O grande escritor italiano Giovanni Papini (1881-1956) disse um dia, com fina ironia e com uma certa razão, que se os escritores não lessem e os leitores não escrevessem, os assuntos da Literatura iriam consideravelmente melhor… Como leitor que sou espero, pois, que este meu escrito não deslustre o trabalho de escritor em boa hora desenvolvido pelo meu amigo Luís Picado na obra relativamente à qual vou tecer algumas singelas considerações, especialmente ligadas às vertentes educativa e política, conforme me foi por ele solicitado.
Em minha opinião, este seu livro acaba por ser, bem vistas as coisas, um Manual de bem proceder nas relações professor-aluno, mas sem recorrer a imposições gratuitas e sem ceder à frequentemente apetecível metodologia de apresentar ementas pedagógicas de fácil consumo. Tendo como pano de fundo um aspecto específico da ansiedade laboral – aquela que se expressa na profissão docente - , o autor diagnostica com segurança cientifica, mas também indica terapêuticas. No entanto, não nos enganemos: não se limita a apresentar um mero receituário para uso quotidiano, mas foi mais longe, tendo elaborado um trabalho com solidez conceptual e significativo alcance formativo que, também por estar escrito com surpreendente clareza, parece veicular um inevitável bom senso, a ponto de as propostas de intervenção apresentadas poderem assumir o particular atractivo de se evidenciarem como um vasto leque de estratégias à disposição dos docentes, utilizáveis em função dos diferentes contextos e dos particularismos de cada um.
Estando a nossa contemporaneidade, para a maioria dos sujeitos, repleta de fontes ansiogénicas, que o autor vai enunciando ao longo da obra, estas propostas de actuação podem revestir-se de especial importância. Na verdade, estou em crer que, com nefasta frequência, muitos profissionais da educação serão excessivamente complacentes em relação à vivência de situações de ansiedade, quase assumindo que estas são inevitáveis na sua profissão (os ‘ossos do ofício’, como costuma dizer-se), embora, obviamente, lhes mereçam repulsa e contestação expressa mais ou menos em surdina, especialmente junto de colegas e de familiares. Parece-me – embora de forma apenas intuitiva – que somente uma minoria encarará essas desgastantes e perturbantes situações com o realismo necessário ao mitigar dos problemas e das angústias que delas decorrem, procurando agir prioritariamente de forma racional sobre as causas, ao invés de terem que suportar as consequências com queixumes pouco mais que inúteis. Ao longo da obra, o autor acaba por ir chamando a atenção para esta necessidade. Mais: todo o livro aponta nessa direcção. Excesso de dureza para com os docentes e alguma insensibilidade relativamente às maleitas e infortúnios de que muitos padecem? Não, de forma alguma, já que Luís Picado não fica em silêncio perante a existência de circunstâncias sociais adversas ao correcto e desejável desempenho da função docente. Para além disto, indica caminhos importantes na forma como os docentes poderão lidar com esta problemática da ansiedade na sua profissão. No entanto, fá-lo de forma estóica, com o pragmatismo que, a meu ver, se imporá, sem paternalismos abusivos nem aduladoras indulgências em relação a esses profissionais, como algumas vezes ainda é feito em certos escritos (e onde, ao ser retirada essa densa camada de solidariedade de opereta, muito pouco se detecta de eficaz e de duradouro).
Ainda a este propósito da qualidade das reacções dos indivíduos perante a adversidade, Esteve, citado pelo autor, utiliza uma metáfora na qual os professores são apresentados como actores que trajam de acordo com determinada época. Subitamente, o cenário é alterado, causando-lhes perplexidade, desconforto e agressividade, pois são confrontados com essa nova decoração, pós-moderna. Contudo, não deverão interromper a sua actuação – pois também aqui o espectáculo deve continuar… Questionemo-nos, no entanto, utilizando uma metáfora semelhante: é ou não verdade que muitos dos nossos concidadãos que na sua profissão sofrem de ansiedade (e aqui incluo também os profissionais da docência) se aperceberam da mudança definitiva do cenário, mas continuam a insistir em representar Gil Vicente quando a encenação seria mais adequado a Ionesco? E o problema maior é que muitos actores até não desconhecem a obra do dramaturgo romeno e são bem capazes de a representar…
Relativamente a este assunto, gostaria de tecer um par de breves considerações. A primeira, diz respeito a condicionantes de natureza política e social que também têm incidência no trabalho docente e a segunda refere-se a aspectos pedagógicos e educacionais com ele relacionados, temáticas sobre as quais Luís Picado também discorre nesta sua obra.
Ora, ao referirmo-nos ao chamado mundo ocidental estamos a falar, parafraseando Daniel Innerarity, de “algo tão ingovernável como uma sociedade de homens livres”. Ou seja, falamos de sociedades que se têm caracterizado pela mudança, pela capacidade de criar, de fazer novo, ou seja, de sociedades que, contemporaneamente, são policêntricas e nas quais “a discussão é mais interessante que uma neutralização profiláctica da diversidade”, mas que, contudo e de forma aparentemente paradoxal, têm conduzido vastos segmentos populacionais à inacção, pelo receio que a maioria das pessoas tem das mutações e da experimentação. Em minha opinião, importará, pois, desfazer alguns equívocos, mormente no tocante à tão desejada ‘estabilidade’ (em sentido amplo, entenda-se) e ao ‘multiculturalismo’ tal como tem vindo a ser geralmente interpretado. Assim, sou da opinião que essa ‘estabilidade’ deverá ter um papel menos positivo nos discursos políticos e sociais porque não é, de forma alguma, uma característica essencial da natureza humana, mas, sobretudo, por ser apenas reactiva, com demasiada frequência. Por outro lado, porque os comportamentos de complacência que induzirá tenderão a possibilitar que algumas (poucas) instâncias sociais se atrevam a erigir-se em proprietárias ou representantes da totalidade, o que é, obviamente, perigoso para qualquer vivência democrática. No tocante à obra sobre a qual agora nos debruçamos, por toda ela perpassa a defesa desta atitude proactiva, que não deve ser incorrectamente confundida com assumpção da necessidade da mera adaptação do indivíduo às circunstâncias, mas antes como uma forma de bem-estar e de realização pessoal através do acto criativo e do subsequente crescimento interior do sujeito (o felgueirense Leonardo Coimbra bem o indicou, salientando que “o homem não é uma inutilidade num mundo feito, mas o obreiro de um mundo a fazer”).
No que se refere ao ‘multiculturalismo’, que Luís Picado aponta como um factor indutor de dificuldades para o docente actual, creio ser muito segura a perspectiva de Giovanni Sartori quando este alerta para o facto de o multiculturalismo poder ser a negação do pluralismo, e não uma sua extensão, por não objectivar uma integração diferenciada, mas sim uma desintegração multiétnica. Isto pode bem ser aferido pela defesa acérrima que alguns fazem de particularidades culturais e comportamentais que, também devido ao débil eco das reivindicações de outros mais avisados acerca da necessidade de ser estabelecida uma tabela mínima de bens comuns, acabam muitas vezes por não ser mais que idiossincrasias egotistas ou úteis álibis para uma subjectiva e mesmo muito discutível afirmação de identidade. Dito isto, entendo que os cidadãos (professores incluídos, obviamente) deverão aceitar a multiplicidade cultural, quando verdadeira e fecunda, mas que não estão obrigados a fomentá-la ou sequer a ter que tolerar comportamentos espúrios (frequentemente causadores de ansiedade) em nome do chamado ‘respeito pela diferença’.
E agora a segunda consideração, relativa a aspectos pedagógicos e educacionais. Como bem refere o autor, “ dar (construir) aulas é uma ciência e uma arte”. Sucede que esta componente de encenação, premissa essencial da actividade docente, é frequentemente secundarizada por muitos profissionais (embora seja certo que em variadíssimos casos o é de forma absolutamente compreensível, confrontados que são no seu quotidiano com um cenário de desinteresse e de desrespeito pela sua função e pelo seu trabalho). Contudo – e bem – Luís Picado não se esquece de salientar que a observância e o cultivo desta habilidade comunicativa, quando andar a par de sólidos conhecimentos científicos, pode contribuir, por vezes decisivamente, para que o docente crie uma relação de empatia com os seus alunos e, por essa via, minore uma das mais frequentes fontes de conflito e de ansiedade existentes na sua profissão. Tenhamos sempre presente o caso daquela actriz polaca a quem um grupo de convivas anglo-saxónicos pediu, no final de um jantar, que recitasse um poema do seu país, o que ela fez na sua língua materna com tal expressividade que, no final, havia lágrimas nos olhos de muitos deles. Ora, a verdade é que ela não fez outra coisa senão dizer o alfabeto, em polaco… Também por isto não deixa de ser surpreendente (e simultaneamente preocupante) o testemunho que o autor nos fornece na página 16 desta sua obra: como pode alguém insistir em querer ser professor, com toda a carga de procedimentos relacionais que isso implica, quando essa pessoa tem pavor em falar em público e sofre por ter que se reunir com os colegas ou por necessitar de dialogar com encarregados de educação? Certas virtudes estão fora de moda, é certo, mas a retórica mais saudável, a da eloquência (como disse em tempos José Régio), jamais pode passar de moda para quem desejar ser bom professor – ou seja, para quem se dedicar tanto a educar quanto a instruir.
Permitam-me que refira outra virtude que está fora de moda: o sábio exercício da autoridade legítima. No caso dos professores, a afirmação da sua autoridade é muitas vezes encarada como declaração de autoritarismo e mesmo, em certos casos, como sinónimo de ‘conservadorismo reaccionário’. Ora, esta situação de negação do necessário equilíbrio dos deveres relativamente aos direitos tem conduzido a excessos que já serão difíceis de remediar. Com efeito, habituados que foram à impunidade, por vezes desde tenra idade, muitos dos nossos concidadãos vão forjando a sua existência numa embriaguez de egoísmos variados que tende a negligenciar a sua essencial condição gregária. E este lento desregular das vivências cívicas não constituirá também uma outra fonte de ansiedade, esta igualmente com particular acuidade na condição docente? Fernando Savater – de quem muitos académicos não gostam, talvez porque, ao contrário destes, consegue tornar interessante aquilo que é importante – esclarece este assunto de forma límpida: “ o objectivo do ensino” – diz ele – “é desbravar por imposição a liberdade latente no neófito para que floresça plenamente”. Aproveitemos, pois, o poder que nos dá a liberdade - mesmo que, em certas circunstâncias, para os docentes tal signifique terem que coagir para poderem educar de forma satisfatória.
Ainda a este título, não deixa de ser curioso verificar que, a par dessas criticas ao exercício da autoridade (que, repito, chega a ser encarado, de forma muitas vezes injustificada, como ‘abuso de poder’) também se critica com frequência a impotência dos supostamente poderosos. Há pouco tempo, escutei uma confidência de um dirigente do Ministério da Educação dizendo, com amarga ironia, que aprendera, no cargo que ocupa, uma nova forma de terminar as cartas (que muitas vezes lhe chegavam sob anonimato): “ E se não resolver este problema, saiba que mando chamar a SIC e a TVI!”. Terrível ameaça, esta, que utiliza estes ‘dispensadores de visibilidade’ como Espada de Damócles colocada sobre a cabeça de muitos profissionais da educação – e que, numa futura edição deste livro, Luís Picado, sem recear errar, poderia acrescentar ao rol das fontes ansiogénicas contemporâneas…
Bem sei que quase não me referi directamente à dimensão política, como o autor me solicitou. Faço-o agora, de forma sintética, para dizer que, em meu entender, a boa prática docente tem muito em comum com a boa prática política: em ambos os casos se gerem assuntos numa perspectiva contingencial, ou seja, considerando-os imprevisíveis, contextualizáveis e passíveis de revisão. Por outro lado e de forma semelhante à política, também em matéria de Educação o que importa é tornar o naturalmente disjuntivo em frequentemente aditivo – tão frequentemente quanto possível, é claro. Finalmente, como a docência, também a política é, muitas vezes, uma aprendizagem da decepção – aprender a viver com êxitos apenas parciais e mesmo com os fracassos, pois habitualmente não se consegue concretizar aquilo que se desejava. O ‘burnout’ a que Luís Picado se refere nesta sua obra também ocorre na vida política – e talvez cada vez mais (o que será outro indicador de sinonímia com a prática docente).
Em síntese, entendo que esta obra de Luís Picado tem inegáveis méritos, funcionando como um bom ponto de situação relativamente a uma problemática com significativa incidência na nossa vivência colectiva, mas não recusando atrever-se a indicar percursos possíveis para quem estiver disposto a não se deixar apanhar por certas armadilhas que o quotidiano tende a impor ou para quem delas quiser sair.
Uma das mais interessantes personagens criadas pelo escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte, o Capitão Alatriste, sempre que se encontrava em qualquer situação problemática de onde não lhe seria fácil escapar, dizia para os seus companheiros de aventuras: “No queda mas que batirnos”. Como também salientou Leonardo Coimbra no já longínquo ano de 1909, “o professor é uma vítima da inércia mental que nos cerca; mas ele, mais que ninguém, deveria lutar”. Estamos em presença da obra de um professor que, também através dela, luta. O que, nos tempos que vão correndo, deve constituir motivo de agrado e de esperança. E, já agora, de aplauso.
João Garção
Felgueiras, 24 de Fevereiro de 2006
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