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FERNANDO ASSIS PACHECO – 15 ANOS DEPOIS |
Conferência de homenagem na IV Bienal de
Poesia de Silves, Abril de 2010 |
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A. Introdução e
Nota Biográfica
Fernando Assis Pacheco nasceu em Coimbra em 1 de Fevereiro de
1937 e veio a falecer em Lisboa, na Livraria Buchholz ao início
da manhã do dia 30 de Novembro de 1995.
Licenciou-se em Filologia Germânica pela U.C. Foi co-fundador do
CITAC tendo pertencido ao TEUC, ao tempo dirigido por Paulo
Quintela.
Esteve na guerra, em Angola, (entre 1963 e 1965) e disso
encontramos eco em não poucos dos seus poemas. |
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Após o
regresso de Angola foi para Lisboa onde até ao fim dos seus dias se
dedicou ao jornalismo, colaborando regularmente com O Jornal e
JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias.
O Fernando
era um ano e tal mais velho do que eu. Conhecemo-nos, ainda
adolescentes, nas militâncias católicas à procura de um enquadramento
para as nossas vidas. A nossa procura manteve-se até ao fim. Era de uma
moral que tornasse as relações entre os homens mais justas que andávamos
à procura. E para ter essa moral não precisávamos da religião como ambos
concluímos mais ou menos aquando da entrada na Universidade.
As nossas preocupações passaram a ter um carácter mais cívico do que
outra coisa e traduzia-se, entre outras preocupações, no desejo veemente
que o antigo regime ruísse.
Caído Salazar (por doença) e Marcelo Caetano e o seu governo por acção
do 25 de Abril de 1974, a esperança de um mundo melhor e mais humano foi
para ambos motivo de grande contentamento mas não foi necessário passar
muito tempo para que ambos nos déssemos conta de que afinal a política e
os políticos eram outra coisa: uma operação de carreirismo que podia
levar uns tantos ao poder mesmo atropelando os mais lídimos interesses
da população.
Mas isso foi depois; em 1963 ainda tu acreditavas (e eu também) que o
tal mundo melhor estava ali ao dobrar da esquina à nossa espera. Que
ingenuidade a nossa! Como éramos ainda meninos, Fernando, e isso de ser
menino nem era assim tão mau. Mas por essa altura já nós tínhamos o
vício de ler livros que é uma forma disfarçada de roer as unhas da
mente. E aprendemos alguma coisa mas não o suficiente. Foi por isso, por
essa tua teimosia de acreditar, que só muito tarde, no ano da tua morte
(1995) escreveste aqueles versos doridos:
[…] qualquer um do teu tempo
está bastante melhor do que tu
deputado administrador de empresa
ministro da maioria
puta (alguns chegaram a isso)
só tu meu inocente brincas com a neta
açulas o cão pedindo
à família que te ature
o tipo um dia destes morde-te
que é para aprenderes
mas aqui entre amigos
vou-te dizer também
uma coisa importante não cedas
à tentação de mudar
fica nesta pele que é tua
como é que tu escrevias
merdalhem-se uns aos outros
[…]
(Respiração Assistida, 2003) |
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B. Cuidar dos Vivos |
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Logo pelo título pedido de empréstimo
ao Marquês de Pombal quando na sequência do terramoto de 1755, ele disse
a célebre frase: cuidar dos vivos, enterrar os mortos, se vê que
o poeta olha em frente e acredita que no curto prazo o mundo será
melhor: as ditaduras ibéricas hão-de cair, o regime de Fulgêncio Batista
já caiu e os americanos hão-de sofrer uma derrota vergonhosa no Vietnam.
E esta esperança, esta “certeza” vem confirmada noutros poemas como seja
o da p.20 (Os animais de fogo) em que o poeta diz: […] Eu estou à
beira de nascer outra vez. / Eu tenho de legar ao meu povo / um sentido
mais positivo da existência. […] …E eis por que eu não quero
deixar / que a tristeza invada os meus versos. Há aqui um programa
político subjacente que o leva a uma atitude racionalista de crença num
mundo que há-de ser guiado pela razão. A p. 26 afirma: Mas o Maio
volta. É bom saber / que num dia qualquer de um destes anos / vamos
todos rir e dar as mãos, / troçar do domador se ainda houver. E
houve até 1968 e depois houve outro até 1974 e mais tarde apareceram
outros ainda. A sua preocupação mantinha-se. Leia-se a 1ª estrofe do
poema da p.32: Eu hei-de amar serenamente / com tanto amigo na
prisão, deixar intacta a minha voz / para os acidentes da ternura?
Tinha clara consciência de como era difícil viver nestas contradições
mas repetia para que não esqueça - Um homem tem que viver / com um pé
na primavera. (p.35) e logo a seguir (p.37): A minha geração é de
esperança e já na III parte (p.41) dirá Aconselho-vos o amor: / o
equilíbrio dos contrários. […] ACONSELHO-VOS A LUTA.
Toda esta preocupação e este
triunfalismo eram típicos dos poetas da década de 60, o que o levou à
aproximação aos neo-realistas.
Em boa verdade, como já foi dito por
Mário Sacramento (Há uma Estética Neo-Realista), o neo-realismo enquanto
corrente estética, está muito mais representado na ficção do que na
poesia. A maior parte da poesia dita neo-realista é muito mais lírica do
que épica e “desculpa-se” com palavras de Éluard:
“Não há assuntos privilegiados. Não
existem assuntos proibidos. Acima de tudo, não há poesia de ordem. Tenho
às vezes vontade de escrever poemas sobre os operários, os mineiros, os
trabalhadores e acabo por fazer um poema sobre as folhas como também, às
vezes, quero cantar o amor e acabo cantando a liberdade.
Quando escrevi o poema Liberté
durante a guerra, pensava na mulher amada e repetia o seu nome. Percebi
depois que o meu amor por ela coincidia com o amor pela liberdade e que
o poema era um misto de cólera e de amor.
Não existe poema social no sentido
comum da palavra. Existe apenas a poesia.”
Eu creio que este pequeno texto de
Éluard que serviu de epígrafe a Canções para a Primavera (1960)
de José Carlos de Vasconcelos poderia servir de epígrafe a outros livros
de poesia aparecidos na década de 60, nomeadamente este Cuidar dos
Vivos embora com a ressalva de que nesta obra aparecem já poemas que
reflectem a experiência da guerra colonial, e com ela, forçoso é separar
as águas: à esperança num mundo mais justo e mais humano segue-se a
descrença, esse veneno […] que me envenena.
Fernando Assis Pacheco é um grande
poeta lírico, um homem que carrega o amor (pela mulher amada, pelos
amigos, pela humanidade) e também a morte desde este seu primeiro livro.
A título de exemplo, citemos das p.62/63 (Com a tua letra) alguns
versos: Fala-se de amor para falar de muitas / coisas que entretanto
nos sucedem. / Para falar do tempo, para falar do mundo / usamos o
vocabulário preciso / que nos dá o amor. […] E para falar da
morte; da enorme / definitiva irremediável morte, / do carro tombado na
valeta / […] Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo / da
escuridão do mundo. / Porque tudo se escreve com a tua letra. /
Num outro poema F. Assis Pacheco
escreve:
Mas é preciso que um dia a gente
acorde /
para coisas que não sejam fúnebres.
Para grandes e miúdos entusiasmos,
para lutar (se houver de ser) nos
cornos do boi.
É preciso que um dia a gente se
acenda.
Curiosamente, escrevi ao lado desta
estrofe este comentário a lápis, porventura num dia de má disposição:
acreditaria nisso o Fernando?
Mas ao terminar de reler (quantas
vezes o terei lido?) este livro, o que mais me perturba é um epitáfio
escrito aos 23 anos (1960): Tu que te abeiras deste leito último: /
sê grande no amor, grande na fraternidade. / E nunca me lamentes.
Segue-se um apêndice chamado
Nambuangongo com dois poemas de 63, enviados do teatro da guerra quando
o livro já estava a ser composto; o primeiro (soneto escrito no dia em
que morreu o papa João XXIII, de boa memória) começa com este verso:
Há um veneno em mim que me envenena, e que termina com este outro
e há meu coração posto de rastos. O segundo chama-se O Poeta
Cercado:
O poeta está cercado. Espera-o / um
avô muito velho. […] O
poeta escreve os seus papéis / furtivamente. / Come com gestos lentos e
imprecisos. / Bebe em
silêncio. Olha as matas em volta. / Dorme enrolado no seu cobertor /
como o romeiro do Senhor da Serra, / mas pior, e menos, porque não há
deus. […] Mal ele sabe que
o avô Santiago morrerá ainda nesse ano de 63 (Fernando Assis Pacheco
recebe a notícia no mato.)
Chegamos ao fim de Cuidar dos Vivos
com a sensação de que houve uma transformação profunda em Fernando Assis
Pacheco: é um homem que está sozinho ou que começa a estar sozinho,
descrente de tudo, desencantado (talvez por efeito da guerra colonial
que o traumatizou fortemente como julgo saber) e ainda só estamos em 63.
Restar-lhe-ão 32 anos de vida e as grandes alegrias que vai ter virão da
família: da Rosarinho, companheira de sempre e do nascimento das 5
filhas e do João, o único macho da família. E terá também um pai e uma
mãe que o adoram. |
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C. Catalabanza Quilolo e Volta |
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Este
é, na minha opinião, um dos livros mais dramáticos que se escreveram
tendo como pano de fundo a guerra colonial em Angola. Foi editado pela
Centelha, Coimbra, em 1976. Lembro-me de o ter adquirido numa vaga feira
do livro em Coimbra, curiosamente no velho Chiado que depois tinha sido
propriedade do avô galego Santiago A. A. Mendes e que posteriormente
voltaria ser o Chiado, espaço hoje utilizado como galeria de pintura. O
Fernando estava lá para uma também vaga sessão de autógrafos. Fui
dar-lhe o abraço de sempre e releio agora comovidamente a dedicatória,
simples e despretensiosa que quis escrever na 2ª página “Ao fim de
tantos anos apareço-te com isto. Já sei que entendes, mas há calão à
brava para mastigar: foi o que saiu. O velho abraço do Assis 3.6.78”
Esta obra é, nas palavras do
autor, basicamente a versão original de um título que publiquei em
Maio de 1972, Câu Kiên: um Resumo. Este título era obviamente um
disfarce, um fingimento para iludir a censura. A este original o poeta
acrescentou mais alguns poemas escritos na mesma época mas agora já sem
a possibilidade de os atrasados mentais da censura se poderem
intrometer.
Logo na 1ª parte (Lisboa) e no 1º
poema intitulado “E havia Outono?”. O poeta diz: Havia o que não
esperas: árvores, / altas árvores de coração amargo, / e o vento rodopia
e leva / as folhas cegas / por sobre a cabeça do homem. / Havia um coto
em sangue.
Como se vê, a seguir a uma introdução
ao Outono, um Outono como há outros com a sua queda de folhas, surge-nos
um Inverno que é um soco no estômago: Havia um coto em sangue.
F. Assis Pacheco vai utilizar por
diversas vezes esta “técnica” de ponto / contraponto. Leia-se este poema
na sua continuação: Morreremos dez vezes / para nascer dez vezes, /
não morreremos nunca, / diziam // […] Havia o que não esperas:
risos, / lágrimas como risos, / lágrimas / como folhas cegas /
explodindo ao de leve; / e a morte –
Retiro da 2ª parte (Dembos) o poema
Morro do Aragão que transcreverei na íntegra:
Encosto a cabeça a um pneu / acendo
o cigarro / passarão anos sobre
esta
lembrança entontecida.
Amanhã dormirei? /
foi agora que a morte / o
sono dentro da cabeça /
este pneu sobre a lama.
Luzes de Nambuangongo
ao longe, amanhã estarei
deitado no meu catre.
As cartas enlouquecem / casa, pai!
Foi agora que as luzes. O sono,
O pneu / o cigarro sujo.
Pacheco, O. K.? A mão pesada
dentro do bolso / o sono
sobre o pneu.
Noite, noite entontecida.
Passarão anos, nascerão filhos
muito antes que eu esqueça.
O. K., O. K. / rio de trevas.
Chamo a atenção para o carácter
compulsivo deste poema onde certas palavras se repetem: pneu, sono,
lama, o peso dos vocábulos “casa” e “pai” na economia do poema, a
palavra morte uma só vez enunciada mas implícita na palavra sono
(eufemismo). Há mesmo uma frase que fica a meio: Foi agora que as
luzes. Tudo isto dá uma ideia de desnorte, de desalento, de grande
confusão, de um clima depressivo que lança o poeta numa indisfarçável
vontade de não estar ali. Mais tarde, no livro póstumo voltará ao tema,
sugerindo que outros poderiam lá estar que não ele e os companheiros
compelidos a fazer uma guerra para a qual não foram nem achados nem
ouvidos.
Nalguns poemas, Fernando Assis Pacheco
emprega o seu conhecido sentido de humor para destruir a guerra pelo
ridículo ou para reagir ao medo. Assim, no poema “Por estes Matos”, um
daqueles poemas que é costume classificar como poesia em prosa (como se
isso fosse importante!), nas últimas linhas escreve: Se tivesse aqui
o meu pai dizia-lhe: “Isto não vale o silêncio que usais, senhor;
protestai comigo diante das palmeiras; sentai-vos no banco de pau, é por
estes matos que tudo foge.” A guerra perdeu a medida.
O único sítio de paz foi cavado
anteontem. Entra-se por um lado, caga-se e sai-se pelo outro.
Poemas há que eu não conseguiria ler
alto, tal é a dor que deles transpira: “As Balas”, por exemplo (p.39/40)
e “Relato”, um sonho, um pesadelo onde entra um pai, um tio, um jeep e
mais não digo (p.51 a 53)
Na 3ª parte (Luanda) alguns títulos de
poemas são significativos: “Isso, a Walter”, “Ode ao Librium Dez” “A
Filha” (Ajudai-me a cantar a filha. / Preciso de cantar / esta
alegria simples que se abate / sobre uns ombros mesquinhos: / […]
Preciso de cantar a filha. […] Luanda é a noite / despojada de
estrelas. /Não merece esta filha.).
Esta obra termina com uma 4ª parte com
o título igual ao da 1ª (Lisboa). Do Genérico (p.73) retiro apenas os
primeiros 6 versos (e sem comentários): E tu, meu pai? Adivinho esses
vidros / das lágrimas quebrando / um a um na boca triste mas / por
dentro, para que digamos / mais tarde, sem invenção escusada: / o pai
não chorou. |
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D. Memórias do Contencioso |
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Trata-se
de uma edição Heptágono, Lisboa, 1976, graficamente muito modesta como
se tivesse sido escrita na velha máquina de escrever (tecnologia que o
Fernando nunca abandonou). Seria uma homenagem a alguma velha Remington?
Era homem para isso!
São poemas de amor. Se alguma dúvida
subsistisse bastaria ler a epígrafe retirada do 1º verso do soneto
LXXXII do Canzoniere de Petrarca: Io non fu’ d’amar voi lassato
unquancho que na minha modesta tradução dá qualquer coisa como isto:
Nunca fiquei cansado de vos amar.
Este pequeno opúsculo de apenas 8
páginas encerra poemas escritos entre 1963 e 1976 e dele não resisto a
ler-lhes os poemas 8 e 9.
Poema 8:
mas segundo o discurso “em voga”
maldita seja a sorte que na morte
da forte vida sobre as patas
me tenha em locus solus
e derramem-se-me os óleos
do coração e a
vista se me feche e cuspam
de longe neste gafo
se for para calar-me e não disser
o teu nome no fim, sempre o teu nome
Poema 9
não pude amar mais nada
não pude mais ninguém
e mesmo que te minta
é o contrário disso
e mesmo que te minta
é a verdade seca
posta ali às avessas;
não pude amar mais claro
Chamo
apenas a atenção para a rima interna e aliterações (sobretudo no 1º).
Não há aqui lugar para efeitos especiais, variações, rodriguinhos,
coisas assim. É uma poesia enxuta ainda mesmo quando confessa o grande
amor da sua vida. |
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E. Siquer Este Refúgio |
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Obra editada também por Heptágono
(Lisboa, 1976, 8 páginas). Aborda alguns lugares com os quais o poeta
teve uma relação privilegiada: “Olivais, Coimbra”, “Inverness, Escócia”,
Bouzas de Fondo, Orense”, “Quarto Bairro, Paris”, “Chiado e Lumiar,
Lisboa”, “Peniche”.
A epígrafe que abre este caderno é da
Canção X de Camões: Siquer este refúgio só terei: / falar e errar,
sem culpa, livremente.
O poema Bouzas de Fondo, Orense: a
Muiñeira é um curioso poema onde se misturam frases entrecortadas e
retiradas de outros contextos com palavras portuguesas e galegas numa
amálgama que diz bem do sentido cultural e familiar que o poeta tinha
com a Galiza.
Um outro poema que revela um poeta
experimentalista é Chiado, Lisboa: Escritor à Barra. São frases
cheias de ironia imaginadas ao balcão de um bar do Chiado, não têm
princípio nem fim mas o gozo do poeta vê-se em expressões como estas:
“…que tu paraste: parei?: a dita
revolução na via uriginária portuguesa: o uriginol!”
“…que mau grado os apetites por uma
literatura ao serviço do puâbo”
“…que somos um funeral”
Creio que estas três frases chegam
para mostrar uma ironia que vira sarcasmo e denota um homem triste num
país triste a beber um copo ao balcão ouvindo as tristuras dos outros
compinchas de ocasião. |
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F. Variações em Sousa |
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Editada em 2004 por Angelus Novus e
Edições Cotovia, esta obra apresenta-se dividida em três partes e é de
algum modo uma revisitação de Coimbra pela mão do poeta António de Sousa
como sugere Gustavo Rubim, autor do posfácio. Os poemas foram escritos,
certamente antes de 1984, pois existe uma 1ª edição de Hiena Editora
(1987) mas já tinha havido uma edição anterior (1984) não comercial.
A 2ª parte traz à nossa leitura quatro
poemas com o mesmo título Chula das Fogueiras. São referências a
vagas namoradas ou nem isso, que o autor despachou ou por elas foi
despachado (tu querias era casar na Sé Nova / […] fiz-te
pois um manguito do tamanho dum choupo […], etc.
A minha atracção, porque de atracção
se trata, vai para “Canção do Ano 86” (é um encontro consigo próprio,
Coimbra ao fundo e esse sentimento que o não abandonará mais, de
perdedor) a que não é estranho um indisfarçável pudor:
Agora quando volto
quando é raro voltar e sempre por
um dia
estou à minha espera na ponte de
Santa Clara
com um ramo de rosas que levanto
à aproximação do carro
saudando-te caro Fernando Assis
Pacheco
filho pródigo destes quintais
floridos
quando acontece que volto
que assim volto por pouquíssimo
tempo dou comigo
na berma da EN 1 a olhar à esquerda
o Vale do Inferno
hoje estragado por um sacana
qualquer dum engenheiro
dizendo adeus adeus Fernando Assis
Pacheco
menino antigamente sem cuidado
se é que volto intimado pela agenda
do jornal em Condeixa já inquieto
espreito
a ver se vens dos lados de Pombal
oitavo duma fila atrás dum camião
coçando a barba gesto bem teu
com que disfarças o nervoso e a
pressa
volto sem querer quando decerto
mais não queria voltar
encasacado anónimo de olho
circunvago
Leiria num relance prego no fundo
apetecia parar ao pé de ti Fernando
Assis Pacheco
cálido aceno do que morreu
conversamos os dois sobre esse
século esses
cafés com quatro mesas e
matraquilhos na cave a cheirar a bolor
essas aulas a que faltávamos no
último período para empatar
cinco a cinco com os varões todos
torcidos
consta que desde então
não fazes mais do que perder
Há neste poema um jogo de espelhos, um
flash-back (não lhe chamo analepse porque há neste poema
muito de linguagem cinematográfica: plano geral sobre Coimbra vista do
Vale do Inferno, vários grandes planos sobre o Fernando aos 20 e aos 50
anos, um travelling a grande velocidade nas imediações de
Leiria, etc), um flash-back dizia numa tentativa desesperada de
se encontrar a si próprio e perceber a sua pessoa e o mundo em que vive.
Mas o Fernando era já um perdedor, disfarçando com a laracha, com esse
espantoso sentido de humor que era o seu e que é apanágio das pessoas
inteligentes mas tristes, era um homem com o país colado à pele, aquilo
que Alexandre O’Neill traduziu pelos conhecidos versos Portugal:
questão que eu tenho comigo mesmo, / […] meu remorso, / meu
remorso de todos nós...
Do Soneto aos filhos (p.42),
curiosamente um “soneto” com 15 versos, retiro o último verso, o 15º:
mas livrai-vos do luxo e da soberba. Que melhor testamento moral se
podia deixar aos herdeiros? Ele dá bem a medida das preocupações de
ordem moral que foram sempre as suas ao longo da sua vida, primeiro com
Deus e depois sem Deus. Que diferença faz?
Um outro poema deste Variações em
Sousa e que é uma reflexão sobre a morte, que digo eu? Uma
premonição da morte em forma de fábula:
Ora uma vez um mocho diz o meu
filho
que sabe todas as histórias do
mundo
uma vez um mocho
o macaquinho pergunta-lhe
o que é quando se morre?
pois nada diz o mocho
morre-se praí
o macaquinho insiste
mocho e quando tu morreres?
morro nada diz o mocho
hás-de morrer tu primeiro
mas veio uma zorra e comeu o mocho
que foi para um buraco muito fundo
ninguém cantava nesse buraco
só os morcegos e mesmo esses
só se a gente lhes batesse
com uma vassoura da cozinha
o macaquinho come bananas
escapa-se ao jacaré do Amazonas
que lhe quer dar uma dentada
salta nas árvores
uma daquelas era onde estava o
mocho
coitado do mocho
não viu a zorra ao pé da
carvalheira
morre-se praí
morre-se num instantemente de nada
morre-se a morte mocha
sem a gente dizer ai |
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G. Respiração Assistida |
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Trata-se de obra póstuma, editada em
2003 pela Assírio & Alvim, com posfácio de Manuel Gusmão tendo a
organização da edição sido da responsabilidade de Abel Barros Baptista.
Reúne 35 poemas escritos entre 1991 e 1995, 26 dos quais nos dois
últimos anos de vida; alguns deles foram revistos poucos dias antes da
sua morte, nomeadamente o que dá o título à obra, datado de 27.11.95.
É um dos livros mais tristes e mais
dramáticos que alguma vez li. Que não se iludam os que lerem os sonetos
1, 2, 7, 8 e 9. Estes cinco sonetos (eróticos ou como pretende Manuel
Gusmão, licenciosos e a meu ver bem) são ainda a expressão de uma
ligação à vida, de um forte amor à vida, pela mão de Diónisos. É como se
por essa via, ele nos quisesse dizer que, apesar de tudo, a vida vale a
pena ser vivida.
Quanto aos restantes, alguns referem
os seus graves problemas de saúde, alguns são ainda reminiscências da
guerra, poemas dedicados à memória de amigos que, entretanto, morreram
(D. Manuela Alegre, Afonso Praça, Bento Soares) e outros.
Entre esses outros, um dos que mais me
enternece é este:
O que vai ser avô saúda-vos
parentes meus
mudos sob a terra guardados
em roupas que sobraram nas gavetas
papeleiras inúteis
pratas deformadas
velhas fotos severas
numa delas meu pai menino
de pé no seu bibe escolar
e a cara tão séria
que jamais perdeu
mesmo quando sorria
minha mãe moça magra
o que se dizia bem posta
vinda nesse ano
de Melias em Ourense
aturdida com a festa
que as minhas filhas
foram conhecer comigo
e como ela bonitinhas
mas depois chega a morte
adeus Cazurro barqueiro
adeus sr. Santiago A. A. Mendes
-nome comercial- adeus tios Eládios
logo dois um deles meu tio-avô
com a sua lojinha em Ourense
aonde eu ia comprar pipas de
girassol
o outro dizem os filhos meu muito
amigo
mas com quem me desavim
por qualquer motivo estúpido
desses que ninguém explica
parentes vizinhos olhos
que já não vêem nem eu vejo
a minha rua e depois outra
para onde mudei tão infeliz
onde afinal fui feliz muitíssimo
ei-la aqui a neta um vulto ainda
na barriga da mãe
também feita do que eu sou
e se quiserdes ó memórias
o que no mundo
sobra de vós todas
Vilagarcía de
Arousa, 10.IX.95
Lisboa 10.X.95
O poeta conheceu apenas a primeira
neta, Margarida, nascida em Dezembro de 1994, o que significa que as
datas acima referem apenas o termo do poema, certamente iniciado muito
mais cedo.
Mas o livro, repito, é quase tão
triste quanto o Só de António Nobre. Não tinha muitas razões para
estar contente ou esperançoso. A saúde ia de mal a pior e o país
afogava-se num lamaçal de que ainda não saiu e já lá vão 15 anos. Basta
reler o poema da p. 36:
Este ministro é um mentiroso
que agonia quando ele discursa
e se fosse só isso: bale sem jeito
às meias horas seguidas – e não pára!
bem-aventurados os duros de ouvido
a quem o céu abrirá as portas
desliguem p. f. o microfone
ou então tirem o país da ficha
Este livro, Respiração Assistida, livro póstumo, como já se
disse, dá-nos bem a medida do seu talento mas dá-nos também a medida do
seu desencanto, as contínuas alusões à morte que ele sabia estava
próxima. Mas a grande maioria, para além de ser um conjunto muito belo,
é tremendamente melancólico.
O poema que dá o título ao livro corrigiu-o Fernando Assis Pacheco três
dias antes de morrer (Eu vi a morte / de noite – névoa branca - /
entre os frascos do soro / rondar a minha cama (...).
Outros são poemas de inexcedível ternura como aquele cujo tema é o seu
próprio pai:
O dia em
que nasci meu pai cantava / versos que inventam os pastores do monte /
com palavras de lã fiada fina / cordeiro lírio neve tojo fonte // esta é uma velha história de
família / para dizer como ele e eu chegámos / à raiz mais profunda do
afecto / da qual nunca jamais nos separámos // nem Deus feito menino
teve um pai / que o abraçasse e lhe cantasse assim / a primeira hora até
ao fim // fui vê-lo ao hospital quando morria / olhos parados num
sorriso leve / tojo cordeiro lírio fonte neve. |
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H. Conclusão |
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Foram muitos os escritores e não só, que quiseram dar testemunho da
admiração que por ti tinham: por exemplo, Joaquim Manuel Magalhães e
José Cardoso Pires (um texto belíssimo e emocionado; só não estou de
acordo com ele quando diz que tu eras um homem feliz, bem o enganaste;
basta ler o poema da p. 45 “Um tal Fernando Assis Pacheco” onde se pode
ler […] adorava os pais
mas tinha medo / quando zangados se punham aos gritos /
[…] chorava então desabaladamente
/ […] mesmo depois a noite que urinasse / no pijama era um
protesto civil / encharcou assim grande parte das Beiras / não lhe
perguntem se foi feliz); o poema
tem data de 25.V.95. Continuo a citar os escritores que quiseram dar
testemunho de ti: José Bento, Jorge Amado, Zélia Gattai, António
Tabucchi, Brigitte Paulino-Neto, João Miguel Fernandes Jorge, Luís
Sepúlveda, Antón Mascato, Paco Feixo, Fernando J. B. Martinho, Eugénio
Lisboa, João Francisco Vilhena, Xesús González Gómez, Mário Quartin
Graça, José Eduardo Rebelo e José Carlos de Vasconcelos (responsável
pela coordenação dos dois números do JL dedicados ao poeta).
A este número há que acrescentar poemas dedicados à sua memória da
autoria de Manuel Alegre, Rui Knopfli, Luís Filipe Castro Mendes, Manuel
Alberto Valente e José Manuel Mendes.
Meu caro Fernando, há quantos anos deixámos de nos ver? A última vez que
estivemos na mesma sala foi numa homenagem ao Prof. Paulo Quintela e não
chegámos a conversar. Nem sequer te cheguei a ver. Foi a mulher que me
veio dizer: olha, estive a conversar com um grupo de pessoas entre as
quais se encontrava o Fernando Assis Pacheco que te manda um grande
abraço. São partidas que a vida nos prega, Fernando: éramos amigos e tão
poucas vezes nos encontrámos depois que foste para Lisboa e eu,
primeiro, para o Porto e a seguir para Aveiro. E eu não arranjei tempo
para te retribuir o abraço e só eu sei quanto apreciei sempre a tua
poesia, quanto apreciei sempre a tua generosidade, a tua disponibilidade
para os outros.
Olha Fernando, partiste vai para quinze anos e o mundo não está melhor.
Pelo contrário, são os medíocres que triunfam, os oportunistas, aqueles
que são capazes de vender o pai e a mãe por um lugar ao sol. Por isso,
deixa-me fazer minhas, repetindo-as, aquelas tuas palavras do poema das
p. 43-44: (...) qualquer um do teu tempo / está bastante melhor
do que tu /deputado administrador de empresa / ministro da maioria /
puta (alguns chegaram a isso) // só tu meu inocente brincas com a neta /
açulas o cão pedindo / à família que te ature / o tipo um dia destes
morde-te / que é para aprenderes // mas aqui entre amigos / vou-te dizer
também / uma coisa importante não cedas / à tentação de mudar / fica
nesta pele que é tua // como é que tu escrevias / merdalhem-se uns aos
outros // o país mete dó // guarda o último tesão / para mandares / meia
dúzia de canalhas à tabua.
Da tua vida fica-me uma saudade imensa e este conselho (tu que não
gostavas de dar conselhos a ninguém): não cedas à tentação de
mudar fica nesta pele que é tua.
Obrigado, Fernando.
Luís Serrano, Aveiro, Março, 2010 |
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Simão, neto de
Fernando Assis Pacheco, Luís Serrano e Maria Gabriela Martins Gouveia,
na sessão de homenagem a Fernando Assis Pacheco, na IV Bienal de Poesia
de Silves, Abril de 2010 |
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Luís Serrano nasceu em Évora em 1938. Licenciado em Ciências Geológicas (UC), foi investigador da Universidade de Aveiro de 1975 a 2001. Foi um dos fundadores da Revista de Poesia Êxodo (1961). Tem colaboração dispersa em diversas páginas literárias e nas revistas Vértice e Letras e Letras. Está também representado em várias antologias. Publicou Poemas do Tempo Incerto (Vértice, 1983), Entre Sono e Abandono (Estante Editora, 1990), As Casas Pressentidas (edição de autor, 1999 uma das obras premiadas com o Prémio Nacional Guerra Junqueiro) e Nas Colinas do Esquecimento (Campo das Letras, 2004) . |
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