I
lamento a luz a escorrer no espelho
que me suspende na palavra brava
II
amo o coração do mar azul prata
a comoção das suas ondas nada pesam
nas mãos
III
os meus cabelos matinais
pertencem à frescura desse mar
e todo o rosto rijo entardece
o azul celeste das águas a lerem
o que jamais alguém irá perceber...
IV
permito ao mar
que incendeie a luz ébria
nas veias desse outro espelho
e o desejo do espelho
entorna-se ultravioleta
espelho ousado na nossa alegria
V
a saliência na pele dourada do mar
desloca-se à pressa
para me acalmar na branquíssima
espessura suave
e ser a palavra
que me ordena por dentro
VI
bebo
agora a luz remendada
e espero ser aquele que caminha hirto
de calças bem justinhas e curtinhas
embrulhado num velhíssimo casaco
comprido a tapar-me a cara
na sua plenitude errante
os sapatos mordidos pelo ar e terra
que se respira...
e o meio dos joelhos
a arderem de novas ideias
e lá vou por aí adiante
a fumar vagarosamente
o meu esguio cachimbo
e tudo o mais que por aí vem...
– talvez uma carnificina...
– talvez uma tempestade
de neve polar...
– talvez um estremecimento
no sol adentro...
– talvez hipnotize a lua...
– talvez toque um tufão...
– talvez invente um novo relógio
cujos ponteiros andem para trás...
– talvez esmague o teu rosto...
– talvez abrace
as mãos do senhor herberto helder...
– talvez o senhor herberto helder
me ensine o ofício da poesia...
– talvez a minha inquieta poesia
rache o fundo da cabeça
do senhor herberto...
– talvez lhe devolva a rosa esquerda
coroando as suas transparentes barbas...
– talvez o senhor herberto helder...
nem saiba que eu existo
nem que de poesia nada eu sei
então do ser poeta menos ainda...
– talvez o senhor herberto até goste
dalgumas coisas que escrevo...
– talvez não goste de nada...
– talvez me despreze
a todo o momento...
– talvez tenha curiosidade
de me conhecer tal como sou...
– talvez ele queira observar
o meu cachimbo à rimbaud
e fume comigo às escondidas
no silêncio das coisas
e fiquemos somente a olhar um
para o outro por amiga telepatia
quem sabe se ele fala comigo
e eu com ele enquanto dormimos
cada um na sua casta
casa anónima...
– talvez o senhor herberto helder
me queira iluminar os dedos
rasgando-os um por um
e os coloque no seu estendal
bem erguidos
para que a merda deste mundo
os veja através duns binóculos
meio sujos
e os dedos a saltitar felizes
são o mundo poético
são a esperança a irromper
por fora e por dentro
e que alguma merda mude!...
está a trovejar
no interior do nosso corpo
que se foda...
à nossa volta é tudo uma miséria
é tudo muito triste de se assistir
eles que se fodam literalmente
porque bem fodidos já o estão
sem se aperceberem disso mesmo
e é triste saber
que o mundo é velho demais
e que nunca mudará para melhor
porque é um pretexto em si
mesmo...
– talvez ó senhor herberto
nos ouçam
o ouçam
o percebam
e tenho dito...
– talvez nunca conheça o senhor
herberto é nisso que creio
se porventura o conhecer
já poderei morrer descansado...
– talvez já nos tenhamos conhecido
noutras derivas
noutras vidas melhores...
– talvez as nossas cinzas
de ossos esfarelados mergulhem
no mesmo mar ou galáxia ou estrela
ou cometa ou astro ou meteorito
ou asteróide ou numa qualquer
merda tanto nos faz penso eu!...
seja!...
– talvez comece a chorar estrelas
profundas a brilhar...
– talvez no chão me inunde
e morra espalmado
ao mesmo tempo que sorrio...
– talvez desordene a poesia
e os corpos por nascer...
– talvez tudo seja uma ilusão
medíocre e nada disto aconteça...!
e não me vejam... ... ...
VII
as entranhas sacodem
com violenta força todo o corpo
que quer fugir para bem longe
porque o mar é um secreto altar
e colhe-me como água e luz
prendo-o como palavra
à melancólica poesia
lá vou eu
hurra... hurra... hurra...
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