Se
de alguma forma podemos afirmar ser “função” da poesia, se é que deverá
ter alguma função, entre outras coisas, a produção do real ou
quotidiano, a configuração da instigação ou
persuasão e
encantamento, a ininterrupta adequação entre meios e
fins, um projecto cultural ou
estético e ético, etc. (embora
todos estes parâmetros se possam valorizar mais ou menos em função do
contexto) e, ainda que seja recorrente a afirmação bastante
conhecida de Shelley na sua “Defesa da Poesia” (1821): Os
poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo, hoje, a
criação poética cada vez mais se vê (ou deveria ver) reduzida àquilo que
Hugo Friedrich chama "dissonâncias", "anormalidades" e "categorias
negativas".
O poeta norte-americano Robert Creeley tem um poema que
coopera na configuração do papel da poesia hoje: Penso que cultivo
tensões / como flores / num bosque onde / ninguém vai...". Aí, está
o lugar da poesia e do poeta: bosque / mundo "onde ninguém vai”.
Pressões e tensões em ebulição. Portanto, há dois movimentos distintos e
complementares que levam a poesia para uma situação extrema: o movimento
do mundo real, que a expulsa de seu círculo, e o movimento de cada poeta
— que, ao "cultivar" tensões, distancia a poesia do espaço comum das
realidades deste mundo.
Pedro Tamen assevera: Suspendo a mão entre o A
e o B, / entre a minha vida e a vida que andará / dentro da minha vida.
A vida dentro da vida, o tempo dentro do poema, o tempo
que revela quase sempre a visão particular do mundo, ou dos mundos do
poeta e a sua atitude perante a problemática que envolve o ser humano. O
tempo no tempo do poema é espaço aberto, no qual o poeta concretiza a
sua visão da vida e a imagem do espaço que o alimenta e destrói, o tempo
onde se reassume a função originária de baptizar os signos do mundo.
Como afirmou Roman Ingarden, em
A
obra de arte literária,
esta, não constitui um feixe de elementos justapostos,
mas uma construção orgânica, cuja uniformidade se baseia exactamente na
peculiaridade dos estratos singulares. Os estratos são heterogéneos,
combinam-se entre si, têm características particulares, garantindo a
unidade do todo. E é no tempo do poema, que o poeta enraizado em
seus peculiares e singulares tentáculos, intenta e arrisca fazer uma
fusão entre o plano da vida coabitada e o plano da vida criada, num
tempo outro, num sonho outro. A caverna, onde a poesia e a sílaba acesa
se direccionam para o sentido profético do “verbo-milagre”, que tem o
poder de acarretar à vida, ao explosivo campo da linguagem, qualidades
metafísicas da morte e, ao mesmo tempo, revelá-las em seu esplendor de
vida. Um tempo sem alicerces e sem inquietude quanto à falta de
alicerces, pois talvez isto seja o que a poesia era antes de a
começarmos a metamorfosear. O poeta Herberto Helder profere
apocalipticamente: Um poema cresce inseguramente / na confusão da
carne, / (…) E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. / E já
nenhum poder destrói o poema. / (…)
— Em baixo o instrumento perplexo ignora / a espinha do mistério. / — E
o poema faz-se contra o tempo e a carne.
O poema e a poesia deverão imperiosamente criar o seu
próprio tempo, pois se não o fizerem, não estaremos perante poesia, mas
perante uma outra qualquer forma ou estrutura de linguagem. O poema e a
poesia fugindo do tempo linear em que assenta a força motriz do mundo,
ou dos “mundos” (que aparentemente representam o real, mesmo se
estivermos ante a denominada “poesia do quotidiano”) impondo de forma
absoluta o seu próprio mágico e doloroso labirinto.
Profere T. S. Elliot, nesse fabuloso livro que se chama “Quatro
Quartetos”: Ou seja, que o fim precede o
princípio / E que o fim e o princípio sempre estiveram lá / Antes do
princípio e depois do fim.
“Ou seja”, não deverão poesia e poema, abertos e subtis
em seu permanente jogo de contrários, nessa imprevisível dialéctica
entre espaço e tempo (o tempo fora do tempo e dos tempos) possibilitar
as cúpulas para uma leitura outra (porque um tempo outro) do “mundo” ou
dos “mundos”, em que quase sempre julgamos ilusoriamente ser deuses
capazes do inefável, capazes de navegar o tempo inexplicável da
intemporalidade?
O tempo da poesia, o tempo do poema, o tempo funcionando
sempre, em cada momento único, como o descentramento da fortuita
realidade em seu e nosso infinito labirinto.
Na eterna errância do poeta em direcção à morte, o que
mais importará será a viagem, o trajecto, o longo trilho da memória sob
o orvalho, o tempo dentro do tempo – o verbo corpo de linguagem.
Infinita. Sempre aberta à imaginação, à sagrada ilusão da sílaba, o
caminho outro, a consciência de uma particular visão do mundo derivado
de um tempo próprio e único, como se a criação poética pudesse ser a
brutal fonte da lucidez que brota da ilusão justificada – a verdade,
essa ficará para os deuses.
Pois mesmo em poetas como, Homero, Dante, Shakespeare,
Camões, Rimbaud, Withman, Baudelaire, F. Pessoa, Elliot, Pound, Yeats,
Lorca, H. Hélder e outros, o tempo da poesia é apenas a concentração
absoluta e pura da vida e da morte em sua trágica e divina ilusão, o
carnal corpo da linguagem sempre exposto à ilusão do tempo e à absurda
alucinação da metáfora. A peregrinação. A viagem com fim marcado.
Samuel Beckett não tem dúvidas quando pronuncia:
Que faria eu sem este mundo sem rosto sem questões /
Quando o ser só dura um instante onde cada instante / Se deita sobre o
vazio dentro do esquecimento de ter sido.
O sentido e a rota inexorável do futuro estará sempre
inscrita no que fazemos no presente. E é por isso, que é essencial
fabricar-se uma perspectiva em que o tempo do poema terá que ser o
centro em que se gerará a ideia de um tempo outro. Um tempo em que não
exista tempo fora dos desejos dos sonhos e da memória. Onde talvez não
exista sequer tempo fora dos signos que se sobrepõem aos sonhos e utopia
que os invocam. Mas terá que ser forçosamente o tempo do poema, da
poesia, a contradizer em seu habitat, em seu sopro de tempo, tal
condição. É esse tempo que se apelidará de “tempo da poesia”. O tempo em
que como diz Fernando Pessoa: Há um tempo em
que é preciso abandonar as roupas usadas… / Que já têm a forma do nosso
corpo…/ E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre / aos mesmos
lugares.
O sentimento de um tempo, o tempo do canto feroz, onde a
cilada e a cólera, a espera e o desespero, nascem dessa perspectiva de
campo de fantasia, do lugar outro – a poesia!
Logo, não admira, que essa busca insana de imortalidade,
de intemporalidade, nos iluda, mais ou menos consoante a dialéctica
entre o espaço e o tempo, dependendo da forma com que neles nos
representamos, tendo em conta a percepção da finita existência do verbo
e da memória. Apesar da permanente ilusão de permanência no tempo do
poema.
Pois é lá, na beleza do caos, no tudo que é nada, que a
eternidade poderá iludir-se que acontece. Mas na verdade, o tempo do
poema terá que continuar a ser o leito sagrado onde o poeta tecerá a
urdidura que permitirá sonhar um mundo outro, um lugar outro, fabricando
o linho ou a mortalha que concederá o sentimento continuado de ser
omnipotente. E será esta urdidura no tempo do poema, que sustentará o
leito mortífero do tempo. A poesia em sua harmoniosa e fatídica
plenitude. A morte como alimento de vida. A poesia como língua-milagre
em seu espaço aberto, capaz de transfigurar e metamorfosear a realidade
e veracidade do homem, pois ela, como referiu Octávio Paz, é um “tempo
revelado”, ou seja, a “enigmática transparência” do sopro incandescente.
Pois, Não será o medo da loucura / que nos forçará a pôr a
meia-haste / a bandeira da imaginação – André Breton,”Primeiro
Manifesto Surrealista”, uma vez que como canta Pedro Tamen:
A minha desforra são palavras / Levanto-me de manhã
amarrotado / pelo peso inclemente das mentiras / e vazo no real outro
real / das letras que ninguém vislumbrará.
João
Rasteiro, Silves, 25/04/2010 |
JOÃO
RASTEIRO
(Coimbra - Portugal, 1965). Licenciado em Estudos
Portugueses e Lusófonos, pela Universidade de Coimbra. Poeta e ensaísta,
traduziu para o português vários poemas de Harold Alvarado Tenorio, Miro
Villar e Juan Carlos Garcia Hoyuelos. É sócio da Associação
Portuguesa de Escritores, membro do Conselho Editorial da
Revista Oficina de Poesia e do
Conselho Editorial da revista brasileira Confraria do Vento.
Tem poemas publicados em várias revistas e antologias em Portugal,
Brasil, Colômbia, Chile, Itália e Espanha e possui poemas traduzidos
para o Espanhol, Italiano, Inglês, Francês e Finlandês. Publicou os
livros de poesia, A Respiração das Vértebras (Sagesse, 2001),
No Centro do Arco (Palimage, 2003), Os Cílios
Maternos (Palimage, 2005), O Búzio de Istambul (Palimage,
2008) e Pedro e Inês ou As madrugadas esculpidas (Apenas Livros,
2009). Obteve vários prémios, nomeadamente a Segnalazione di Merito no
Concurso Internacionale de Poesia: Publio Virgilio Marone(Itália-2003),
o 1º prémio no Concurso de Poesia e Conto: Cinco Povos Cinco Nações,
2004 e o 1º prémio – na categoria
de autores estrangeiros - do Premio Poesia, Prosa e Arti
Figurative-Il Convívio (Verzella, Itália, 2004).
Em 2005 integrou a antologia: “Cânticos da Fronteira/Cánticos de
la Frontera (Trilce
Ediciones – Salamanca). Em
2007 integrou
a antología Transnatural,
um
projecto
multidisciplinar sobre o Jardim
Botánico de Coimbra.
Em 2007 foi um dos poetas
participantes nos VI Encontros Internacionais de
Poetas de Coimbra,
F.L.U.C. - Universidade de Coimbra. Em 2008 integrou a
antologia e exposição internacional de surrealismo O Reverso do
Olhar. Em 2009
integrou a antologia: “Portuguesia: Minas entre os povos
da mesma língua – antropologia de uma poética”, organizada pelo
poeta brasileiro Wilmar Silva e que engloba poéticas de Portugal,
Brasil, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Em
2009 organizou
um número especial (nº
44) da revista Colombiana Arquitrave sobre a
poesia
portuguesa mais
recente:
A Poesia
Portuguesa hoje.
Prepara-se para publicar um novo livro que se intitulará: Diacrítico.
Vive e trabalha em Coimbra, no âmbito cultural da C.M.C. Mantém em
permanente irrupção o sísmico fulgor do blogue:
http://www.nocentrodoarco.blogspot.com/ E-mail: jjrasteiro@sapo.pt |