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LUÍS SERRANO
NERUDA, CEM ANOS DEPOIS
Reflexos na Poesia Portuguesa

A primeira vez que encontrei o nome de Pablo Neruda (embora já tivesse ouvido falar dele) foi no início dos anos 60 ao ler um poeta, hoje injustamente esquecido, Raul de Carvalho, que no seu livro intitulado tão simplesmente Poesia e num poema curiosamente chamado Sóbolos Rios e dedicado a Albano Martins, dele falava. Não resisto a citar alguns versos desse poema:

(...)
E direi que Don Pablo Neruda,
cuja guitarra
tem cordas de prata e cabelos de lua e hálitos de carne e sentimento,
e peixes imitando violinos e paixões subindo pelo tecto,
e amigos, muitos amigos!, alegres e jogando às cartas,
e sempre vinho e sal e sol e pão na mesa,
e sempre uma mulher em cada corpo de homem
e um homem em cada corpo de mulher...

Direi que Pablo Neruda,
cuja voz de cristal e de chuva e silêncio e vertigem
me ajuda a dormir,
me acompanha no trabalho,
vai comigo aos bailes,
chora comigo a morte
e a ausência dos mortos,
anda comigo pelos cais
salgando e pintando
as fardas e os peitos
dos marinheiros...

Don Pablo Neruda, Don
porque és espanhol e és bom,
porque tu adivinhas
tudo o que
se perdeu ou cresceu
no coração do homem...
(...)
Em tudo, Pablo Neruda, em tudo
eu vislumbro o sagrado
fogo que te mantém
toda a noite acordado,
todo o dia de pé,
reunindo palavras, corações de palavras, constelações de palavras
que vão, por toda a parte,
reunir-se ao confuso e melancólico
ofício de ser homem.
(...)

Foi depois, dizia, que fui ao encontro do verdadeiro Neruda, creio que através da compra das primeiras obras na livraria Luso-espanhola que existia ali na rua da Sofia. Foi um espanto!

E hoje guardo do grande poeta a recordação das leituras que me deram a conhecer um Chile que de todo em todo desconhecia, a sua geografia, as suas árvores (a frondosa araucária andina), as suas aves (o albatroz e o condor), as suas montanhas, a sua história tão perturbada pelas invasões espanholas que destruíram o que havia de tão especial nessas civilizações ameríndias.

Rememoro esses livros, quase todos da Editorial Losada de Buenos Aires: o Canto General, Los versos del Capitán, 20 Poemas de amor y una canción desesperada, Tercera residencia, Nuevas odas elementales e Odas elementales, de que possuo uma edição espanhola de Bruguera.

A estas obras em verso, eu juntaria na minha biblioteca os dois belos livros de memórias: Confesso que vivi (Publicações Europa-América, 1975) na tradução de Arsénio Mota e Nasci para nascer (Publicações Europa-América, 1978) na tradução de Eduardo Saló com a colaboração de Mário Dionísio.

Nessa altura (inícios da década de 60) não havia traduções em livro, havia apenas alguns poemas traduzidos por Jorge Emílio (1) e também por Eugénio de Andrade (2). As traduções elaboradas de uma forma mais regular e apresentando já amostragens significativas começam com Fernando Assis Pacheco, José Bento, Luís Pignatelli, Alexandre O’Neill, António Manuel Couto Viana, e José Manuel Mendes.

A presente antologia, trabalho do poeta Cristino Cortes, editada pela Universitária Editora, reúne poemas de 77 poetas e constitui uma amostragem significativa do interesse que Neruda continua a despertar nas gerações mais novas.

A obra vem enriquecida com um artigo de Manuel Simões intitulado A recepção literária de Neruda em Portugal, precedido de Alguns elementos bio-bibliográficos e também com um interessante artigo de Eugénio Lisboa subordinado ao título Pablo Neruda e o livro.

Os poetas estão ordenados alfabeticamente pelo apelido com indicação da data e do local do nascimento. Fica assim o leitor a dispor dos elementos mínimos sobre cada um dos colaboradores, nomeadamente, quanto à geração em que se integram.

São 77 os poetas representados responsáveis por 91 poemas se não falhei a contagem. Curiosamente desses 91, 9 são sonetos o que é uma forma curiosa de homenagear o poeta chileno que nos deixou muitos e belos sonetos.

Na década de 60, em que as preocupações políticas da minha geração eram fortíssimas, o nome de Neruda era um nome que brandíamos como uma arma contra a ditadura pois também ele lutou contra a opressão, nomeadamente, contra a ditadura de González Videla que ele ajudou a levar a presidente mas Videla vendeu-se e perseguiu aqueles a quem devia o lugar. Mas a solidariedade do povo chileno e posteriormente da Europa salvou-o de ser preso.

Mas o que é mais extraordinário na poesia de Neruda é que não enjeitou nenhum tema; foi um grande poeta do amor e de coisas tão simples como a cebola, a alcachofra, a flor, o mar, o inverno, o tomate, a terra, a poesia, o livro, o ar, de que sempre recordo os versos (Odas Elementales, p. 13-15):

No, aire,
no te vendas,
que no te canalicen,
que no te entuben,
que no te encajen
ni te compriman,
que no te hagan tabletas,
que no te metan en una botella,
cuidado!
(...)
no te fíes de nadie
que venga en automóvil
a examinarte,
déjalos,
ríete de ellos,
vuélales el sombrero,
(...)

Mas Neruda não foi apenas um grande poeta, foi um homem com uma vida riquíssima e variada: viajou por todo o mundo em missões diplomáticas, estava em Madrid quando se iniciou a triste guerra civil que havia de levar Franco ao poder e causaria cerca de um milhão de mortos.

Neruda tinha chegado a Espanha (Barcelona) em 1934 e o seu chefe Túlio Maqueira descobriu rapidamente que eu subtraía e multiplicava com muitos
erros e que não sabia fazer contas de dividir (nunca consegui aprender a fazê-las). Então disse-me:

- Pablo, você deve ir para Madrid. É lá que está a poesia. Aqui em Barcelona há essas terríveis multiplicações e divisões que o não querem cá. Eu dou conta desse recado.

Aí encontrou e fez amizade com os poetas da chamada geração de 27 e até com outros mais antigos. Estavam aí García Lorca, Jorge Guillen, António Machado Miguel Hernandez, Rafael Alberti, Luis Cernuda, Dámaso Alonso, Vicente Aleixandre, Manuel Altolaguirre, Bergamín, Pedro Salinas, conheceu inclusivamente a Valle-Inclán, Ramón Gomez de la Serna e Juan Ramón Jimenez, estes da geração anterior.

Passou uma ou duas vezes por Lisboa e disso nos dá conta em Las Uvas y el Viento (La lámpara marina) que aparece nesta antologia traduzido pelo Professor Manuel Simões.

De Neruda se poderia dizer aquilo que ele disse do grande poeta peruano César Vallejo aquando da sua morte: Eras interior e grande, como um grande palácio de pedra subterrânea, com muito silêncio mineral, com muita essência de tempo e de espécie. E, no fundo, o fogo implacável do espírito, brasa e cinza... Cumprimentos, grande poeta, cumprimentos, irmão. Fazem estas palavras parte de um texto publicado em Santiago do Chile em 1 de Agosto de 1938 (3 meses antes de eu nascer). (ver Nasci para nascer, p.67).

Há ainda uma ode muito bonita dedicada ao mesmo Vallejo (Odas Elem., p. 269) que começa assim:

A la piedra en tu rostro,
Vallejo,
a las arrugas
de las áridas sierras
yo recuerdo en mi canto,
tu frente
gigantesca
sobre tu cuerpo frágil, (...)

Naturalmente, não me vou pronunciar sobre a qualidade de cada poema que integra esta antologia; o que há de importante é que há um número significativo de poetas portugueses para quem a voz de Neruda foi e continua a ser importante. Os poemas são praticamente todos poemas escritos em louvor de Pablo Neruda sendo visível em muitos deles um conjunto de preocupações de natureza social e cívica de que Neruda foi um exemplo consequente. Eu próprio retirei dois versos do poema Recabarren (Canto General, I) para servirem de epígrafe a um poema do meu primeiro livro:

Alli llegó com sus panfletos
este capitán del pueblo

Recabarren foi um dos grandes revolucionários chilenos. Mas Neruda não foi só isso. A poesia amorosa do grande poeta chileno é uma poesia de referência em língua castelhana. Veja-se a este propósito Vinte poemas de amor e uma canção desesperada (tradução de Fernando Assis Pacheco, Publicações Dom Quixote, 1971 com a 13ª edição em 1974) e Cem sonetos de amor (tradução de Albano Martins, Campo das Letras, 2004).

O Prof. Abílio Hernandez Cardoso refere-se a essa poesia nestes termos: Neles (nos poemas) habitamos o território instável do crepúsculo, aquela linha ténue de fronteira, aquele tremor leve de luzes e de sombras, o lugar dos amantes breves e da angústia intensa. É nesse fio da navalha que a voz do poeta entoa o seu cântico, projectado algures entre o desejo de um querer dizer e a percepção de uma esperança por cumprir, numa injunção marcada pelo intuir de um desenlace fatal, por uma condição de si-mesmo indissociável de uma radical dimensão de solidão, que não é serena nem contemplativa... (O Primeiro de Janeiro, Junho, 2004).

Curiosamente, Neruda, ao referir-se à secura de Espanha diz (Confesso que vivi p.118): A Espanha é seca e pedregosa, bate-lhe o sol vertical arrancando chispas da planura, construindo castelos de luz com a poeirada.

Os únicos rios verdadeiros da Espanha são os seus poetas: Quevedo, com as suas águas verdes e profundas, de espuma negra; Calderón, com as suas sílabas que cantam; os cristalinos Argensolas; Góngora, rio de rubis. São todos poetas barrocos o que se adequa perfeitamente com as palavras atrás citadas de Abílio Hernandez.

Há, na poesia de Neruda, se não erro, uma respiração barroca, atestada por
uma grande exuberância imagética e uma assunção dos contrários, dialéctica que traduz uma certa bipolarização (claro/escuro, dia/noite, vida/morte, amor/ódio, etc.).

Sobre os aspectos, diríamos, oficinais poderíamos citar duas odes ao livro (Libro, cuando te cierro / abro la vida) (Odas Elem. P 138), uma ode à crítica com a qual não usou de grande suavidade, bem pelo contrário, mas ainda assim retiro desta ode os primeiros 9 versos (Odas Elem., p.61):

Yo escribí cinco versos:
uno verde,
outro era un pan redondo,
el tercero una casa levantándose,
el cuarto era un anillo,
el quinto verso era
corto como un relámpago
y al escribirlo
me dejó en la razón su quemadura. (...)

O povo leu e gostou e tirou partido destes versos mas vieram os críticos!...
Escreveu ainda uma ode à poesia (Odas Elem., p 212) que termina deste modo:

Poesía,
porque contigo
mientras me fui gastando
tú continuaste
desarrollando tu frescura firme,
tu ímpetu cristalino,
como si el tiempo
que poco a poco me convierte en tierra
fuera a dejar corriendo eternamente
las aguas de mi canto

Quantas coisas não haveria a dizer de Neruda? Leiam os seus livros de poemas e também os de memórias para se darem conta de como foi rica a vida deste homem que não desprezou um só momento da vida, um só momento de prazer.

Diria que só a morte lhe deve ter sido muito amarga pois tendo morrido escassos dias após o golpe do criminoso Pinochet teve ainda conhecimento dele e também da morte do seu amigo muito querido Salvador Allende.

Por tudo o que deixei dito atrás e mais ainda pelo que foi pensado, torna-se óbvio que elaborar uma antologia de poesia portuguesa em homenagem ao grande poeta é só por si um acontecimento relevante.

Ao poeta Cristino Cortes se fica a dever a parte mais importante deste feito
e eu sei ou imagino saber o trabalho que estas coisas dão. Teve a ideia e levou-a à prática socorrendo-se, naturalmente, da sua experiência de poeta e dos seus conhecimentos. Não me espanta essa sua capacidade pois quem se der ao trabalho de ler o seu currículo (p. 143-144) verá que tem publicados oito livros de poesia, dois livros de prosa e esta é já a segunda antologia que organiza. Devo, no entanto acrescentar uma palavra de louvor ao Prof. Manuel Simões, ao Prof. Eugénio Lisboa e ao Prof. Joaquim Montezuma de Carvalho cujos contributos enriquecem a obra.

Naturalmente, seria deselegante não deixar aqui uma palavra de apreço pelo trabalho dos 77 poetas sem os quais não haveria antologia por melhor que fosse o antologiador.

Vou concluir com a leitura do poema Hino e Regresso na tradução de Eugénio de Andrade v.II, p.174 e com isso homenageio dois grandes poetas de línguas irmãs, Neruda e Eugénio de Andrade a quem a minha geração tanto deve.


HINO E REGRESSO

Pátria, pátria minha, a ti regressa meu sangue.
Mas peço-te, como o filho em pranto
pede à mãe:
Acolhe
esta guitarra cega
e esta fronte perdida.
Saí a procurar-te filhos pela terra,
saí a erguer vencidos com teu nome de neve,
saí a erguer uma casa de madeira pura
e a levar tua estrela aos heróis feridos.

Agora quero dormir na tua substância.
Dá-me uma clara noite de cordas penetrantes,
a tua noite de navio, altura de estrelas.

Pátria minha: quero mudar de sombra,
Pátria minha: quero trocar de rosa.
Quero pôr o braço na tua frágil cintura
e sentar-me nas tuas pedras calcinadas pelo mar
para deter o trigo e olhá-lo por dentro.
Vou escolher a flora delgada do nitrato,
vou fiar o estambre glacial do sino
e olhando a tua ilustre e solitária espuma
tecerei à tua beleza um ramo litoral.

Pátria, pátria minha,
rodeada de água combatente
e neve combatida,
em ti a águia junta-se ao enxofre
e na tua antárctica mão de arminho e de safira
uma gota de pura luz humana
brilha incendiando o céu inimigo.

Guarda a tua luz, oh pátria!, mantém
a dura espiga de esperança no meio
do cego ar temível.
Na tua remota terra caiu toda esta luz difícil,
este destino de homens,
que te faz defender uma flor misteriosa,
só, na imensidade da América adormecida.

 
Luís Serrano nasceu em Évora em 1938. Licenciado em Ciências Geológicas (UC), foi investigador da Universidade de Aveiro de 1975 a 2001. Foi um dos fundadores da Revista de Poesia Êxodo (1961). Tem colaboração dispersa em diversas páginas literárias e nas revistas Vértice e Letras e Letras. Está também representado em várias antologias. Publicou Poemas do Tempo Incerto (Vértice, 1983), Entre Sono e Abandono (Estante Editora, 1990), As Casas Pressentidas (edição de autor, 1999 uma das obras premiadas com o Prémio Nacional Guerra Junqueiro) e Nas Colinas do Esquecimento (Campo das Letras, 2004) .