenciais.
Quando falamos de ànsia, opressão, estacada pressa, não estamos a referir-nos a sentimentos existenciais exteriores à criação ou produção do texto, mas ainda ao próprio movimento criador, à sua turbilhonante negatividade, ou seja, ao vazio da criação (p. 47).
O que Blanchot diz também no artigo já citado: a ruptura exigida pela escrita é corte com o pensamento quando este se dá como proximidade imediata, e corte com toda a experiência empírica do mundo. Neste sentido, escrever é também ruptura com toda a consciência presente, estando sempre já comprometido na experiência do não-manifesto ou do desconhecido (entendido como neutro) (9).
O que se abre ao leitor é uma proposição do mundo, um novo nascimento. Realidade aberta diante do texto para o leitor, sem dúvida, mas a partir do texto. Aí assenta a "objectividade" do ser-novo projectado pelo texto. Por outro lado, colocar acima de tudo a "coisa" do texto é deixar de pôr o problema da inspiração platónica nos termos psicologizantes de uma insuflação de sentido a um autor que se projectasse no texto, ele e os seus fantasmas. A revelação ou a manifestação da "possibilidade do mundo" é finalmente um traço do mundo do texto. Efectivamente, o mundo do texto "literário" é um mundo projectado, distanciado poeticamente da realidade quotidiana. Poder de ruptura e abertura "poética", no sentido forte do termo. E para ir até ao fim, não se poderá dizer como Ricoeur que aquilo que abre assim na realidade quotidiana é uma outra realidade, a realidade do possível? (10) |
|
(1) Maurice Blanchot, "O ateísmo e a escrita", in Deus o que é ?, Caderno O tempo e o Modo , nº 3, Lisboa, Morais,, s.d., p. 327.
(2) Cf. Théorie d'ensemble , Paris, Seuil, 1970, p. 388.
(3) Roland Barthes, S/Z, Paris, Seuil, 1970, p. 12.
(4) Cf. M. Riffaterre, Sémiotique de la poésie , Paris, Seuil, 1982; Kerbrat-Orecchioni, La connotation , Preses Universitaires de Lyon, 1977; A. M. Pelletier, Fonctions Poétiques, Paris, Klincksieck,, 1977.
(5) P.V. Zima, Pour une sociologie du texte littéraire , Paris, 10/18, 1978, p. 192.
(6) J. Kristeva, "A modernidade de Celine", in Loreto, 13, p. 11.
(7) R. Jakobson , op. cit., p. 16.
(8) Cf. capítulo 25, 15o B 13.
(9) M. Blanchot, art. cit., p. 327.
(10) P. Ricoeur, "Herméneutique philosophique et herméneutique biblique", in Exegesis, Delachaux & Niestlé, Neuchatel-Paris, 1975, p. 223. |
|
|
|