“No grupo de voluntários civis, que, nesta hora tão grave e tão decisiva para a vida da República em Portugal se batem ao lado das forças revolucionárias do Porto, conta-se o vigoroso panfletário, jornalista e destemido republicano Raul Proença. Que todos os republicanos e homens livres de Portugal saibam seguir-lhe o exemplo!”.
Esta nota, inserta na primeira página do número inicial do jornal Ávante! - periódico que viu a luz do dia com o objectivo de secundar a revolução constitucionalista de Fevereiro de 1927 contra o regime da Ditadura Militar instaurado menos de um ano antes - deixa claramente perceber o grande prestígio de que Raul Proença então desfrutava nos meios republicanos e democráticos portugueses. O escritor participou na sublevação como elemento das áreas de informações e inter-ligação entre os vários grupos de revoltosos, tendo combatido nas duas maiores frentes então abertas, Porto ( bateu-se na Praça da Batalha, onde se encontrava o núcleo das forças constitucionalistas e local do confronto mais encarniçado ) e Lisboa ( para onde seguiu de traineira, com o objectivo de apressar a efectivação da revolta que deveria ter deflagrado na capital, em simultâneo com a que tinha já ocorrido na cidade nortenha ). O fracasso desta revolução de 1927 ditou o seu exílio em França e o início de um ciclo de dificuldades e de privações. Quando José Rodrigues Miguéis o visitou no seu acanhado apartamento de St. Germain-en-Auxerrois, almoçaram “num modesto restaurante de Levallois-Perret”. Proença insistiu em pagar a conta. De regresso a casa, no comboio, o autor de Léah foi testemunha dum dorido desabafo da parte do seu companheiro na Seara Nova : “A dada altura sacou dum bolso dum lenço encarquilhado de uso e feito numa bola, olhou-me vexado e disse ‘Faço hoje quarenta e seis anos, e este é o único lenço que tenho em casa!’. Este queixume, único que jamais lhe ouvi, na boca de um homem de tal robustez moral e mental, trespassou-me de mágoa.”. Estava-se, portanto, em 10 de Maio de 1930.
Natural das Caldas da Rainha, Raul Sangreman Proença, ainda adolescente, empenhou-se na propaganda republicana que combatia o regime monárquico e que, nesse segundo lustro do presente século, se revelou particularmente eficaz no secundar dos esforços de liquidação daquele modelo de sociedade. Em Outubro de 1906, terminado o curso no Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, rumou a Alcobaça para aí exercer o cargo de professor do curso particular do ensino secundário. Nessa vila, em sua opinião “a rainha dos pomares”, possuidora dos “melhores campos de Portugal”, desenvolveu uma interessante obra demopédica de cariz vincadamente democrático. Os trabalhos propagandisticos e o seu intenso labor profissional não o impediram de calcorrear as regiões limítrofes, em jeito de antecipação - embora mais circunscrita geograficamente - das suas futuras deambulações relacionadas com a execução do Guia de Portugal, de que foi o grande dinamizador.
Assim, no distrito de Leiria, destacou “os pomares incomparáveis de Alcobaça, os belos pêssegos, o melão do Valado, a maçã raineta e bemposta, os campos fertilissimos de Alcobaça, de Leiria, das Caldas...”; sobre a Foz do Arelho afirmou ser uma “praia deliciosa para três ou quatro horas donde, sempre que lá vou, trago o nariz vermelho e o estômago a exigir um boi.”; das Caldas da Rainha, salientou “as indústrias caseiras de cavacas e trouchas”; falou elogiosamente “do pão de ló de Alfeizerão, das tortas de Aljubarrota, das queijadas do Barrio”; referiu-se à Batalha como “fértil em pêssegos e em belezas femininas”; recordou que, antes de se chegar a Leiria - cujo aspecto físico, contudo, lhe mereceu comentários depreciativos - se situava “uma taberna onde uma rapariga nos serve o vinho mais delicioso que todas as estalajadeiras do mundo nos podem servir”. Não julguemos apressadamente estes seus últimos comentários. Com efeito, num outro escrito coetâneo Proença esclareceu saudar apenas “a boémia elegante e espumosa, espiritual e fina, a única boémia que posso suportar - porque me faz mal o cheiro do vinho e a graça demasiado torpe dos bordéis.”.
Polemizando então com monárquicos, considerou que “erva” era aquilo que o Presidente da Câmara de Alcobaça deveria comer, conforme escreveu. Pela mesma altura, deixou ainda transparecer perplexidade pelo facto de ter trazido sem dano o seu chapéu da redacção do periódico Notícias de Alcobaça, quando aí se dirigiu para dar um correctivo ao director que, em sua opinião, o teria injuriado durante uma pugna que com ele travara ( “Visitámo-lo e a nossa visita foi recebida com extrema gentileza da parte de três sujeitos que na redacção do jornal se achavam. E tão grande foi a sua gentileza que, tendo nós deixado o nosso chapéu de palha sobre o balcão, no-lo restituíram intacto. É para agradecer, na verdade, em virtude da qualidade da substância, o não terem comido”). Mas, no que se refere à alimentação, as suas criticas à actuação dos políticos monárquicos não se circunscreveram à contundência da ironia. Em Fevereiro de 1909, escrevendo no diário republicano Vanguarda sobre a grande fome do Douro, Raul Proença afirmou: “ Ante esta calamidade este governo que escreve cartas - protestos - cala-se. Ante este desastre, este governo que foi beijar as mãos do Núncio - fica inerte, sem a energia duma ‘resolução’ ou a nobreza dum pensamento de auxilio; e o mais que faz é responder aos gritos dos esfomeados com os tiros das espingardas.”. Quando, por sua vez, os tiros das espingardas republicanas se fizeram sentir na capital, em Outubro de 1910, o regime monárquico foi incapaz de responder de forma apropriada e soçobrou. Naquele que julgamos ser o primeiro escrito de Raul Proença após o 5 de Outubro, advertiu já contra os perigos do ‘adesivismo’: “ Os piores inimigos ficaram junto de nós, acotovelando-nos nas ruas, apertando-nos a mão, congratulando-se connosco, e connosco rejubilando. São os que se amontoam às portas dos ministérios, e os que pedem para abancar à mesa do orçamento com uma sobrecasaca de adesão novinha em folha.”. Proença recusou-se a ser conviva neste ‘banquete’. Assim, por exemplo, quando foi convidado por António José de Almeida para conservador do Museu das Janelas Verdes (hoje Museu Nacional de Arte Antiga) com o vencimento de 600$000 réis ao ano, não aceitou o cargo por ter julgado insuficientes os seus conhecimentos de Arte, preferindo manter o seu lugar de 2º bibliotecário da Biblioteca Nacional - e um vencimento anual de 450$000 réis.
Nesta instituição desenvolveu uma notável obra de reorganização, tendo ascendido a chefe de divisão dos seus serviços técnicos, em 1919. A taylorização do esforço e a correcta coordenação do labor individual (ou seja e por outras palavras: a efectivação de uma verdadeira obra sinérgica, revestida de um cunho voluntarista, cívico e patriótico), foram aspectos sobre os quais se debruçou com particular atenção. A tentativa de elaboração de umas inovadoras regras de catalogação, que se revelassem mais eficazes e consentâneas com o papel que a Biblioteca deveria desempenhar no espaço cultural português, ocupou-lhe vários anos de aturados estudos. Por via deste trabalho, tornou-se num dos mais reputados especialistas portugueses de biblioteconomia, sendo as suas concepções reconhecidas com apreço além-fronteiras. Em Portugal, como recordou Santana Dionísio, os seus adversários políticos, agrupados às portas das livrarias e das casas de chá, troçavam-no chamando-lhe às escondidas ‘génio do verbete’ e ‘Sua Verbetência’. Imperturbável, o sempre apressado Proença parava num que outro estabelecimento apenas para beber rapidamente uma estimulante chávena de café.
Nos primeiros tempos da República em Portugal, tinha escrito: “ Começou a grande obra. E a grande obra é, mais do que nunca, a educação. Porque só educando conseguiremos criar. Não é com decretos que se renova um povo. Não é à força de leis que os imbecis adquirem talento. [...] E se dentro de uma dúzia de anos ‘isto’ não vai ressurgir e entrar de vez na civilização moderna, que vai ser de nós? ”. ‘Isto’ não ressurgira como Proença e vários outros tinham desejado. Urgia, assim, renovar. Com este objectivo surgiu a empresa editorial Seara Nova, a qual editou, em Outubro de 1921, o primeiro número da revista com o mesmo nome, tendo Raul Proença integrado o seu corpo directivo. Foi ele o autor do conhecido texto com que esta publicação se apresentou ao público. Os artigos que para aí escreveu tornaram-se famosos e aumentaram o seu prestígio junto de alguns sectores da sociedade portuguesa - João Chagas chegou a chamar-lhe “a primeira pena da República. ”. Um dos primeiros textos intitulou-se “Socorram os famintos russos!”, apelo este que não deve ser mal interpretado: com efeito, apoiando-se nos testemunhos do escritor romeno Panait Istrati, diria em 1931 sobre a União Soviética: ”Assim se construiu, pela falta de matéria prima essencial e de todo o fermento vivo e criador, uma República de fachada e um Socialismo de tabuleta; assim se substituiu, tão somente, a tirania do Czar pela Tirania do Secretariado.”.
Osso duro de roer tanto, por um lado, para os defensores da instauração em Portugal de um sistema político autoritário de cariz fascista, como, por outro, para os que advogavam a manutenção de um plutocrático status quo no seio da República (em acelerado descalabro), Proença avisou, em Fevereiro de 1926: “Corrupção e Fascismo devem ser hoje os inimigos de todos os verdadeiros democratas. E só evitaremos este profligando aquela. ”. Antes da vitória do golpe militar protagonizado por Mendes Cabeçadas e Gomes da Costa, houve ainda tempo para receber um telegrama assinado por um grupo de estudantes da Universidade de Coimbra - entre os quais Vitorino Nemésio - que lhe manifestou admiração e solidariedade por esta sua campanha contra os políticos corruptos e contra o fascismo. Essa mensagem foi lida publicamente aquando dum jantar que congregou vários seareiros.
Tendo o nome duma árvore de fruto como apelido, Raul Proença passou à clandestinidade, em Novembro de 1926. Era então o ‘Dr. Mário Figueira’. O panfletário iniciou assim a sua vida de ‘judeu errante’, para utilizarmos a sua própria expressão. Já homiziado em França, teve ainda que travar uma polémica com alguns algarvios que não gostaram de várias passagens sobre a sua província surgidas no 2º volume do Guia de Portugal, publicado um ano antes. A discussão acerca da qualidade do vinho dessa região ganhou aí um especial relevo. Raul Proença referira-se-lhe como ”extremamente alcoólico, mal preparado, desagradável ao paladar e sem aroma nem frescura. ”. Como corroborantes desta sua asserção, apresentou depois as opiniões dos enólogos António Augusto de Aguiar, Francisco Weinholtz, Alexandre de Figueiredo e Melo e Cincinato da Costa, entre outros. A polémica terminaria aí. Proença afirmou então: “Em face da absoluta unanimidade de toda a gente que tem alguma autoridade sobre vinhos, o que deveriam fazer os verdadeiros patriotas do Algarve? Evidentemente, concitar os viticultores algarvios a melhorar os seus produtos, e a produzir essa obra prima da natureza que há todo o direito de lhes exigir. Mas não! [...] há duas espécies de propaganda: uma consiste em dizer a verdade aos povos, e outra a mentira. Pela primeira, os povos são servidos e os propagandistas apedrejados. Foi a esta que me dediquei.”.
Numa Europa onde os partidários das concepções autoritárias de organização dos estados cresciam como cogumelos, eram os democratas aqueles que, cada vez mais, eram vistos como ‘pecadores’. Os primeiros nunca hesitaram em lançar a primeira pedra contra estes últimos. E ainda a mesa acabava de ser posta...
Dolorosa espinha cravada na garganta da Ditadura Militar portuguesa, Raul Proença foi sofrendo os vários embates que esta sobre si desferiu: calúnias, sindicâncias e a destruição da sua obra de bibliotecário. Como agravantes, além da angústia interior tantas vezes calada e de enormes dificuldades financeiras, sucederam ainda as mortes, em Portugal, da mãe e da sua filha Berta, esta com apenas 15 anos de idade. Nos inícios de 1931 encontrava-se debilitado. Nos finais do mesmo ano, o seu estado de saúde agravou-se. Foi-lhe então diagnosticada uma doença mental. Em Março de 1932 regressou finalmente a Portugal, sendo internado no Hospital do Conde de Ferreira, no Porto.
O texto inédito que a seguir apresento, não estando datado, encontra-se numa caixa ainda não numerada do seu vasto espólio, depositado na Biblioteca Nacional. Creio que poderá eventualmente estar relacionado com a sua longa estadia naquele estabelecimento hospitalar:
“ Coisas que prefiro
- Bifes de cebolada.
- Lulas de caldeirada.
- Peixe, mas só muito fresco.
- Leite fresco e denso (encorpado).
- Manteiga fresca.
- Limão e açúcar, para refrescos.
- Língua de fricassé.
- Ovos mexidos.
- Ovos quentes com manteiga.
- Pêras grandes e sumarentas.
- Figos.
- Uvas.
- Melão.
- Melancia.
- Pêssegos.
- Água fresca, da melhor.
- Bifes na grelha.
- Arroz doce.
- Leite creme.
- Trouxas de ovos.
- Pastéis de nata e de feijão.
- Tomatada.
- Ameijoas.
- Bananas.
- Gemadas de leite.
- Tapioca com ovo.
- Caldo de farinha de aveia.
- Bolos de coco.
- Fruta cristalizada.
- Geleia de mão de vaca, etc. “
[ B.N. Espólio E/7, caixa s/nº (em fase de inventariação) ]
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