Meus Amigos:
Quem me conhece sabe que não sou homem de festas nem de homenagens, muito embora sempre um movimento cordial me tivesse levado ao coração de quem de mim se aproximava de mãos lavadas, de que tanto os meus versos, bons ou maus, não importa, se dão conta. Apesar disso, não fora uma sucessão de observações clínicas, que ainda duram, num hospital da cidade, teria certamente fartos motivos para vencer o meu horror ao exibicionismo e partilhar convosco este encontro com a emoção quase em estado puro, que, da minha parte, dura há um tal carrego de anos, que já lhe perdi a conta. É, pois, com alguma alegria que aperto ao peito os que partilham comigo, mesmo ausente, um abraço que ajude a dar corpo e figura ao que tenho por mais alto de tudo o que é criação artística com nome português. Um poema, como todos sabemos, é tanto de quem o escreve como de quem o lê - trata-se de uma partitura, por assim dizer. Sem esse apelo, a que já chamei nupcial, sem esse êxtase e terror da vida, tudo perde sentido.
Mas não é este o momento asado para falar da nossa razão de ser, esse nada que é quase tudo, que a poesia é, que misteriosamente a poesia de Homero a Paul Celan, sempre foi.
Mas o que neste momento vos quero dizer, ou vos quero pedir, é de ordem muitíssimo mais chã. Trata-se do pequeno largo triangular que temos na nossa frente, aqui mesmo, na Foz, em pleno no Passeio Alegre, frente a esse ser luminoso que é o mar, o mar dos nossos Cancioneiros, cujo ritmo, juntamente com o da fala, passou aos nossos versos - um mar onde o deserto não tardará a chegar. Tudo nesse breve espaço contribui para fazer da cidade um arrabalde de si própria, como disse Pascoaes, se não estou em erro.
Esse triângulo de terra escura, talvez projectado para um imenso canteiro de relva, é transformado por uma asquerosa manada de imbecis, durante a noite inteira, no circo das suas proezas motorizadas, à mistura com gritos que repercutem a nostalgia do batuque, ou pior ainda, em charcos de lama onde a mais negra das estrelas se recusa debruçar.
Eis o que tenho a pedir-vos nos meus oitenta anos: plantem nesse lugar um plátano, onde o vento enroladinho no sono possa dormir sem sobressaltos; ou uma oliveira, ou um chorão, e à sua roda ponham uma sebe da flor doce e musical de espinheiro branco. Embora tenha pouca ou nenhuma fé seja no que for, a terra ficará mais habitável. Um poema ou uma árvore podem ainda salvar o mundo. 17.1.2003
Eugénio de Andrade
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