Coimbra é uma cidade muito delicada. É como se fosse a asa de uma borboleta de cristal a tremular sob o azul do céu, acima das cabeças onde fervilham os sonhos. E de repente, numa rajada de vento suave era arremessada para os confins das trevas, onde não é possível determinar nem descobrir o que nos sustenta e ilumina. No fim de Dezembro o jardim do parque Dr. Manuel Braga estava completamente gelado e os pássaros esvoaçavam sobre o gelo dos ramos das árvores. O sossego do início da noite será vagarosamente ruidoso e luminoso, como se o instante se eternizasse até à opulência estática do ocaso. Em mais uma véspera de Natal caminhava-se pela cidade com a utopia feliz de se renascer em breve, sem pecados, sem pudor, de forma impetuosa. Era o instante, a luz e o eco, o sopro visceral da linguagem quando se parava à saída da ponte de Santa Clara, com o rosto voltado para a Raínha Santa, misericordiosamente oferecida. Depois, a cidade abria-se de forma austera e inflexível aos homens das guelras alagadas de negro basalto. Havia várias ruas para escolher, pequenas, grandes, misteriosas ou simplesmente ruas e avistava-se o largo da Portagem sob um manto de fumo incolor. Foi isso que lhe aconteceu. É então que se lhe impõe a tarefa de simplificar a circulação da realidade imediata. O nascimento estava perto e o frio adquirira a lenta espessura da temporalidade e da angústia. Chegava com uma pequena mala de mão, muito gasta pelo tempo de uma existência infinita e inexplicável, uma dessas malas cuja existência é um habitáculo que costuma levar apenas duas camisas, uma toalha e uma escova de dentes. Um espaço decorado pela pele ungida de promessas e licores raros que os espinhos sagrados roubam envergonhados. A mala de um desgraçado ou descobridor de cidades, nas suas formas exteriores, em suas feições de ser uno.
Esta era uma cidade antiga, notava-se bem, uma cidade velha e adormecida. Estavam três graus negativos. Abriam-se algumas ruas próximo da estação dos Caminhos-de-ferro. Perto, a praça da Portagem, depois da Portagem, outras ruas, outras travessas, outras montanhas e oceanos gelados em suas rotas. As luzes e as decorações de Natal inebriavam. Os sonhos estão sempre envoltos numa espessa bruma. É essa névoa que origina a ideia de clarificação, de redenção, como possibilidade de vida e de renovação da alma, mas sobretudo do corpo enrugado de sonhos. Mas o corpo onde poisara o frio estava pintado de roxo. Contudo, havia ainda assim, algo no ar que emanava das profundezas das coisas não entendidas e recolhia para a consciência os sentidos de quem quer que caminhasse neste silêncio, neste caminho iluminado sem estrelas divinas, sem o fôlego da imponderabilidade sob as luzes e os enfeites ofuscantes e arrebatadores do Natal. A névoa enchia a rua escolhida e as pessoas que horas antes ali passavam como se desabrochassem fora da realidade, alucinadas em sua felicidade conquistada por inteiro nos meses anteriores, agora já viviam o calor das casas e do Natal num quotidiano de esperança que embala os corpos pela boca, talvez na utopia de abalroar os corações. O tremor das mãos e a vivacidade dos olhos revelavam que o espírito natalício apenas pertencia à memória, à reminiscência dos deuses. Sim, porque sob a gélida noite, Deus não é chamado para aqui, só uma fogueira ajudaria o sangue onde todas as veias se consomem. Nem sempre a lembrança nos acalma a inquietação. Nunca se chegará a saber quem era aquele homem que descia a Rua Ferreira Borges, nunca a solidão foi tão aliada, e ele, o nome sem sílaba acesa na noite de Natal, nem se lembrava que era um homem com direito ao Natal. Apenas sentia o frio sobre a pele roxa, sob a pele onde nunca poisará qualquer fábula de fortuna, apenas sentia o gélido verbo da noite copulando os ossos e continuava a caminhar em frente. As montras luminosas pulsavam: era o corpo do Natal; e essa figuração verdadeiramente entalhada na noite, essa linguagem brusca, revivida, rejuvenescida, era indecifrável para um homem cheio de frio. Para um homem sem mapa porque não sabia decifrar as coordenadas do destino. Caminhou sob o fascínio misterioso das lâmpadas que acendiam e apagavam – ele, o homem só, o homem desconhecido que talvez viesse de muito longe e procurava –, desceu em silêncio, sozinho em direcção à igreja de Santa Cruz. O local onde está o corpo inicial. O homem tinha frio, muito frio na pele e na alma. Estava tudo tão bonito e luminoso, tão embriagante e o homem não via, caminhava apenas na unanimidade inaugural do movimento primitivo. Teria um propósito, parecia não vacilar sob as luzes e colorido dos enfeites de Natal que brilhavam no meio da névoa. Caminhava em passo forte entre as linhas geométricas da paisagem urbana. Parou ao fundo da rua e olhou, olhou com os olhos bem abertos. Quando desviou a cabeça da imponente igreja de Santa Cruz, da igreja onde descansava o corpo inicial, viu um grande presépio brilhando sob a noite da luz, sob a noite da estrela divina em sua metáfora de oiro. Subiu a rampa e parou em frente do belo presépio, do presépio que todos os anos, na altura das dádivas celestiais, é ofertado pela generosa e atenta autarquia aos sortudos conimbricenses. Todos os seus habitantes, um casal com o seu filho recém-nascido e ainda dois animais já com alguns anos de vida mundana, todos eles pareceram olhar para si, mirando alegremente consagrados. Há momentos em que o fulgor da noite é tão tranquilo que a memória desperta do seu sono de mármore. Uma torrente de vida nova e de impetuosa graça pareceu converter todas as pedras do lugar que restauram a vivacidade primeira dos sonhos. O homem cambaleou, de mansinho articulou uns sons que indiciam alguma língua antiga, talvez aramaico, língua estranha de se ouvir em Coimbra no século da maioridade dos seres eleitos. De seguida olhou para todos os lados, para todos os ângulos da geometria, para os vértices do sopro, para todos os lados do mundo ou talvez apenas para todos os flancos do seu mundo. O homem respirou de forma seca e profunda. Saltou para dentro do presépio, do belo presépio de mestre Cabral Antunes e mergulhou o corpo sob a palha seca e quente que aquecia os habitantes daquele lugar. Ninguém disse nada, só faíscas de alvoroço encantado na matéria do tempo, e na crispação do ininteligível luar até lhe pareceu ver surgir algum sorriso na boca divina da mulher. Escondeu a cabeça por detrás da figura da vaquinha e suspirou. Todas as pombas que ainda não tinham sono, as pombas que dizem estragar as paredes sábias da Igreja de Santa Cruz, esses seres níveos que juraram velar o sono de Afonso, do seu senhor e protector serenaram e poisaram sobre o espaço provecto da cidade. As pessoas estão em casa adoptando as partículas do tempo e o espírito primordial do Natal. As crianças dormem à pressa sonhando com extraordinários presentes. O dia e a noite num só tempo, a boca e o coração, o ser uno em sua linguagem indivisível – está próximo. Adivinha-se a jubilação copiosa de uma torrente interminável. Sob as palhas do presépio um corpo renasce do próprio esgotamento e extraordinariamente parece alastrar ao esgotamento dos outros corpos do lugar. Depois, as pálpebras descem e o corpo é absorvido pelo enigma. Os lábios mexem-se, sussurram apenas o pequeno eco da nossa humanidade, da nossa íntima e milagrosa quimera de eternidade, por momentos no silêncio das vozes parecem refulgir um instante de ser. O homem que nunca saberemos quem é, que nunca nos dirá quem é, que nunca nos mudará a fé, ele, talvez só um desgraçado ou um descobridor de cidades, um marginal ou um santo, ele pecador de palavras outras, adormece profundamente. O presépio é grande e extremamente belo. O menino a quem a vaquinha chama Jesus está com um sorriso muito aberto e radioso, decerto uma dádiva merecida do escultor. De repente, o estrondo das doze badaladas ressoa, os trovões do universo gemem em sua felicidade mítica. Chegara a hora de celebrar o nascimento do Salvador. A hora da utopia e do sonho a que todas as criaturas têm direito em sua viagem solitária. O momento em que todos os livros não são suficientes para definir a rosa.
Longe dali, muito longe dali, a cidade enfeita-se com os seus devaneios, com os seus desejos de ressurreição e pulmões de cristalino bafo. É Natal. Em uníssono, os corações deveriam prefigurar a mesma melodia, a mesma melodia das renas, o absoluto lugar como no presépio existente junto à igreja de Santa Cruz, o lugar onde repousa o corpo inicial. No entanto, o espaço da reminiscência sobe devagar pelas coisas, pelos seres do horto, pelas mais recônditas frechas, pelos mais secretos vértices, como uma língua fria e metálica A cidade respira como se mastigasse pedras antigas. Vem dos desertos a expiação das paisagens e das fronteiras do murmúrio. O silêncio e o que habita o silêncio é a voz do sobressalto. A cidade tropeça no seu ritmo como o ocaso do espaço fértil, o ocaso do verbo. Podemos ouvi-la durante a noite, mesmo na noite de Natal. Uma ambulância com a sua sirene da cor do sangue em alucinante viagem despista o estalar da madeira do presépio. Tempo e espaço reflectidos como um espelho de duas faces. As horas num tempo esquecido, num presépio onde descansa o corpo de um desgraçado ou descobridor de cidades. A cidade num arco de pedra simulando o lugar. A cidade.
João Rasteiro
2005
Email: jjrasteiro@sapo.pt |