Timóteo Tio Tiofe é um dos
pseudónimos do Prof. João Manuel Varela como referi em nota anterior
neste suplemento (26.03.07). As suas obras encontram-se reunidas num
volume (este aqui referido) das edições pequena tiragem do
Mindelo. Ele próprio dá, no prefácio, a justificação para este novo
pseudónimo já que à data de publicação só era conhecido o de João Vário:
Até agora tenho publicado em volumes, sob o pseudónimo de João Vário,
uma poesia que nada tem que ver com os problemas específicos de Cabo
Verde. Era natural que, homem destas terras, um dia me voltasse para os
seus problemas, as suas aspirações, e que tentasse dizê-las em poesia.
Tal aventura começou em 1961, em Coimbra. Como se trata de uma linguagem
de algum modo diferente ou, pelo menos, de uma tentativa de exploração
poética diferente da que persigo em Exemplos, estimei que
devia utilizar um outro pseudónimo.[…]
A construção destas duas
obras representa um esforço do poeta no sentido de, não negando a
importância do movimento que girava em torno da revista Claridade,
a ultrapassar evitando a repetição dos velhos problemas de Cabo Verde em
termos de uma linguagem cheia de estereótipos que tinha feito a sua
época. Por isso, T. Tio Tiofe recorre, como se pode ler nas badanas do
livro à prosa enxertada no corpo dos versos, prosa que se recorda de
alguns cânones, os mais imprescindíveis ou irredutíveis, da poesia. Por
isso, será prosa quase poesia, ou poesia em prosa, verosimilmente. Esta
prosa, assim trabalhada e metida no meio da poesia, e ela mesma parente
desta, pode, por vezes, dar a impressão de ter um corpo grosso, algo
áspero e menos escorreito que a poesia, quando esta fica sozinha. Mas
isto são aparências. Porquanto o que define verdadeiramente o ser
poético, a meu ver, é a capacidade de levar as palavras a pairar acima
dos homens, das coisas e das vicissitudes duns e doutras, para investir
uma enxuta ou demorada perplexidade, que atravanca a vida e é o tal modo
de apreender como o mundo, no fundo, nada justifica nem mesmo o que
essencialmente somos. […]
Esta entrosagem da poesia
com a prosa, alternando-se, confere às obras um ritmo que de algum modo
constitui um eco da dinâmica de um país que de colónia portuguesa passa
a país independente em 5 de Julho de 1975.
Cada um dos livros está
dividido em três partes e cada parte está dividida em discursos.
Com esta palavra discurso evita-se o emprego de canto,
menos adaptado a poetar sobre a formação de um estado. Ele próprio (o
autor) nos dá a sua justificação no mesmo texto da badana: O material
disponível era vasto (é vasto), algo desabrido e diverso. Transformá-lo,
organizá-lo em matéria poética levanta problemas um pouco diferentes dos
que põem os cantos (como em Exemplos), na medida em
que é de natureza mais rebelde à disciplina, ao espartilho do verso. Em
contrapartida, o Discurso, tal como é concebido aqui, aceita-o
sem muita adaptação, sem muito remoínho técnico ou estrutural. […]
A 1ª parte (proposição) de
O Primeiro Livro de Notcha abre com um prólogo ao qual se seguem
dois discursos (I e II). Inicia-se o prólogo por uma citação do
Eclesiastes 3:1: Todas as coisas têm o seu tempo, todas passam
[…] para logo a seguir numa construção tão típica deste poeta: Ah!
Certamente tornarei a isto por este tempo de vida. / Ao tempo
determinado, tornarei a isto por este tempo de vida. […] Alguns
versos adiante, Tiofe expressa confiança no povo do seu país: Pois há
um tempo para todas as coisas / e para todas as obras. E aqui vos digo:
/ há um tempo para este povo / curar suas chagas e abrandar suas fomes.
[…].
No discurso I dirige-se a
todos aqueles que, anonimamente, na maior parte dos casos, ajudaram a
criar o que viria mais tarde a chamar-se Cabo Verde. Tiofe, numa síntese
notável, diz da humildade desse povo (p. 28): Homens de pouco gado,
manteigas diminutas, / queijos tristes e cachimbos sumários. […].
O discurso II é uma
recriação da vida quotidiana com as suas vendedeiras, os seus pregões, a
intimidade das suas conversas, alegres umas vezes, desesperadas outras,
a vida animada e colorida, que apesar da pobreza, percorre estas ilhas
de sotavento a barlavento.
A 2ª parte (dedicatória) é
constituída por dois discursos sem prólogo.
O primeiro rememora os que
foram ficando pelo caminho, aqueles que a morte levou, porventura, mais
cedo do que seria normal (p.45/46): Não negamos ao tempo os seus
mortos: / os deuses são túmulos ávidos. […] Oh mas quem duvida de
que não / há nenhum segredo na sua morte? / Morrem para nada, de nada se
vingam. / Assim, diremos: morrem porque não sabem já / fazer outra
coisa. Já nada mais sabem. […]. Simultaneamente traz-nos a homenagem
aos grandes poetas africanos: Senghor, Césaire, Tchicaya, Jorge Barbosa.
O segundo refere a memória
como uma referência de um passado que não deve ser esquecido (p.51):
Também nós havemos de cuidar da nossa memória […].Uma glória
melhor nos espera. / entre uma lua e outra, / nos campos do Buba ou do
Volta / ou nesse arquipélago que edificaremos / sobre as pozolanas, o
mel e as recordações / da colonização, coisas deixadas / à memória dos
antepassados […].
Na terceira parte
começa a contar alguns episódios da história do seu povo, após breves
referências ao povoamento, fauna, flora, demografia ou etnologia do
arquipélago (Narração) para empregar as próprias palavras do autor
(p.131).
Esta parte contém um
prólogo e seis discursos. No prólogo o poeta interroga-se sobre como se
terá processado a chegada às ilhas. No discurso I faz a viagem ao mundo
da infância (p.63): Ah havemos de regressar a essa casa da infância[…].-
Aqui ficava o tabaco, ali o chapéu, acolá os vestidos / de luto[…].
Tempo houve em que éramos felizes em nossas casas, […]. O
discurso II continua a abordagem de toda a população na sua vida diária,
dos seus pensamentos sobre as contradições vivas da sua existência (p.
69): E, se dizemos que apetece morrer, / é porque amamos demasiado /
este gado do pé da porta e estes lavradores laboriosos / e este país de
ruínas, este casario devastado. […]. São (p. 74) Habitantes
destas terras. Povo de pouca roupa, / roupa recta, rota roupa. […].
O discurso III trata um pouco da necessidade da emigração para o homem
cabo-verdiano. Assim (p.82/83): Ah triste coisa é esta luta pela
vida, / a emigração, o exílio. // “Mas que mais pode um homem fazer
nestes tempos / para obter o seu lugar ao sol / ou deixar um nome
honrado aos seus?” […].
O discurso IV é,
seguramente, dos mais violentos; em grande parte, não existe nele
sugestão, de tal modo se impõe o seu carácter fortemente denotativo.
Vejamos exemplos dessa linguagem predominantemente verista (p. 89): E
sentámo-nos no chão para chorar / a fome dos nossos filhos e a velhice,
/ o tempo da desolação, a doença e a orfandade / caída sobre nossas
moradas. / Naqueles dias, as crianças, os velhos e as mulheres /
morriam-nos pela casa, no terreiro, pelos campos, / junto das hortas
ressequidas, / os animais mortos e os bebedouros extintos. […].
Mas os companheiros morriam / e transportávamo-los depois / embrulhados
em mantas, sobre tábuas, / e saíamos aos campos para os enterrar / e
prantear longamente. Ah não, não / os poderíamos esquecer, não os
poderíamos / lançar para trás das costas, ó terra. […].Falo-vos
destas fomes / e a alegria se perde do mundo. […].Desertos estão
estes caminhos para a Macaronésia. / E, se um homem pousa a sua enxada,
/ repara nos mortos que se amontoam / à sua porta para a queima de hoje.
/ É então que descobre a cabeça, / se persigna apressadamente / e se
atira, desesperado, do cimo destes picos. / Sobre estes montes do
arquipélago, dizia-vos, / há um tempo para as colheitas e um tempo para
o suicídio. […]. O discurso IV termina com a lista das grandes fomes
que fizeram milhares de mortos numa linguagem friamente estatística, rol
de desgraças que não impede o poeta de augurar um outro tempo mais
humano: Mas há um tempo para sofrer e perder / e um tempo para
resistir e esperar. […].
O discurso V trata da
luta de libertação na Guiné-Bissau (palavras do poeta a p. 128);
este discurso termina com esta pergunta angustiante: Mas será
possível encontrar ainda / um lugar limpo para o diálogo, / isento de
recordações pungentes, / um lugar que o Ocidente se tenha / esquecido de
arruinar, / de ensanguentar ou de sujar?
Finalmente, o discurso VI,
ainda nas palavras do autor, fala dos ídolos da cidade natal do
autor, Mindelo ou Micadinaia.
Quanto a O
Segundo Livro de Notcha diz-nos o autor no início de um pequeno
prefácio: Este livro foi concebido como uma espécie de meditação
[…].sobre a noção de soberania, de Estado, de revalorização nacional,
após a independência, num pequeno país subdesenvolvido da periferia do
Ocidente – as realizações e os fracassos de uma geração vistos por um
dos seus membros.
A primeira parte integra
um prólogo e quatro discursos e corresponde a uma perspectiva a partir
da Ilha de S. Vicente. Inicia-se pela chegada do autor à sua terra
natal, alguns meses após a independência; concretamente, em Dezembro de
1974, isto é 16 anos depois de sair de Cabo Verde e carregando 10 anos
de exílio vividos na Bélgica, em Antuérpia. Digamos, pois, com o autor
que esta primeira parte dá uma ênfase especial ao problema da diáspora
do homem cabo-verdiano.
O entusiasmo posto na
construção de um país novo leva o poeta a declarar (p.193): Ah
arrotearemos as nossas ribeiras, cuidaremos das nossas cisternas, / não
semearemos sobre espinhos e cardos, / tiraremos os prepúcios de nossos
corações, dos nossos ímpetos, / das nossas comarcas, / para que não
suceda que a miséria / se instale para sempre em nossas casas / e abrase
as nossas obras e não haja quem a apague. […] Alguns versos adiante
reflecte que o homem tem de ser o principal operador dessa transformação
tão desejada: ocorre-nos que o homem é um pousio terrível. / Mas
havemos de o arrotear, ah havemos / de o arrotear com medida e siso.
[…]
O Discurso II é em grande
parte tecido em prosa e constitui uma reflexão política sobre as
dificuldades e os muitos problemas com que o país se debatia ao tempo em
que o Discurso foi escrito e continuaria a debater pelos anos seguintes
pois, ao fim e ao cabo, “Somos um país oceânico que sobrevive graças
à emigração e à frugalidade dos seus naturais” (p.207). No entanto,
a poesia espreita aqui e ali como a p. 210: A vida nada dá sem
receber em troca alguma morte. / Os que não o ignoram acendem o apreço
em seus olhos / e não procuram fazer frutificar as unhas dos réus.
[…]
A p. 213, o poeta continua
a sua narração, pois de uma narração se trata, nestes termos: Sentado
com esse velho amigo, […] / Timóteo não cessa de interrogar o
destino. / Porém, a resposta segue o caminho / das vicissitudes do
Partido único no poder / e da aprendizagem dos governantes do país: /
que crédito será preciso dar à esperança? / E que talento dará a terra à
boa vontade? // “Precisamos de algum tempo para aprender a governar”./
[…] E o espírito vasculhava / a ode precoce e a substância
inaugural, / essa intensidade fustigada, que é o imprevisível. É um
tempo em que Cabo Verde e a Guiné-Bissau estavam politicamente unidas
mas havia já sensibilidades diferentes como aquela a que se refere Tiofe
(p.231): “Porém, não se aceitará a pena de morte para o arquipélago”.
[…] Alguns versos mais adiante diz: Questões de reconstrução do
Estado e recuperação económica num país / recém-independente, eis o que
se acrescenta: / “Todas as coisas têm o seu tempo, / todas passam
debaixo do céu segundo seu tempo. […] E este acrescento não é mais
que uma citação do Eclesiastes 3:1. É como se de repente Tiofe se
houvesse transformado em João Vário por força da Bíblia e não deixando
cair a ideia, muito sua, de que Cabo Verde é África, tem contudo
ligações muito fortes à cultura ocidental materializada na Europa na
qual viveu grande parte da sua vida.
Na segunda parte que
inclui 3 discursos , o autor aborda os problemas da reconstrução
nacional a partir de 3 ilhas: S. Nicolau (Discurso I), Sal (Discurso II)
e Santiago (Discurso III).
De S. Nicolau diz o poeta
(p. 238): Vendo estes homens com esses sacos de milho às costas /
caminhando, com o mar até às coxas, / do bote até à praia para
desembarcar / esta dádiva do estrangeiro, / ocorre-me que nem tudo o que
padecemos / neste arquipélago pode ser narrado / com o lápis ordinário
da história. […].
Da Ilha do Sal dirá (p.
251): “Que fazer além de extrair o sal, de trabalhar na manutenção /
do aeroporto internacional ou no pequeno comércio, / além da pesca do
atum ou da apanha da lagosta? […]”Vivem das ligações aéreas entre
a Europa, a África e as Américas”. E mais adiante, comentando o
trabalho dos escravos: Lembrai-vos desses trabalhadores, / escravos
que se recusavam a meter os pés nas salinas / e preferiam antes morrer à
paulada / do que devorados lentamente pelo sal na faina da extracção,
[…] Quase no fim deste discurso (II) assinala (p. 256): Foi aqui
que o solo natal pisámos / após esses anos de exílio, de solidão e
aflição do espírito. / Chegámos de madrugada. E com a aurora vagueámos /
pela ilha que víamos pela primeira vez. […]
No Discurso III é da Ilha
de Santiago que fala, descrevendo uma viagem à volta da ilha com os
políticos e técnicos que se inteiravam dos problemas que urgia resolver.
Então a p. 267 refere: E, pensando nesses companheiros do liceu que
regressaram da luta na Guiné / para proclamar a independência neste
arquipélago e instituir a República, / repete que o esforço duma geração
é uma coisa sagrada. […] Mas há um tempo, como se assevera, para
o trabalho e a criação e um tempo para a reflexão e a crítica.
Na terceira parte, o poeta
debruça-se sobre as preocupações do homem médio ou do homem do povo,
humildes participantes ou espectadores (palavras suas a p. 183).
Esta terceira parte é
constituída por um prólogo e 2 discursos.
Ao referir-se ao tempo
anterior à independência do arquipélago tem estas palavras amargas (p.
281): Foi um tempo de penas cruéis, penas corporais – tempo da marca
a ferro quente, de açoites, de varadas e outras flagelações e sevícias.
Tempo da tortura impenitente[…]. (Discurso I). No Discurso II
(p. 289) interroga-se, agora que o país é independente: Porventura a
história e os propósitos / estarão desta vez do nosso lado, do lado dos
humildes?
E mais adiante, numa
evocação tocante, escreve (p. 291): Homens de misteres vários e de
vária origem. Aqui vos evoco todos. / E as primeiras moradias, os
primeiros filhos / nascidos nestas terras, os primeiros mortos. […]
É, pois, com júbilo que
acrescenta a finalizar (p. 291): Eu, Timóteo, dito Jom, filho de Bia,
/ mulher de Manuel, irmão de Tiofe, / homem diminuto e deplorável, / mas
já reconfortado e sereníssimo, / porque escrevo hoje, não de Europa,
como outrora, / mas de África, do continente meu, de Luanda, / homem
insular que sou eu, mas de ilhas africanas, tropicais, […].
Diz Timóteo Tio Tiofe que
estas duas obras não são poesia épica (como ele chegou a pensar em
escrever; ver a este propósito a Oitava Epístola ao Meu Irmão
António: Sobre os Desacertos da Crítica, no final deste livro, p.
296) mas há uma atmosfera que as aproxima dessa poesia, não apenas pelo
carácter narrativo das obras mas também pela presença de um certo tipo
de heróis, anónimos, é certo, mas nem por isso menos importantes para a
caracterização da história e da fundação de um país novo.
Tenho esperança de que
haja um editor suficientemente atento para perceber que estamos face a
um grande poeta e que esta obra tendo-se esgotado em Cabo Verde, nunca
chegou a entrar em Portugal, pelo menos que seja do meu conhecimento. |