Procurar imagens
     
Procurar textos
 

 

 

 

 

 


 

 

LUÍS SERRANO....

TRIBUTO A JOÃO VÁRIO - INDEX

O estado impenitente da fragilidade, de G.T. Didial

G. T. Didial é um outro pseudónimo de João Manuel Varela, neuro-cientista de renome internacional, regressado em 1998 ao seu país ao fim de 43 anos de Europa dos quais 10 na situação de exilado político na Bélgica (Antuérpia).

O romance de escassas 226 páginas está dividido em três partes e inspira-se no conhecido episódio bíblico Abraão/Isaac (Gen. XXII: 1-12). Abraão é posto à prova por Deus de quem recebe a ordem de matar o seu próprio filho. Apesar de todo o amor que Abraão, como pai, teria ao seu filho resolve cumprir a ordem do seu Deus. No momento em que Abraão levanta o cutelo para matar o filho, Deus suspende-lhe o gesto, uma vez testada a fidelidade do servo ([…] agora sei, que és temente a Deus, e não me recusaste o teu filho, o teu único). Ora, este episódio levanta muitas questões.

Em primeiro lugar como seria possível que um Deus sumamente bom (pelo menos nas religiões judaico-cristãs e islâmicas) desse uma ordem para matar um inocente? Em segundo lugar, como seria possível que um homem matasse o seu próprio filho a quem tinha verdadeiro amor paterno (passe o pleonasmo)? Em terceiro lugar como seria possível que as relações entre este pai e este filho não ficassem envenenadas para todo o sempre ou não desencadeassem mesmo um acto de revolta e de vingança por parte do filho? Haverá aqui lugar para o perdão?

É claro que este problema levanta muitos outros, não apenas às pessoas praticantes de uma certa religião mas até aos agnósticos. Será que todos os crimes executados ou frustados têm perdão? Os crimes cometidos pelos nazis durante a segunda guerra mundial (holocausto) e os cometidos pelo estalinismo com as tristemente célebres deportações para os gulags siberianos para já não falar dos que hoje se cometem em África e no Médio Oriente deverão ser perdoados?

Tal temática transporta-a G. T. Didial para Cabo Verde onde durante algumas das grandes fomes chegou a haver casos de antropofagia.

O perdão é, pois, o grande tema, a grande interrogação, com que o autor se defronta nesta obra. 

Na primeira parte que integra dez capítulos, o narrador é sempre a personagem principal, Juga (narrador homodiegético), com excepção de metade do capítulo oito em que a narração é partilhada por Juga e pelo autor (narrador heterodiegético).

O primeiro capítulo é um sonho de Juga pelo qual se fica a saber que quando criança de sete anos de idade o pai o teria conduzido ao alto do monte mais alto da ilha com a intenção de o matar. A criança, hoje homem e tendo vivido num país da Europa como exilado, nunca soube a razão de ser dessa intenção e isso pô-lo nesta situação de uma vida envenenada oscilando entre a tentação do crime por vingança e a pena do eventual remorso. Assim, a p.8: Exilo-me realmente para esquecer, para não matar. Porém, quanto tempo ainda poderei ter mão em mim, impedir-me de o matar? Não sei, nem me interessa, de resto, o que significa para mim a sua morte. Sei apenas que me apaziguaria. Na verdade, há oito anos que essa ideia se fez clara e imperiosa em mim e há oito anos que pergunto a mim próprio: porquê? Acontece-me também perder horas ou dias inteiros imaginando o remorso. […]

Um pouco adiante (p.15) [Juga] Recordava essa tarde: o frio, o espanto e o crime frustrado. Foi durante as grandes fomes dos anos quarenta, as fomes que assolaram sobretudo as ilhas meridionais, as ilhas agrícolas do arquipélago. Durante três dias e três noites, andaram por côrregos, várzeas, vales e colinas da ilha. […] Tudo escalvado, ressequido, morto. Os terrenos de sequeiro eram vastas jazidas de ossos – de animais, de homens, de crianças. […] A ilha era um vasto cemitério, batido pelo sol e o esquecimento, o pavor e o harmatão. A pedra invadia tudo e cobria os homens e as coisas que restavam até às casas. […]

É neste enquadramento devastador que pai e filho sobem a serra a caminho dum crime que não chega a acontecer.

Como dirá a p. 71: Recordo a chegada ao cimo do monte, depois da viagem que nos extenuara e nos amargurara e o momento em que o meu pai me derrubou sobre o pico e vi a  faca brilhar na sua mão crispada. Ah não há lugar para ele no meu coração e penso frequentemente que o hei-de matar. Porém, outras vezes do fundo de mim ergue-se esta pergunta: porquê tanta rebeldia?

Um número muito significativo de páginas desta primeira parte é consumido a contar as muitas tentativas de encontrar no amor a cura para uma solidão que parece irreversível tão grande é o trauma que Juga transporta no seu coração. Como se todas as portas se tivessem fechado definitivamente. Ainda na p. 71 tem estas palavras que me parecem de um grande rigor analógico: Assemelho-me a um homem que está para morrer, mas tem medo de que a morte não o mate realmente. 

Na segunda parte dividida em 15 capítulos (o último está referenciado como o XVI mas trata-se, obviamente de lapso de revisão) o narrador é Juga em dez capítulos (dois terços) e o autor em cinco (os capítulos seis, sete, dez, onze e quinze).

Aborda-se aqui a passagem de Juga pela Europa onde, entre carências afectivas e uma solidão dolorosa, tenta escrever o livro do qual espera a celebridade ou a compensação para uma vida que lhe tem sido madrasta.

Ele próprio, Juga, diz o que faz em Oslo (p 79): […] estudo um pouco, escrevo outro tanto, faço muita delinquência sexual e escuto enormemente, sobretudo párias. […]

Mas toda essa vida não apaga a sua recordação da infância. Esquecer, esquecer… não era fácil. Tudo para a memória era pretexto para se reinstalar nas suas brasas. Ele não conseguia fugir à sua obsessão. São palavras do autor a p. 109.

Algumas mulheres perpassam na vida de Juga mas sempre de um modo fugaz embora ele admita que Ethya pudesse ter sido a companheira para toda a vida. É ela que lhe diz, numa observação certeira (p. 150): “Pensas, então, que é assim tão difícil aprender a viver? Ou amas tanto desistir que passaste a deitar-te com a frustração como se fosse uma mulher? Pergunto-me mesmo, por vezes, se ela não será a tua única mulher, se não acabaste por desposar a frustração com a solenidade ou o alívio de quem encontra a terra prometida”.

Se ela fosse para mim uma terra prometida, eu estaria coberto de ossos até à alma. […] 

Na terceira parte (nove capítulos), o narrador é sempre o autor, com excepção do capítulo dois. Há, no entanto, dois diálogos relevantes para a estória, um no capítulo três, entre Juga e Jalanga (médico que no fim da vida dedica o seu tempo à tentativa de expansão da sua fé religiosa junto da comunidade) e no capítulo seis, entre Juga e Arga (filha de Jalanga). De qualquer modo há um aumento da importância do autor (enquanto narrador) em detrimento da personagem principal, Juga, quando se passa da primeira para a segunda e da segunda para a terceira parte. É como se o autor não dispensasse controlar a estória e a responsabilidade de pensar os problemas subjacentes a esta obra, relegando a personagem para um lugar menos proeminente.

Como refere Alberto Carvalho em Estética cabo-verdiana (sécs. XIX – XX): o mito da Macaronésia é nesta terceira parte que se dá o regresso de Juga […] como retorno agora aureolado de D. T. Juga, Autor do romance autobiográfico, Diário de Isaac. […] a escrita (do que se tornou o Diário de Isaac) é o significante do processo racional, exegético e cognitivo, não isento de cepticismo na versão de enunciador, como “meditação ontológica […] fábula sobre a penitência ou a remissão, se não fosse um discurso sobre a impossibilidade de esquecer a ofensa”. (citação entre aspas da obra de Didial , p. 201).

É no capítulo VIII que Juga inicia a subida do monte onde o pai o quisera matar; Juga tinha então sete anos, tem agora trinta. Não se esqueceu de nada. Leva consigo uma pistola embora a decisão de levar a vingança até ao fim não esteja ainda tomada. “Se matares, dirá a p.219, acaso haverá um canto da tua alma onde a tua vida será menos vã ou menos dúbia do que outrora?A essa questão, que ele pusera na boca do seu personagem, ele já respondera há muito. Mas ei-la que regressa repercutida, transformada: “Se fazes da tua terra esse túmulo duma dúvida tão dura, deves antes de mais impedir que a tua alma fique semeada aqui com a certeza. Como te crês senhor e servo do alvoroço ou da rectidão?”

Na página seguinte, o autor joga com a vida de Juga e com o livro que este escreveu sob a autoria de D.T. Juga (eco ou réplica de si próprio): No seu livro, Juga havia evitado cuidadosamente aprofundar o sentimento do pai em relação ao filho: Isaac era o centro da pergunta maior: “Que farás da tua vida se a morte deste homem não traz o repouso que espera a tua alma?”

Livro onde a morte (e o suicídio), o ódio, o amor e o sexo se confrontam com o perdão ou se se preferir com o bom senso do perdão, fórmula, porventura mais ao gosto do autor que num outro escrito considera como as mais importantes qualidades do homem e por ordem de importância: o bom senso, a generosidade, a coragem e a inteligência (ver prefácio a Exemplo Coevo, p.11).

Da ficção de Didial este é o único romance publicado ainda que tenham sido editados dois volumes de contos intitulados Contos de Macaronésia.

Com este artigo damos por terminada a gostosa tarefa de dar a conhecer ao público português um grande escritor cabo-verdiano que é também um neurocientista de renome internacional.

 

In das Artes das Letras, Suplemento de O Primeiro de Janeiro, 24 Setembro, 2007

Luís Serrano nasceu em Évora em 1938. Licenciado em Ciências Geológicas (UC), foi investigador da Universidade de Aveiro de 1975 a 2001. Foi um dos fundadores da Revista de Poesia Êxodo (1961). Tem colaboração dispersa em diversas páginas literárias e nas revistas Vértice e Letras e Letras. Está também representado em várias antologias. Publicou Poemas do Tempo Incerto (Vértice, 1983), Entre Sono e Abandono (Estante Editora, 1990), As Casas Pressentidas (edição de autor, 1999 uma das obras premiadas com o Prémio Nacional Guerra Junqueiro) e Nas Colinas do Esquecimento (Campo das Letras, 2004) .