A doença grave que presentemente retém Eugénio de Andrade na sua casa da Foz do Douro, acamado e num estado de quase permanente inconsciência, acabou por marcar o ambiente da homenagem que a Feira do Livro do Porto prestou ao poeta, no final da tarde de sábado. Um calafrio percorreu a numerosa assistência que acorreu ao Café Literário da feira quando o musicólogo e amigo de Eugénio de há mais de meio século, Manuel Dias da Fonseca, lançou uma espécie de grito surdo a terminar a sua primeira intervenção. "Eugénio está a viver momentos terríveis de solidão: uma maldição vergonhosa, que ele não merece, caiu-lhe em cima, privando-o de ler e de ouvir música", lamentou Dias da Fonseca, depois de ter falado da importância da poesia e da música na vida do poeta e na relação de amizade entre ambos.
Também Manuel António Pina mostrou algum embaraço em testemunhar a sua relação com Eugénio, fundada em inúmeros encontros de café a partir da década de 60. "Eugénio sempre me dispensou uma gentileza excessiva, que eu não mereço", confessou Pina, que reforçou também o lamento sobre a situação do poeta, "que está mais só do que nunca".
Quem remou contra o tom pessimista da sessão foi Agustina Bessa Luís, companheira e amiga do poeta desde os tempos da edição d'"A Sibila" (1954). "Eu não posso imaginar o Eugénio como uma pessoa solitária", disse Agustina, que preferiu recuar até aos tempos em que ambos frequentavam, e formavam, as tertúlias que então marcavam a vida social e cultural do Porto. Nesse tempo, "as pessoas juntavam-se pela sua paixão pelas letras e pelas artes", lembrou a romancista, acrescentando reter dessa época a "ferocidade da paixão pela poesia" que era a marca de Eugénio. "Ele era um jovem e belo rapaz, com uma doçura áspera e intrigante, o cabelo sempre solto sobre a testa". "Nessa altura, éramos terríveis e cruéis - nós, criadores, somos abomináveis! - e soubemos viver bem a nossa juventude", acrescentou Agustina, assegurando ser assim que continua a ver o seu companheiro de letras e de viagens. E evocou, a propósito, a viagem aventurosa que ambos, com Sophia, fizeram, de Volkswagen, até à Grécia: "Nesse tempo, uma praia grega era ainda um lugar intocável, como um presente!".
Também Arnaldo Saraiva, a quem coube dirigir a sessão, sentiu necessidade de sublinhar não se estar perante "uma homenagem póstuma" ao poeta. Aliás, logo na abertura da sessão, Saraiva tinha assinalado que Eugénio, mesmo que avesso a homenagens, tem tido sorte num país em que, muitas vezes, as pessoas têm "um estranho comportamento de abutres" ao celebrarem os seus poetas só depois de mortos. E lembrou os casos paradigmáticos de Camões e Pessoa. Classificando Eugénio como "um poeta solar, cuja obra celebra o amor, a natureza, a festa", o professor e ensaísta pediu aos convidados da sessão que falassem da sua obra.
Manuel Dias da Fonseca declarou que "a poesia de Eugénio é Mozart: pela claridade, transparência e rigor". E admitiu também a similitude com Ravel - "um dos seus arquétipos" - e Schubert. Já na sua intervenção anterior, Dias da Fonseca tinha referido a importância da relação da música com a poesia, que, no fundo, tinha marcado o encontro de ambos, no início da década de 50, quando depois de ler o poema "Noite Transfigurada" (in "As Mãos e os Frutos", 1948) deu a conhecer ao poeta a composição homónima de Schönberg, num disco de 78 rotações ouvido em casa de amigos comuns, em Matosinhos. "Quando se trata de conhecer uma coisa, ele vai até ao fundo", lembrou o musicólogo sobre a forma como Eugénio sempre viveu o seu ofício de poeta. E lembrou como ele ajudou a desvendar em Portugal tantos poetas desconhecidos, como Walt Whitman -mostrou um pequeno livro do poeta americano profusamente sublinhado por Eugénio - ou Pablo Neruda. "Uma vez, nos anos 60, fizemos uma viagem até Londres, onde o Alberto de Lacerda nos deu a conhecer a poesia de John Keats, que começou um poema assim: 'A piece of beauty is a joy forever'". "Valeu a pena vir a Londres para descobrir este verso", comentou então Eugénio, assim lembrado por Dias da Fonseca.
Manuel António Pina falou dos epígonos que Eugénio tem nas sucessivas gerações dos nossos poetas, para notar a sua marca. "As grandes épocas são as dos poetas", assinalou Pina, assim mostrando como ele marcou o século XX português.
Agustina lembraria ainda que "a magia da poesia de Eugénio é para ser dita, ouvida, citada". Depois de ao longo dos dias da Feira do Livro do Porto a voz gravada do poeta ter sido retransmitida no Pavilhão Rosa Mota lendo muitos dos seus poemas, a homenagem terminou dando de novo lugar à "voz" da sua poesia, desta voz mediada pelas leituras de Rosa Alice Branco, Inês Lourenço, Rui Lage, João Luís Guimarães e Arnaldo Saraiva.
O tributo a Eugénio incluiu ainda a distribuição de uma edição especial, feita pela APEL e pela Fundação Eugénio de Andrade, com o poema "O Sorriso" (in "O Outro Nome da Terra", 1988) traduzido em dez línguas, do búlgaro ao chinês, do inglês ao castelhano e ao letão.
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