Édoxè té boulé kai to démo...
Todas as antigas leis gregas começavam por esta cláusula a qual, traduzida para a nossa Língua, significa "Pareceu bem ao Conselho e ao Povo..."
É importante que tenhamos em consideração esta primeira palavra - pareceu. Na verdade, as leis eram feitas não porque fossem boas mas porque, na opinião dos legisladores, pareciam boas. E há aqui uma diferença muito importante e que deveremos ter em consideração: as leis eram entendidas não como o resultado de um saber científico (epistéme) mas como um produto de opiniões (doxa), de convicções frágeis porque variáveis na medida em que eram o resultado da momentânea reflexão humana e do debate entre seres humanos.
Platão classificava a opinião entre os conhecimentos inferiores. Contudo, prefiro realçar, neste exemplo que a História nos fornece, o facto de ele constituir uma afirmação de abertura e de tolerância no que se refere à forma como se encara a produção do Conhecimento. Este não advém de crenças impostas, mas sim, desejavelmente, da reflexão participada, fruto da acção de indivíduos informados e abertos às opiniões dos seus semelhantes.
Pelo que atrás fica dito, será lógico que constatemos que o Conhecimento não é algo rígido e estanque mas sim flexível e mutável. O conhecimento que hoje em dia temos de nós próprios e do Mundo não é o mesmo que possuíam os nossos antepassados. Ao longo dos séculos, temos vindo a acumular informações sobre muitas matérias, algumas das quais não utilizamos no nosso quotidiano - contudo, o interessante e positivo é que as temos à nossa disposição, para delas nos servirmos, se assim o entendermos.
Por este motivo, e na medida em que as descobertas científicas se sucedem a um ritmo cada vez maior, sendo também mais rápida a sua aplicação ao dia-a-dia dos seres humanos, com as inevitáveis e correspondentes mutações sociais, costuma afirmar-se que o nosso mundo ocidental contemporâneo é altamente complexo e de mais difícil compreensão do que o de séculos anteriores. Este "acelerar do tempo histórico", que se vai estendendo igualmente a outras sociedades fora do mundo ocidental e que se vão paulatinamente ocidentalizando (melhor seria dizer, "americanizando"), condiciona de forma decisiva a maneira como se processa a construção do Saber e a sua divulgação e, por essa via, regula a configuração das sociedades.
Ora, se analisarmos o mundo contemporâneo - cada vez mais estruturado em função de arquétipos culturais norte-americanos, repito - constataremos a prevalência de um modelo globalizante, simultaneamente político, económico e cultural que, a pretexto de defender a liberdade individual, em última instância encara o Homem como um recurso que pode ser consumido como qualquer outro, circunstância esta apresentada como inevitável - aspecto expresso de forma exemplar, há alguns anos, na obra “O Fim da História e o Último Homem”, de Francis Fukuyama. Na perspectiva dos ideólogos que partilham destas concepções, a uniformização das mundividências dos seres humanos, progressivamente estruturada, é indispensável para que esse modelo possa impor-se. Construir-se-á, desta maneira - e para parafrasear Herbert Marcuse - o "Homem unidimensional", aquele que age num único registo pré-concebido e cujas atitudes, aparentemente livres, são moldadas por forças que lhe são exteriores e que o mesmo não tem a capacidade nem o discernimento de reconhecer como condicionantes das suas aparentemente livres escolhas.
Impõe-se que lutemos contra esta domesticação do Indivíduo e contra a crescente persuasão do abandono da sua autonomia. Na verdade, esta autonomia depende da existência de reflexão e de deliberação próprias. Quem assim não agir, não será autónomo, não será, portanto, democrata numa sociedade democrática, ou seja, numa sociedade onde as várias opiniões devem passar, para se validarem, pelo crivo do confronto de ideias. E não existirá maior perigo para a Democracia do que o de estar assente numa cidadania apenas aparente, na medida em que os cidadãos desenvolvem interesses pelo superficial e pelo acessório, secundarizando as análises sobre as questões prioritárias e que, na verdade, condicionam o nosso destino comum.
Infelizmente, há que reconhecer que se tem desenvolvido, nos últimos tempos, um tipo de indivíduo que não é próprio das sociedades democráticas: desinteressado, desinformado, domesticado, afinal, este indivíduo é aquele que Giovanni Sartori designa por "Homo Videns" - aquele que é formado prioritariamente pela televisão, em que o facto de ver prevalece sobre o de falar, uma vez que se habitua a ver televisão antes mesmo de aprender a ler e a escrever, respondendo prioritariamente a estímulos audio-visuais (e, desta maneira, a imagem destrona a palavra e a recepção passiva das imagens coloca em segundo plano a reflexão crítica e criativa sobre a realidade circundante). Em conformidade e na sequência do desenvolvimento destas concepções, tem ganho espaço, entre nós, um tipo de indivíduo simultaneamente céptico e cínico em relação à sociedade humana - e, atrever-me-ia a dizer, em relação à própria Vida - mas igualmente passivo e indulgente (constate-se, por exemplo, que a noção de "injustiça" tende a enfraquecer: se analisarmos a problemática da pobreza, constataremos que esta ainda causa pena, mas já são menos aqueles a quem causa indignação...).
Não é por acaso, portanto, que os neo-fascismos têm encontrado um campo favorável para a sua proliferação, visto que nas sociedades ocidentais actuais parece existir o desenvolvimento de uma amnésia colectiva em relação a algumas das páginas mais negras da História humana contemporânea, cada vez menos conhecidas apesar de nunca, como agora, o ser humano dispor de tanta informação sobre esses assuntos, bem como de tantos meios de a obter.
Contra este "Homem unidimensional", urge que afirmemos, de maneira veemente, a noção de multidimensionalidade do Conhecimento humano, como forma de combatermos os propósitos totalitários que, crescentemente, vão surgindo no horizonte.
Desta maneira, compreender-se-á que a problemática da Transversalidade na construção do Conhecimento não seja uma simples questão semântica mas sim um aspecto nuclear na definição da maneira como se processa o entendimento humano sobre a sua própria Existência. É que "Transversalidade", termo aproximado a "Transdisciplinaridade", implica , por um lado, multidimensionalidade operativa e, por outro, reintegração de parcela do Saber isoladas na sequência do tratamento disciplinar dos assuntos. Logo, necessariamente, colocação de questões, debate, tolerância, e não inflexibilidade hierárquica doutrinária ou rigidez epistemológica. Significa, na prática, a constatação de que o Saber não é construído a partir de uma praxis assente sobre o preconceito cultural nem sobre monolíticos esquemas ideativos. Num mundo heterogéneo e em rápida mudança, como poderia estruturar-se correctamente a procura do Saber a partir de processos tendencialmente estanques e parcelares, porque fragmentados?
Daí que Hugo Hassmann tenha introduzido uma sílaba neste termo, referindo-se-lhe como "Transversatilidade" para significar que a apropriação dos dados da Realidade não deverá fazer-se apenas a partir da sua decomposição disciplinar mas igualmente através do reconhecimento de pontos de convergência recorrendo à totalidade dos meios técnicos e tecnológicos actualmente à nossa disposição.
Nesta perspectiva, evidentemente, a Escola desempenha um papel fundamental. Tal como o próprio mundo que habitamos, a Educação não é uma realidade homogénea e a Escola é, igualmente, multidimensional. Ela deverá reflectir esta pluralidade, lançando interrogações, confrontando posicionamentos, inovando em termos de processos e contribuindo, enfim, para o aprofundar das vivências democráticas, pois não pode existir verdadeira Democracia sem Educação. No entanto permito-me chamar a atenção para o facto de o Pluralismo não poder dar origem ao Subjectivismo extremo, ou seja, à noção de que, em nome da Tolerância, todos os postulados possuem a mesma validade, o que se me afigura bastante perigoso. Deveremos, isso sim, possuir uma base sólida de convicções democráticas a partir das quais desenvolveremos o nosso Conhecimento do mundo que nos rodeia. Sem a existência deste núcleo de certezas, a questionação não é profícua, mas sim demagógica e estéril.
Ao finalizar, permitam-me chamar a atenção para o facto de ser fundamental que a Acção complemente a Reflexão, que a participação activa (Civismo) se siga às cogitações e ao confronto de opiniões livremente expresso. "Há que escolher: descansar ou ser livre", afirmou um dia Tucídides. Cabe-nos efectuar essa escolha, com a certeza, porém, de que a nossa opção condicionará não apenas o nosso trajecto futuro mas igualmente o dos nossos semelhantes. Saibamos nós, em nome de um mundo melhor, tomar a opção correcta.
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