DANIEL FARIA|1971-1999

A POESIA DE DANIEL FARIA  
Por LUÍS ADRIANO CARLOS

Daniel, o profeta, tinha visões nocturnas e era mestre inigualável na interpretação dos sonhos e na explicação dos enigmas. Uma das suas explicações decifrou o sonho de Nabucodonosor, que tivera a visão de uma árvore muito alta, com pássaros celestes nos ramos e animais de grande porte à sombra. Sob o peso do motivo da explicação no Livro de Daniel, o profeta, penso que nele está depositada a matriz condutora do livro de Daniel, o poeta, Explicação das Árvores e de Outros Animais, de 1998 e de certa maneira inaugural, em virtude da discreta divulgação das compilações ditas juvenis agora recolhidas no volume Poesia por Vera Vouga (1). Com inteira evidência, o livro é repassado de ponta a ponta pelo motivo da explicação. As árvores, os animais, a pedra, o lume, as casas, a noite, a luz, o homem, o poeta ou o próprio inexplicável servem de matéria a um tipo de explicação paradoxal que a todo o instante resiste à definição lógica e à palavra prática, representando‑se como parábola e alegoria potenciadoras de uma rede de indeterminações em puro estado poético. Tal como o profeta, o poeta explica os enigmas através de novos enigmas que são palavras aéreas sem o peso taciturno das palavras com sono. Porém, ao contrário do profeta, renuncia à transformação do discurso numa semiótica ou numa hermenêutica, explicando a própria explicação como puro movimento da visão que ensina a ver por cima de todas as coisas. Por isso ele mora entre a terra e o céu, no meio dos pássaros: «Ando um pouco acima do chão / Nesse lugar onde costumam ser atingidos / Os pássaros / Um pouco acima dos pássaros / No lugar onde costumam inclinar‑se / Para o voo» (2). Assim o poeta desafia a gravidade do sentido que aspira à incarnação histórica e à clausura lógica da profecia. Ele não deseja senão a pura cadência rítmica do verbo, a pura experiência sublime da palavra que diz sobre a terra o que nela há de indizível: «Houvesse um sinal a conduzir‑nos / E unicamente ao movimento de crescer nos guiasse. Termos das árvores / A incomparável paciência de procurar o alto / A verde bondade de permanecer / E orientar os pássaros» (3). Daniel Faria assinala aqui, diria que religiosamente, a palavra de um dos poetas que mais admirou, Rainer Maria Rilke, para quem só a canção sobre a terra santifica e celebra.

            Embora não isenta de referências à cultura greco‑latina, esta poesia é intimamente tocada pelo texto bíblico, quer no tom de algumas composições de feição versicular, quer na glosa de episódios morais da Sagrada Escritura. A escada de Jacob é o símbolo bíblico mais explícito e fecundo na construção de um imaginário poético não raro vocacionado para as mais ardentes contemplações místicas. Dele emanam os degraus, a luz, o amor e os anjos que amiúde surpreendemos em versos de ampla respiração. Dele emana a visão do movimento da pedra para o ar, da terra para o céu, da porta para a casa. A escada de Jacob é a árvore de Daniel, os anjos de Jacob são os pássaros de Daniel. Em Explicação das Árvores e de Outros Animais, o poeta Daniel abeira‑se da porta de Deus: «Devo ser o último degrau na escada de Jacob» (4). Em Homens que São como Lugares mal Situados, remata uma glosa do Eclesiastes com a conversão do motivo da escada numa fórmula sapiencial: «Põe uma escada e sobe ao cimo do que vês» (5). E em Dos Líquidos, ao retomar o mesmo motivo como símbolo da ascese, cria uma imagem mística de forte impacto visual e moral que podemos tomar como explicação de alguns aspectos essenciais da sua poesia: «Portanto farei uma escada no coração. / E pelos degraus subirei da minha casa / Até bater com o pensamento no altíssimo» (6).

            Nos antípodas da generalidade dos poetas da sua geração, Daniel Faria concebe e pratica o lirismo, na conhecida fórmula de Novalis, como elevação do homem acima de si mesmo, predominantemente em verso de arte maior e em tom maior, de tónus vibrante e fluido, pleno de vitalidade emocional em presença do imenso. Entre as razões desta prática, temos a função genesíaca dos motivos bíblicos da Árvore e da Escada — mas também as leituras da poesia mística e visionária, de S. João da Cruz a Novalis, Hölderlin, Rilke, Pascoaes, Régio e Herberto Helder. Com efeito, o vocabulário místico é profuso nos versos de Daniel Faria, como nos versos dos autores que mais o marcaram: noite escura, casa, degraus, fonte, águas, animais, aves, alma, visões, chama, lâmpada, elevação, anjos, céus, luz, contemplação, glória, arroubo, êxtase. Uma peça magnífica do livro Dos Líquidos concentra o máximo alumbramento do verbo e do verso, conjugando elevação e profundidade no mesmo sopro anímico:

Dai‑me a altura que ilumina

A dança das folhas no redemoinho, a dança

De um pé que não comece na terra

Os milímetros leves

De um corpo que não comece no chão

Deixai‑me começar a claridade

De quem vive para despenhar‑se no mundo

Dai‑me a chama, o inextinguível, dai‑me

Para que me aqueça a boca — o pão

[...]

Dá‑me um pouco do teu corpo como herança

Uma porção do teu corpo glorioso — não o que já tenho —

O que em ti já contempla o que os santos vêem nos céus

Dá‑me o pão do céu porque morro

Faminto, morro à míngua do alto (7).

     Usando a imagem de Ramón del Valle‑Inclán, a contemplação é uma lâmpada maravilhosa que se acende para iluminar o invisível. Ela transporta o poeta para o êxtase, arrebata‑o de si mesmo, desprende a sua alma das matérias corruptíveis — e assim lhe propicia a inefável experiência da Unidade. O anelo ascensional de «caminhar sobre as águas do céu» já atormentava Daniel Faria em Explicação das Árvores e de Outros Animais (8), porém as suas culminações mais agudas sucedem nas páginas de Dos Líquidos, livro das «inúmeras águas» de quem queria «ser água» porque as águas lustrais e os seus mistérios «jorram das palavras» (9). As águas que purificam são o lugar das visões, principalmente quando trazem consigo a matéria do desespero alojada no órgão da visão: «é pelas lágrimas / Que começam as visões», afirma o poeta no seu cântico final (10). Quer dizer, as águas são chamas molhadas, na bela expressão de Novalis, também desaparecido aos 28 anos e autor dos fulminantes Hinos à Noite que fecundaram maciçamente a linhagem literária de Daniel Faria até Herberto Helder. Antes de todos nós, Novalis falou dos profundos mistérios do líquido, da água como origem maternal das fusões aéreas e como elemento do amor e da união. No seu romance filosófico Os Noviços em Saïs, um noviço adolescente argumenta que «Só os poetas deviam ocupar‑se do líquido e ter o direito de falar dele à juventude ardente» (11). Que melhor fonte para a explicação dos líquidos em Daniel Faria, poeta e noviço em Singeverga?

            Entretanto, o leitor atento não ignora que esta poesia resiste à facilidade da sua redução mística, porque de facto ela nunca esquece a sua ontologia poética. A atitude mística não pode ser confundida com a poesia. Um místico não é necessariamente um poeta: pode revelar‑se um poeta do mais alto quilate, mas também pode exprimir altos pensamentos espirituais em verso sem a menor ponta de poesia digna de atenção enquanto tal. Ora, Daniel Faria representa acima de tudo um criador que teve a arte de fundir em estado líquido a mística e a poesia, com facturas notabilíssimas que não temem comparações no palco secular da sua geração, porquanto os seus versos traduzem uma rigorosa objectividade da experiência espiritual como elevação estética da palavra e da consciência. Eles incarnam a poesia nas mais altas esferas da sensibilidade, lá onde é possível sentir o pulsar das alturas da linguagem, o puro estado de liberdade da matéria e da forma, o canto absoluto do sentido. São factores determinantes deste empreendimento de grande magnitude, a par do génio criador sem o qual o poema não passaria de mero biscate, o lirismo meditativo e a estética do sublime, que possibilitam a fusão subtil do conceito e da imagem numa expressão original.

            O livro Dos Líquidos colige cinco glosas dos solilóquios e das meditações de Santo Agostinho. Um poeta de vivência religiosa não podia deixar de conhecer este género da espiritualidade devota, cuja história textual remonta às meditações sobre a vida de Cristo na Idade Média, de São Bernardo a São Boaventura, para se consolidar no Renascimento com os tratados de Tomás de Kempis, Santo Inácio de Loiola, Fray Luis de Granada, San Pedro de Alcántara, Lorenzo Scupoli, São Francisco de Sales e Luis de la Puente. A prática ascética da meditação espiritual é de resto testemunhada por Daniel Faria no pórtico da secção «Do que Sangro»: «O que medito (na cela nocturna): / As diferenças da luz da candeia no homem / Quando desce // O que mais recordo: os degraus» (12).

            Contudo, se tivermos em mente as Méditations Poétiques de Lamartine, ou se pensarmos nos metafísicos ingleses, de John Donne a George Herbert ou de Richard Crashaw a Andrew Marvell, modelos da poesia meditativa, secular mas profundamente devota, repleta de chagas e liturgias em constante dramatização interior, seremos forçados a reconhecer em Daniel Faria um tipo de meditação que já se transformou em método de composição poética, com formas e técnicas específicas, graças ao qual os seus versos adquirem uma tonalidade peculiar, na linha de toda uma tradição literária povoada por figuras como Wordsworth, Hopkins, Yeats, T. S. Eliot ou Wallace Stevens, que em Portugal frutificou em criações tão distintas como as de Jorge de Sena, Fernando Guimarães, Echevarría e Ruy Belo. É certo que o discurso de Daniel Faria vai buscar a sua amplitude reverberatória a um tipo de lirismo com ressonâncias épicas, por vezes filosófico e amiúde epidíctico, mas o que nele mais prevalece é um fundo de serenidade pensativa, devotada à «explicação» da existência, como elemento estruturante daquilo a que T. S. Eliot chamou «verso meditativo». Assim construído, o poema meditativo tende a desenvolver, e a resolver por momentos, um drama interior do espírito que parte de um problema evocado pela memória e termina na sua clarificação pela luz da consciência (13). Se o processo meditativo de Daniel Faria repousa nestes pressupostos gerais, a verdade é que ganha uma intensa carga poética na fusão peculiar dos conceitos e das imagens, do pensamento e da paixão: «A magnólia enxerta‑me nos pensamentos, é um profundo / Rumor na minha carne», escreve o poeta em Dos Líquidos (14). O pensamento é pois a incarnação do verbo poético: «Fecho / A circulação ao cérebro. O pensamento / É o próprio transeunte. Ele está preso na palavra» (15).

            Esta aliança do abstracto e do concreto acaba por fazer convergir teologia e poesia numa rigorosa finalidade estética que traduz a manifestação sensível da ideia. Muitos versos de Daniel Faria exprimem a glória do sensível na sua exuberante caminhada para o reino da Estética, esse lugar nobre de todos os líquidos onde matéria e forma, ou natureza e moral, alcançam uma condição de rara liberdade num mundo em que as coisas meditam mas nada nos dizem das suas meditações. Se os homens são lugares mal situados, é poeticamente que eles habitam esta terra, como pretendia Hölderlin, e só o verso devotado a um destino estético poderá re‑situá‑los num lugar em que a representação coincida com a Unidade e o Sentido. O homem é um pensamento encadeado no metro da linguagem, tropo do espírito que se ergue infinitamente da queda radical, por isso o seu lugar não é senão a possibilidade criadora de mudar de lugar.

            Re‑situar o lugar do homem é para o poeta nomeá‑lo por meio da metáfora e de todos os processos de translação de sentido. Ora, Daniel Faria elege o motivo do lugar como topos central da sua tropologia meditativa, cumprindo os preceitos ecfrásticos da retórica clássica que o método espiritual de Santo Inácio de Loiola designou por «composição do lugar», acto de ver com a vista da imaginação o lugar onde se situa o objecto contemplado. Com efeito, raramente os seus poemas iludem a vivacidade objectiva e dinâmica da representação do lugar, poética mas sobretudo estética, em virtude da sua natureza sensível. O limiar de Homens que São como Lugares mal Situados expõe de forma luminosa esta vivacidade que só uma sábia conjugação da análise intelectual e da imaginação poética poderia produzir:

Examinemos um homem no chão

Testemos a transformação de um homem por terra

A sua natureza tão diferente da lava, a sua maneira mineral

De adormecer.

O que mais interessa é ver o seu lugar rodando para perceber o eixo

Que o move no mundo

Ou como pode a sua posição orientar as aves e os astros. (16)

            Há muito tempo, Coleridge ensinou‑nos que a imaginação poética tem o poder de difundir um tom e um espírito de unidade que fundem como que por magia todos os aspectos discordantes, o geral e o concreto, a ordem e a emoção, o juízo e o entusiasmo, a ideia e a imagem. Daniel Faria filia‑se na tradição que partiu de Coleridge, tal como os surrealistas e o seu mestre mais directo, Herberto Helder. Nele, a imagem está longe de representar a palidez da sombra platónica: a imagem é a palavra tocada pela luz, que revela o lado oculto das aparências e desencadeia uma fenomenologia das aparições do ser submerso no aparecer. Só assim pôde o poeta escrever em Explicação das Árvores e de Outros Animais: «enxerto a luz / Em tudo o que nomeio» (17). Ou em Dos Líquidos: «Escrevo do lado mais invisível das imagens / Na parede de dentro da escrita» (18). Temos aqui a figura viva de um destino estético que afasta Daniel Faria da circunspecção retórica da poesia mística convencional. As suas raízes românticas, imagistas e surrealistas arrastam‑no para a centelha sensual que arde por entre as fissuras da linguagem, essa grande casa heideggeriana onde habita a unidade do Ser. Mas que fricção entre as palavras libertará essa faísca adormecida? Creio que a magia desta poesia se explica, em grande medida, pela capacidade superior de manejar um dado composto de tropos, à luz da visão sincrética que o romantismo produziu e que os surrealistas cultivaram com vertiginosa opulência. O que caracteriza esse composto retórico, munido de dispositivos como a metáfora e a comparação de tintas metonímicas, a sinestesia, a silepse, a enálage e a hipálage, é a afectação das relações lógicas e semânticas exactamente no processo de desdobramento do eixo sintáctico, provocando associações imprevisíveis de distintos planos ontológicos e sensoriais, do abstracto e do concreto, do conceito e da imagem, do mental e do corpóreo, do literal e do figurado. Destaco alguns exemplos: «A magnólia é pensativa como o homem / Que te olha por detrás da janela onde te escrevo» (19); «Ela estava no meu pensamento e tinha um pequeno tear», «Ela pegou na minha tristeza e começou a dobar» (20); «A sombra que tenho na memória é semelhante à tristeza no sangue» (21). Ou ainda, num efeito de túnel que deforma as categorias da realidade habitual: «Há um comboio iluminado no meu cérebro cheio de túneis e noites / Uma ideia que passa cheia de janelas intermitentes como pirilampos transformados / Borboletas rápidas — há esta imagem respirando» (22).

            Dir‑se‑á que Daniel Faria, como qualquer grande poeta da modernidade romântica em que ainda vivemos, procura pela exaltação estética uma via de acesso à exaltação do sagrado e ao reino do espírito. É a pura verdade. Porém, essa via estética consiste numa via poética animada pela energia do sublime, sem a qual nenhum meio de transporte conduzirá ao êxtase. Lugar bem situado, entre o domínio da razão e a serenidade moral, a meditação poética de Daniel Faria é, não obstante, uma pesquisa e uma sondagem de um outro lugar, onde ekstasis e aisthesis coincidam na chama vertiginosa em que o Ser e o Nada reintegram a unidade absoluta. Por esta razão, que subentende todas as outras, Daniel Faria é um poeta mal situado na história da poesia mais recente, cujos melhores criadores perseguem a estesia da linguagem como meio de dar luz às mais recônditas e insondáveis vibrações. Ele é tudo menos uma excepção que só serve para confirmar a regra no panorama dos poetas dos anos 90. Ele é uma parte importante da regra, porque o padrão de cada época costuma ter as medidas exactas dos vultos excepcionais.

Notas sobre a edição de Poesia

            Vera Vouga é a principal responsável pelo rápido reconhecimento público de Daniel Faria. A sua edição do volume Poesia alarga essa responsabilidade e merece‑me três ordens de observações.

            Trata‑se de uma edição que reúne, além dos livros que notabilizaram Daniel Faria, três discretas compilações até agora ignoradas pelo público: Uma Cidade com Muralha (1992), Oxálida (1992) e A Casa dos Ceifeiros (1993). Dir‑se‑á que o poeta não reeditaria tão cedo estes livros, se tivesse sobrevivido à morte precoce. Infelizmente, é outra a realidade, o que justifica a reedição por razões documentais — mas também literárias, porque os três livros, só na aparência juvenis, manifestam um estado qualitativo acima da linha média atingida pela generalidade dos poetas de 90 até ao final da década. Ora, mostrando não temer comparações, Vera Vouga compreendeu, contra os apóstolos da ignorância, que a reedição permitiria revelar a superioridade relativa do poeta nos seus verdes anos e aprofundar criticamente o conhecimento da sua obra. Por mim falo, em tom de confidência: embora os livros não me tenham fascinado em absoluto, a sua leitura conduziu‑me a uma noção mais exacta do longo e meticuloso trabalho poético de Daniel Faria, cujas forças latentes se percebem nesses versos e, sobretudo, no intervalo silencioso mas produtivo que separa A Casa dos Ceifeiros e Explicação das Árvores e de Outros Animais.

            O crítico mais sensível às imagens homogéneas e estereotipadas sentirá porventura algum abalo com esta subtil revolução na imagem do poeta. Mas o crítico exigente, que nunca regateia aplausos à divulgação dos textos mais remotos dos grandes criadores, saberá valorizar uma edição descomplexada que assim amplifica as ressonâncias de uma obra singular com um futuro aberto pela frente. O facto é que estas produções foram difundidas em livro, têm autor e existem no espaço público, por mais que pese ao cepticismo interessado e às ideias fixas dos críticos ligeiros. Com efeito, a vida editorial dos poetas, mesmo neste tempo em que tantos escondem do público sucessivos fracassos, também se constrói, pedra sobre pedra, com a difusão das primícias mais modestas. Pensemos nas infindáveis obras de Pessoa e de Jorge de Sena, por exemplo — ou nas de Vitorino Nemésio, que hoje abrigam sem qualquer complexo o livro de estreia Canto Matinal, publicado pelo autor aos 15 anos, ou o Caderno de Caligraphia, composto por textos pessoalíssimos, não raro meramente estenográficos e circunstanciais.

            A segunda nota prende‑se com a qualidade irrepreensível da transcrição. O texto foi reproduzido por Vera Vouga e pelas Quasi Edições com esmero e fidelidade, a ponto de se ter respeitado as grafias peculiares do autor. Isto é o que realmente importa na ponderação da qualidade editorial, ainda que verificá‑lo em todos os seus níveis e domínios dê muito trabalho e prejudique os juízos apressados.

            Por último, a intervenção de Vera Vouga incide ainda na arquitectura exterior que sequencializa os materiais numa espécie de narrativa mítica da criação, sobreposta ao corpo poemático como película de revestimento que está longe de ferir minimamente os livros coligidos: «Confidência», com um prefácio esclarecedor em que uma docente universitária, experiente e versada nos protocolos convencionais, repudia o bafiento tom académico para privilegiar o tónus afectivo, sem prejuízo das informações necessárias; «Antemanhã», com inéditos dotados de uma função epigráfica exercida pelo próprio autor, e não por outrem, sob a responsabilidade natural da editora; «Das Manhãs (Livros da Idade Adulta)»; «Das Madrugadas (Livros da Idade Juvenil)»; e «Anteaurora», com novos inéditos, igualmente epigráficos, mas agora epilogais. É lícito discordar desta intervenção praticada pela única pessoa com legitimidade para intervir, mesmo sob pena de se desencadear uma interminável discussão bizantina sobre o sexo dos anjos, pois não há padrão objectivo que possa decidir a disputa. Mas não é menos lícito reconhecer que esta é assumidamente uma edição de Vera Vouga, com personalidade própria e de composição específica, como não podia deixar de ser, embora o nome da responsável, constante do cólofon, não figure na capa e no frontispício do livro. De contrário, exigir que um editor renuncie à sua marca pessoal não é senão reclamar, com alguma tolice, que ele vista a nossa própria roupa e se revista da nossa própria marca. Dito de outro modo, é desconhecer o rol de casos similares que possibilitam a comparação sem a qual não há cultura geral ou especializada, é ceder às emoções mais narcisistas e às ideias mais dogmáticas, e é sobretudo avaliar a obra como quem mede um círculo com uma régua, pecadilho típico dos críticos ingénuos que olham as obras de terceiros como quem se revê ao espelho pela manhã e não encontra o reflexo esperado. Bem entendido, contra o risco proverbial e previsível de esses críticos concentrarem as atenções nos aspectos exteriores e imediatos, descurando o mais importante, o livro oferece a poesia de Daniel Faria em toda a sua nudez, límpida e integral, sem qualquer estorvo que obnubile as ideias claras e distintas ou que possa servir de desculpa à falta delas.

            Termino com uma verdade de La Palisse: esta obra do autor Daniel Faria é também uma obra da editora Vera Vouga. Mas, longe de ser uma obra a dois, é uma obra a quatro, partilhada com Jorge Reis‑Sá e Valter Hugo Mãe, que assim reforçam ao mais alto nível o lugar cimeiro das Quasi na divulgação da recente poesia portuguesa.

NOTAS

           (1) Daniel Faria, Poesia, edição e prefácio de Vera Vouga, Famalicão, Quasi Edições, 2003. Apresentado publicamente, em Lisboa e no Porto, com o presente texto.

            (2) Explicação das Árvores e de Outros Animais, in idem, p. 39.

            (3) Idem, p. 43.

            (4) Idem, p. 38.

            (5) Idem, p. 161.

            (6) Idem, p. 214.

            (7) Idem, pp. 314‑315.

            (8) Idem, p. 84.

            (9) Idem, pp. 257, 281 e 335.

            (10) Idem, p. 384.

            (11) Les Disciples à Saïs / Hymnes à la Nuit / Journal, Lausanne, Mermod, 1948, p. 89. Tradução confirmada pelo original, de Die Lehrlinge zu Sais: «Nur Dichter sollten mit dem Flüssigen umgehn, und von ihm der glühenden Jugend erzählen dürfen».

            (12) Poesia, ob. cit., p. 305.

            (13) Cf. Louis L. Martz, The Poetry of Meditation, New Haven, Yale University Press, 1978, p. 330. Ver ainda, do mesmo autor, a introdução a The Meditative Poem, Garden City, Anchor Books, 1963.

            (14) Poesia, ob. cit., p. 330.

            (15) Idem, p. 317.

            (16) Idem, p. 119.

            (17) Idem, p. 42.

            (18) Idem, p. 271.

            (19) Idem, p. 334.

            (20) Homens que São como Lugares mal Situados, in idem, pp. 144‑145.

            (21) Dos Líquidos, in idem, p. 313.

            (22) Idem, p. 270.

POEMAS

Daniel Faria nasceu em Baltar, Paredes, em 1971. Frequentou o curso de Teologia na Universidade Católica Portuguesa – Porto, tendo defendido a tese de licenciatura em 1996. No Seminário e na Faculdade de Teologia criou gosto por entender a poesia e dialogar com a expressão contemporânea. Licenciou-se em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Durante esse período (1994 - 1998) a opção monástica criava solidez. A partir de 1990, e durante vários anos, esteve ligado à paróquia de Santa Marinha de Fornos, Marco de Canaveses. Aí demonstrou o seu enorme potencial de sensibilidade criativa encenando, com poucos recursos, As Artimanhas de Scapan e o Auto da Barca do Inferno. Faleceu a 9 de Junho de 1999 quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga.