1. João Vário é um dos pseudónimos de João
Manuel Varela que nasceu na cidade do Mindelo, ilha de S. Vicente, em
Cabo Verde a 7 de Junho de 1937. Utiliza ainda os pseudónimos Timóteo
Tio Tiofe e G. T. Didial.
Foi estudante da Faculdade
de Medicina em Coimbra onde chegou em 1956 e onde permaneceu até ao
penúltimo ano da licenciatura tendo-se deslocado então para Lisboa onde
concluiu a mesma. Foi o aluno mais brilhante da Faculdade e as suas
notas eram sempre as mais altas da escala. Os seus exames orais eram tão
espectaculares que eram assistidos por todos os colegas que tinham por
ele uma grande admiração.
Dois anos após a sua
chegada a Coimbra (1958) publicou um livro de poemas Horas sem Carne
que pouco tempo depois retiraria da circulação por entender que a obra
não tinha qualidade. Em 1960 aparece representado numa antologia de
poesia cabo-verdiana organizada por Jaime de Figueiredo.
Em 1961 organiza com Luís
Serrano e Rui Mendes o caderno de poesia Êxodo que inclui um
artigo sobre Arte Poética da autoria de Herberto Helder e um
outro ensaio sobre estética de Manuel Louzã Henriques além de poemas dos
organizadores. Aí aparece pela primeira vez um excerto de Exemplo
Geral (o Canto Primeiro e o Canto Segundo), obra que viria a ser
editada em Coimbra (Textos Êxodo 1, 1966). A este seguir-se-ia
Exemplo Relativo (Antuérpia, 1968), Exemplo Dúbio (Coimbra,
1975), Exemplo Próprio (Antuérpia, 1968), Exemplo Precário
(Coimbra, 1981), Exemplo Maior (Antuérpia, 1985), Exemple
Restreint (Antuérpia, 1989), Exemple Irréversible (Antuérpia,
1989) e Exemplo Coevo (Praia, Cabo Verde, 1998). No ano de 2000,
João Vário reuniu estes nove livros num volume único com o título
Exemplos - Livros 1-9 que foi editado na cidade do Mindelo, Ilha de
S. Vicente (edições pequena tiragem). Exemple Restreint e
Exemple Irréversible foram escritos directamente em língua
francesa pelo facto do autor considerar que essa língua tinha uma
ligação privilegiada com o continente africano
Ao mesmo tempo que iam
sendo publicados os Exemplos, João Manuel Varela, agora sob o
pseudónimo de Timóteo Tio Tiofe, fazia editar O Primeiro Livro de
Notcha (Publicações Gráfica do Mindelo, 1975). Numa edição posterior
aparecem reunidos sob o título O Primeiro e o Segundo Livro de Notcha
não apenas estes dois livros mas ainda Primeira Epístola ao meu Irmão
António, Segunda Epístola ao meu Irmão António e Oitava Epístola ao meu
Irmão António (edições pequena tiragem, s/d, provavelmente, 2001).
É ainda autor, assinando
T.T.Tiofe, do artigo Arte poética e artefactos poéticos. Reflexões
sobre os últimos 50 anos de poesia caboverdeana, in Les
littératures africaines de langue portugaise. À la recherche de l’identité
individuelle et nationale. Actes du Colloque International. Fondation
Calouste Gulbenkian, Paris, 1985: 309-315.
Dá uma entrevista
considerada muito importante a Michel Laban e que vem publicada in
Encontro com escritores caboverdeanos, vol II. Laban,
M (ed.).Fundação Eng. António de Almeida, Porto, 1992: 455-473, 1992.
Sob o pseudónimo G.T.
Didial publicou o romance O Estado Impenitente da Fragilidade
(Edição do Instituto Caboverdeano do Livro e do Disco, Praia, 1989) e
Contos de Macaronésia (Mindelo, Ilhéu Editora, 1º vol, 1992 e 2 º
vol. 1999)
João Vário está
antologiado em Líricas Portuguesas, IV série, organização de António
Ramos Rosa,. Portugália Editora, Lisboa, 1969: 147-156.
Para além desta actividade
literária, foi ele, o Prof. João Manuel Varela, o dinamizador de uma
revista generalista, os Anais, que coordenou e onde se encontram
alguns artigos que são referências para a história do ensino e da
investigação na Universidade de Cabo Verde. Por exemplo, logo no nº 2 do
vol. 1 (1999), apresenta-nos um artigo muito importante, Uma Visão da
Universidade de Cabo Verde – Breve Estudo Preliminar, (p. 45-74).
Ainda no mesmo número um artigo de antropologia médica A Doença de
Iniciação e as Carreiras Médicas Tradicionais. O Caso dos Muílas (p.
9-19).
No nº 3 do vol 1 (1999),
pode ler-se um outro artigo de JMV: Plantas Medicinais Comuns a
Quatro Países da África Lusófona – Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique: Pistas Para a Sua Utilização Terapêutica (p. 57-75).
No nº 1 do vol. 2 (2000)
João Manuel Varela avança com um artigo de antropologia médica: Ética
e Moral nas Sociedades Negro-Africanas (p. 19-27).
No nº 2 do vol.2 (2000) os
dois primeiros artigos são da autoria de João Manuel Varela: o primeiro
Abertura (p. 5-8) e o segundo Cientificidade, Interpretação e
Ficções do Conhecimento Médico ou as Sociedades e a sua Medicina – Um
Estudo Comparativo (p. 9-30).
Finalmente, no nº 1 do vol
3 (2001) apresentou um outro artigo sobre plantas medicinais:
Contribuição para a Utilização Terapêutica de Plantas Medicinais de Cabo
Verde & de Plantas Medicinais Comuns a Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau
e Moçambique (p. 57-74).
Este foi, julgamos nós, o
último número da revista e pensamos que isso teve a ver com o
agravamento do estado de saúde do poeta e cientista.
2.Exemplos
Provavelmente é a sua obra
mais importante. Sobre Exemplos disse o Prof. Osvaldo Silvestre:
[…] um todo textual
francamente monumental, uma obra de grande envergadura […],
ímpar, quer entre as literaturas de língua portuguesa, quer,
mais particularmente, entre as literaturas africanas de língua
portuguesa. Um dos grandes escritores contemporâneos de língua
portuguesa. Dela estão publicados 9 volumes faltando publicar o nº
10 (European Example), o nº11 (American Example) e o nº 12
(Exemplo Cheio) que, segundo julgamos saber, está pronto para ser
editado.
Os livros a que
correspondem os exemplos obedecem, todos eles, a uma estruturação
obedecendo ao plano geral seguinte: uma ode introduz o tema essencial de
cada livro, tema que é desenvolvido em 3 cantos mais ou menos longos e
encerrado por uma segunda ode.
Em Exemplo Geral
(livro 1), o autor reflecte sobre a morte como muito bem frisou o
saudoso poeta Vítor Matos e Sá nestas palavras inscritas na contra-capa
da obra: ela [a morte]
nos comunica, porém, a difícil grandeza de um espanto perante a morte
(alheia e própria) que se devolve sobre a vida inteira (e suas promessas
e traições) com impiedosa lucidez, desesperada ironia e certa ternura
triste, confiando apenas à vocação “poética” das palavras (e dos
“cantos” em que elas circulam) a conjuração ritual da morte (e das
separações que ela introduz e consuma no tempo das obras e dos homens).
Esta obra foi concluída quando o autor se encontrava já em Antuérpia, em
1965.
Em Exemplo Relativo
(Livro 2), o próprio autor num importante artigo que antecede o livro 4,
afirma que estes exemplos não são forçosamente autobiográficos e em
relação a este diz: investigações feitas com utensílios fornecidos
pela memória: as cidades, as mulheres, um certo Ocidente (p. 127).
Há, no entanto, observações autobiográficas
como sejam as que se referem, logo no início, à sua fuga de
Portugal onde pairava a ameaça da mobilização para a guerra colonial
como médico: E, então, passámos aquele grande rio / e as portas do
Rodão, chamadas. Era em Abril, / dois dias depois da neve / e da cidade
dos nevões, na serra. / Íamos a caminho do exílio. […]
(p. 49). Este livro foi concluído em Londres, em 1967, sendo a
edição do ano seguinte. Sobre a obra e à laia de posfácio, afirma o
autor: Trata-se de um poema a três vozes, uma voz
impessoal (ou a do poeta), que transporta um dado número de reflexões de
ordem ontológica, uma outra que se terá tendência a identificar com a
África e uma terceira que é uma espécie de “voz-objectora-de-consciência-europeia”.
Em Exemplo Dúbio
(Livro 3) debruça-se o autor sobre a predestinação como ele próprio
afirma no artigo que antecede o Livro 4. Trata-se de obra concluída em
1975 e publicado nesse mesmo ano em Coimbra.
Em Exemplo Próprio
(Livro 4) concluído em 1975 mas editado apenas em 1980 em Antuérpia, J.
Vário faz uma extensa reflexão sobre a cidadania, iniciando o prefácio
com este aviso que tem algo de programático relativamente à sua arte
poética (p. 125): A minha poesia é, em larga medida, narrativa, é
evidente. Mas será erro supor que ela é autobiográfica. Ela utiliza um
ou outro facto da vida do autor ou da fábula dos dias para transcender
uns e outros, alargando-os num discurso impessoal (o nós de todos os
textos) que se pretende “anonimamente” ontológico. […] É muito
significativo que o canto segundo comece pelos versos Não ignoramos
que a verdade é um deus decrépito: / viemos não para depor mas para
interrogar. / […]
Em Exemplo Precário
(Livro 5) editado em Coimbra em 1981 que havia sido concluído em Luanda
em 1978 aborda o poder. Como o próprio autor nos diz no prefácio
(p.191): o presente texto propõe uma interpretação: trata-se neste
caso duma meditação sobre o poder. Melhor diria: é quase uma reflexão
sobre os “desvios totalitários” do exercício do poder. No canto
segundo (p. 208) tem esta observação, discreta, se assim podemos dizer:
Porque fazem a sua habitação no meio do engano. / Ensino de malícias
é o poder. […]
Em Exemplo Maior
(Livro 6) editado em Antuérpia em 1985 mas que havia sido concluído na
mesma cidade em 1982, o autor adianta, no prefácio, estas palavras que
iluminam o texto poético que integra a obra (p. 235): O presente
livro de Exemplos tenta lembrar que a vida é também uma forma de
jazer entre pausas. A desgraça, a carência ou a felicidade nada têm de
surpreendente. O que espanta é que se instalem com intermitências: mão
de deus ou milagrosa incongruência da natureza? Pode ser esta a despesa
maior quando estabelecemos as contas da perplexidade. Não é,
certamente, por acaso que a obra se inicia por esta epígrafe de Yamanoue
no Okura (séc. VIII): É, então, a tal ponto / sem remédio/ a vida
deste mundo? E logo, na ode inicial, se observa a propósito da
solidariedade, sentimento pelo qual se tem batido ao longo de toda a sua
vida (p. 237): […] Em verdade, / convivemos mal
com a reciprocidade. […]
Exemple Restreint
(Livro 7) publicado em Antuérpia em 1989 mas que já estava concluído 20
anos antes (1969), é dedicado à memória do seu pai. É, pois, pensado, na
óptica do exilado que perdeu o pai e não pôde estar presente nas
cerimónias fúnebres; é mais uma vez, uma dolorosa e comovente meditação
sobre a morte. A título de exemplo leiam-se estes versos do canto I
(p.303): Qui donc portera le deuil du père? / Ah, c’est un dur métier
que l’exil! em que o segundo verso é uma citação do poeta turco
Nazim Hikmet. Mais adiante (p. 307), o poeta tece estes versos
tristíssimos mas de uma beleza discreta e melancólica: Oui, éloignés
du pays natal / nous n’avons pas vu le catafalque du père. / Cependant,
les six pieds de terre que nous n’avons pas / regardés ni touchés / sont
là sous nos souliers / et la poussière à nous se dissout peu à peu /
dans ces six mesures de terre […]. No final do canto I cita da Arte
Poética de Horácio: Nós e as nossas obras estamos fadados para a
morte (Debemur morti nostraque) verso tão significativo na economia
da obra.
Acrescente-se que na
contracapa destes dois livros [Livros 7 e 8] , escritos
directamente em francês, o autor assinala que “o seu trabalho poético
representa essencialmente um esforço de integração da poesia ocidental
numa linguagem que interpela as suas raízes de homem dos trópicos” O
Livro 8 redigido em 74/75 é uma reflexão sobre a aproximação dos
quarenta anos.
Em Exemplo Coevo
(Livro 9), João Vário, no texto à guisa de prefácio com que abre a obra,
dá-nos a justificação para ela (p. 381):O presente livro pretende
meditar (ou fazer crer que medita) sobre os acontecimentos ocorridos no
ano do nascimento do autor, daí o título Exemplo Coevo, para
levantar uma questão desconcertante ou faceciosa: terão de alguma
maneira influenciado o seu destino? […]
Por aqui perpassam os bons
e os maus acontecimentos desse ano de 1937, as grandes obras científicas
e artísticas mas também a guerra de Espanha com o seu cortejo de um
milhão de mortos e o nazismo a preparar o incêndio assassino da Europa.
Por isso o autor diz no Canto I, p.411: É outono e é novembro, o mês
da boa eloquência, / e, como já não temos nenhuma ilusão sobre os
homens, […].
3. Qualquer destas obras
está carregada de intertextualidades com imensas citações da Bíblia, de
Dante, de Homero, de Platão, de Virgílio, de Horacio, de Goethe, de Ezra
Pound, de T.S.Eliot, de Ungaretti, de Salvatore Quasimodo, de St. John
Perse e de outros.
Permito-me chamar a
atenção do leitor para alguns aspectos relativos à factura desta poesia.
É uma poesia fortemente narrativa, de respiração barroca como o autor
admite e que é visível na dialéctica que se estabelece entre o dia e a
noite, o branco e o negro, a vida e a morte, isto é no emprego de
contradições e oposições. Visível ainda no tratamento do detalhe, na
riqueza das imagens, por vezes talvez com um peso excessivo, ousaríamos
dizer. Toda a obra acusa o pessimismo do poeta que já não se tece
ilusões sobre o mundo, sobre a humanidade mas que, malgré tout,
permanece lúcido.
João Vário utiliza com grande frequência as
repetições de palavras de que se dão aqui alguns exemplos:
o
choro, o vento e a venda em seu ventre, / ventre seguindo de longe,
ventre ou ventre, ventre / sempre, ventre a esmo (Livro 1, canto III,
p. 38)
Ah,solidão, solidão, (Livro 4, canto II, p.164) ou ainda
Ah,
cidadania, cidadania, (Livro 4, canto III, p. 179)
leva
entre as harpas, é certo, as harpas (Livro 5, canto III, p. 222)
Ah
intermitência, intermitência, (Livro 6, canto II, p. 259) etc, etc.
Recorre também significativamente a aliterações o que
lhe permite a obtenção de determinados efeitos rítmicos.
Uma outra figura muito usada pelo poeta é a inversão
(anástrofe). Essas inversões fazem-nos recordar por vezes Fidelidade
de Jorge de Sena.
São também muito frequentes os vocativos e as
interrogações.
4. Em próxima ocasião falarei de TimóteoTio Tiofe e
talvez também de G. T. Didial.
Por agora quero apenas
acrescentar que o visitei na sua casa do Mindelo no dia 1 de Fevereiro
passado. Já não o via há cerca de 43 anos. Fui encontrar o poeta sentado
numa cadeira enfrentando com coragem e dignidade a sua doença:
aparentemente o resultado de uma queda. Lúcido como sempre! Abracei-o
disfarçando com grande dificuldade a emoção que esse encontro, por mim
tão desejado, me provocou. Conversámos durante cerca de uma hora na
presença do irmão António e da minha mulher. Falámos dos velhos tempos,
dos amigos que entretanto ele perdeu de vista, rimos e conversámos sem
agenda programada. Foi bom e foi inesquecível!
Como é possível que este
escritor seja tão pouco conhecido em Portugal? Não seria altura de a
Imprensa Nacional editar, pelo menos, toda a sua obra poética como aliás
fez com outro escritor cabo-verdeano? E sendo certo que o Prémio Camões
nunca foi outorgado a um escritor cabo-verdeano, porque não o fazer já
entregando-o a João Vário, reconhecido e venerado pelos seus pares?
Tratar-se-ia de um acto de
justiça que já não viria cedo mas, como diz o nosso povo, mais vale
tarde do que nunca. Aqui ficam estas duas sugestões.
Infelizmente, é muito
difícil encontrar obras do autor em Portugal; talvez apenas as editadas
em Coimbra e porventura em um ou outro alfarrabista.
No entanto, elas podem ser
solicitadas ao Instituto Biblioteca Nacional – Centro Histórico –
Mindelo por telefone (00 238 2618415 ou 00 238 2618482) ou por correio
electrónico
bibnac@cvtelecom.cv. |