LEONORA ROSADO
«Fado menor» e outros poemas
 
Fado menor

É um grito vedado em arame farpado, um muro calado que se quer agitar.
Uma pausa que dói, um medo aceso laminado, em eco de extinto furor.
Uma alma de ventre que de sangue se sente não indolor.
São rios esvaídos na gota da saliva de quem te apelida, sonhador.
Trovas desfiadas, Até quando?
Sentes, meu amor?


Há noites. E dias.

Havia noites assim.
Em que o calor era reflectido
no cheiro da imaginação.
Em que pontiagudas fendas
se entrecruzavam dispersas
no alcatrão azul das vagas.
Onde sonhar era o marmóreo
repouso no cais das cinzas
de uma infinitude de pequenas
circunferências.
Onde degustar o rio era ver-te
Alheio em cigarros e andrajos de marca.
Há noites. E dias.
E há também a incomum
maneira de desvirtuar os cilindros.

Em roldanas e placenta de chumbo
carbóreo.
Cingidos.
Há noites assim.
Onde os gatos dormitam sobre
o gravitar vadio dos astros,
em que se acordam às sacudidelas
soluços.
E...
Levo-te na ponta da naifa.
E zás!
Há noites. Havia.


Há sílabas

Há sílabas

que  me definem o traço
Palavras  delatoras
que conspiram
apontando o dedo
E todos sabem
 desse enlouquecido odor:
foste tu.       

Estrofes  que pendem
na irregular ausência,
ao  sufocar a métrica
pelo passo respiratório
do funil em que há muito
esganei a rima, com malvadez,
e sem requintes.
Com uma certa
perícia convicta, precisão de instrumento,
lato e germânico,  o metrónomo (por exemplo).

Deixo os versos com as palmas
das mãos viradas para cima, para que respirem,
através do celofane, ornamento incapaz.
Sabes, murcharão antes das próximas águas
e se me detectas através do sarnento odor,
do recorte da letra, ou seja lá do que for,
pois bem, que não fique nada, nada branco
que se pegue à carne.

Ando de morte em morte, a entornar o sangue
da casta enxada na mortalha que se exprime.
Que se cale!
Ando pelos aterros da lama a verter o venoso líquido,
a beber da escumalha carrascão, a furtar-me
de mim.

Exangue.


Escrevo de dentro

Escrevo de dentro, escrevo com a fúria
a uivar nos dedos.
Rasgo a pele poro por poro.
Indolor?
São apenas palavras que não sinto,
as palavras não me interessam.
Já a fúria... Doía-me se não passasse tudo de um écran efémero,
mas sinceramente, é-me igual ao litro.
Desgrenhadas flechas com que escrevo.
De dentro.
Não as subscrevo.
Nem as entendo.


Imaginário

Imaginei que era possível respirar a cidade
em que sons exalam plataformas e becos de saída
confinados à indiferença ou à mera distração de quem passa desatento.
Caóticos e soberbos são os olhares que as crianças brincam em jogos de vida ou de morte
genuína a falta de pudor com que o fazem.
Passaste por mim esta noite mas não te vi leve odor almiscarado deixou-me imaginar que eras tu.
Imaginei a cidade.
Madrugada adentro e os sonhos desvirginaram a minha almofada profanaram o meu lençol.
Branco e só com o silêncio sorriste.
Imaginei que era possível respirar a cidade.
 
 
Leonora Rosado - Nasce no concelho de Sintra em 1971.
Desde muito cedo revela interesse quer pela leitura assim como pela escrita, poesia,
sobretudo.
Teve o privilégio de ainda em criança se cruzar com poetas nomeadamente, Ruy Cinatti,
Joaquim Ferrer entre tantos outros...
A escrita é a sede que ávida tenta saciar incessantemente em eterno retorno.
Insaciedade de Tântalo. Em vertigem constante.