PARNASO

Pensei escrever quando vi a névoa
pela encosta a descer
e ao fundo Itea e o mar Jónio
que os olhos dissolviam,
e assim me diluir na branda mágoa
de nunca ter sido eu
nos momentos em que a redenção
não se encontra em poesia
nem na vaga neblina de um deus
que há muito soube não existir.
Mas o verso inicial não chegou,
nem poema haveria para a neblina
nos olivais de Delfos
ou para os cumes ásperos e altos
de rochedos e musas idas,
olhar, evocações, Euterpe,
silêncio antigo longe dos vocábulos.

VENEZA

Qual vogando fosse uma só jangada
desvela de Bizâncio o seu anelo
Veneza em mil ilhas embalada
esquece Ticiano e o mouro Otelo.

E rica mostra as cores cheia de sol
e as ledas flores fúteis que a navegam
entre canais e paços e a ária mole
que surdos gondoleiros sempre negam.

Em solo firme vai para São Marcos
e senta-se no velho Florian
sem ver Goethe ali há muito pragmática.

E assim se some a luz por sobre os arcos
e uma tarde ideal, perfeita e vã
na praça da ex-república adriática.


MANHÃ

Serena manhã, sol em que os cedros avultam
a sua eternidade. Carros passam na rua
como se não levassem ninguém no interior,
e nada mais espero do que sentir ainda
a blandícia da luz, pele em meus dedos cálida,
um rosto que celebro, a substância dos cedros
que flui branda num corpo, segredos do silêncio
donde a sabedoria de ser-se inteiro emana.
Oh, o tranquilo sol de uma manhã de inverno
que me lembra tão longas mãos! Devo pensar
na árvore sem folhas que vejo da janela,
imitar-lhe a existência sem tempo nem saber
como os cedros demonstram a sua eternidade,
receber este sol, seguro de que os deuses
só na era de Posídon seriam verdadeiros.
As quatro estações limitam-me, e as ilhas
que flutuavam no azul Egeu não mais existem.
Limitam, mas libertam-me as quatro estações,
e assim, o meu inverno, esta manhã sucinta
dilui-me na paisagem com a lembrança doce
de que a luz é o Sol, e aquelas longas mãos
volvem a antigos deuses as ilhas irreais.


CHUVA

Olhava da janela a chuva
e sem o áspero sol da Meseta
a cidade era doce,
Madrid, uma cidade do norte
na orla do mar Báltico;
queria dizer-lhe isto
e que afagasse a cinza da Europa
e estivesse de novo aqui,
aqui onde jamais esteve,
non la he visto aún,
afirmaria o Víctor do restaurante
onde sozinho almoço às vezes
com a vaga esperança
de não saber se a vida chegará
como dantes a quis
e agora me surgia na cor dos edifícios.
Como é bela Madrid à chuva
e que difícil é tê-la
por detrás das vidraças
em tardes de sozinho a olhar.
Todavia confesso
esta fraqueza logo esqueceria
se o Víctor em segredo
chegasse à minha mesa e dissesse
mira quién ha llegado para comer,
trae en sus dedos una flor de lluvia.


MEDITAÇÃO SOBRE O DECLÍNIO

Talvez seja melhor ficarmos longe,
descobrindo sozinhos os contornos
das coisas impassíveis e sem tempo:
a fachada da igreja que em granito
nunca se deu a homens ou a deuses,
gerada, nós sabemos, de pedreiras
e por mãos que morreram posta ali.
Mas os cedros talvez exijam menos,
os cedros que se elevam sobre a igreja:
contemplo-os para lá dos vidros, cedros
sem mais inquietações e sem perguntas
de quem se não contenta só consigo.
Porque ser-se sensato é ver as flores
irem a cor largando até os sonhos
se tornarem o fumo esmaecido
das nossas vidas, glória que foi lume
e que não mais lembramos, afastando
a tentação do tempo, a tentação
de sermos novamente anjos febris
à procura da fé no amor dos corpos
que nos tornava seres inscientes,
rodeados de coisas a nós alheias
e apenas nos servindo de cenário
a gestos que se gastam a si próprios.
E então ficam as flores a esvair-se
e cada um com seus rostos amados
perdidos na memória e com o peso
de enganos já vividos que o presente
não esquece e carrega em nossos ombros.
Alheemo-nos. Nada queiramos.
Digamos com o mestre que os poemas
foram cartas ridículas de amor,
e hoje um extemporâneo e vão delírio.
Nenhum outro destino nos convoca
se afinal o que sobra são poemas.
Quedemo-nos assim. Vês no horizonte
lívido o céu deserto que se assoma?
Não o temes, bem sei: mas concilia-te?
E as flores que se tornam mais presentes
na sua impossível duração,
vais como sempre amá-las? Ou será
uma graça que os anos levarão,
e a sua natureza, o teu desgosto? -
pergunto sem que espere uma resposta
porque sei o que digas não me acode.
Oxalá envelheças com doçura
e possas a teu modo ser feliz.


SOBRE A MEDITAÇÃO DO AMOR

A Daniel Francoy

A meditação do amor é um acto puro
como a meditação sobre a vida e a morte
que o amor alimenta em cada espírito.
Desdémona e Inês viveram trágicas
nos relatos ouvidos tantas vezes
de histórias de mulheres de rosto incrédulo
e se o teu pensamento se fixar
na mulher que por ti passa acredita:
resguarda uma flor breve entre os dedos
que o tempo de entre os dedos levará.
Não se trata de a amar, trata-se apenas
de olhá-la meditando sobre o amor
sem criar mais palavras que as precisas.


REQUIEM POR UM ESCRITÓRIO

Julguei que encaixotar livros
fosse um acto banal.
Contudo a cada um que arrumava,
um pudor juvenil
enrubescia mais a memória das folhas
e dos nomes dos mortos
que em abstractos dias como este os escreveram.
Talvez saber que os amo me console.
Afinal os quadros,
a música gravada,
os pequenos objectos,
o mapa das viagens,
até os móveis, as mesas,
o tapete que um dia comprei em Marraquexe
e eu também que durante anos
ali sofri e fiz amigos,
todos viemos juntos
e deixámos despidas as paredes
e nua aquela sala.
Inconsolável nestes versos,
medito no vazio que os livros me deixaram
e em quanto um escritório
fechado para sempre e deserto
me afasta mais de mim.


EXÍLIO

Quando penso nas ruas por onde andei,
nas ruas das cidades em que vivi
e recordo as janelas
que guiaram os meus passos
justamente até aqui, a hora tardia
de escrever estes versos sem dedicatória,
quando penso na teia emaranhada
onde me fui perdendo,
descubro na memória um clarão branco
e vejo desolado que não tenho uma cidade
a que pertença inteiro
e lhe devote as minhas palavras
de modo tão fiel como os choupos repartem
o sol com os seus bairros e dão sombra no estio;
não sei se o tempo apaga a origem,
a ilha que não é minha senão no sangue
de velhos capitães
que meu pai garantia correr-me nas veias
e o rio que foi meu, largo rio, mar
onde aquele que eu era se afogou.
Essa ilha naufragou sem a ver,
esse rio não corre mais,
e às vezes quando passo para norte
e o vejo não o sinto, é outro rio.
Se habitasse nas suas margens talvez
o exílio não tivesse surgido,
seria o mesmo rio que hoje flui ausente
na memória despida de sinais
e apinhada de rostos inúteis,
de mortos e de amigos que partiram
deixando as cidades por onde andei
desertas como o exílio que sinto esvaziar-me
de paisagens antigas,
de retratos de um velho álbum
nas folhas de um jornal ido há muito.


FINAL

De mãos escassas nuas a flor frágil
renasce sem motivo senão vê-la
tardia nos caminhos
que até aqui me trouxeram, e a surpresa,
a nitidez dos colos tranquilos
onde as searas são o dia-a-dia
já maduras e a estrada que entre os campos
me leva desconheço hoje para onde
nem como nem porquê entre cidades
e plainos navegando e vendo as árvores
e o seu perfil exacto contra o céu.
Digo-me tanto aqui hei-de passar
que um dia o silêncio se abrirá
no rasto que existia na memória
e as lembranças se irão, morto estava
o desejo de flores e as mãos escassas
preparavam o seu fim
sem que a pena ou o medo as desviasse.