|
Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências
Editor | Triplov
ISSN 2182-147X |
|
|
|
|
|
DANIEL FARIA|1971-1999 |
|
A POESIA DE DANIEL FARIA
Por LUÍS ADRIANO CARLOS |
|
Daniel, o profeta,
tinha visões nocturnas e era mestre inigualável na interpretação dos
sonhos e na explicação dos enigmas. Uma das suas explicações
decifrou o sonho de Nabucodonosor, que tivera a visão de uma árvore
muito alta, com pássaros celestes nos ramos e animais de grande
porte à sombra. Sob o peso do motivo da explicação no Livro de
Daniel, o profeta, penso que nele está depositada a matriz condutora
do livro de Daniel, o poeta, Explicação das Árvores e de Outros
Animais, de 1998 e de certa maneira inaugural, em virtude da
discreta divulgação das compilações ditas juvenis agora recolhidas
no volume Poesia por Vera Vouga
(1).
Com inteira evidência, o livro é repassado de ponta a ponta pelo
motivo da explicação. As árvores, os animais, a pedra, o lume, as
casas, a noite, a luz, o homem, o poeta ou o próprio inexplicável
servem de matéria a um tipo de explicação paradoxal que a todo o
instante resiste à definição lógica e à palavra prática,
representando‑se como parábola e alegoria potenciadoras de uma rede
de indeterminações em puro estado poético. Tal como o profeta, o
poeta explica os enigmas através de novos enigmas que são palavras
aéreas sem o peso taciturno das palavras com sono. Porém, ao
contrário do profeta, renuncia à transformação do discurso numa
semiótica ou numa hermenêutica, explicando a própria explicação como
puro movimento da visão que ensina a ver por cima de todas as
coisas. Por isso ele mora entre a terra e o céu, no meio dos
pássaros: «Ando um pouco acima do chão / Nesse lugar onde costumam
ser atingidos / Os pássaros / Um pouco acima dos pássaros / No lugar
onde costumam inclinar‑se / Para o voo»
(2).
Assim o poeta desafia a gravidade do sentido que aspira à incarnação
histórica e à clausura lógica da profecia. Ele não deseja senão a
pura cadência rítmica do verbo, a pura experiência sublime da
palavra que diz sobre a terra o que nela há de indizível: «Houvesse
um sinal a conduzir‑nos / E unicamente ao movimento de crescer nos
guiasse. Termos das árvores / A incomparável paciência de procurar o
alto / A verde bondade de permanecer / E orientar os pássaros»
(3).
Daniel Faria assinala aqui, diria que religiosamente, a palavra de
um dos poetas que mais admirou, Rainer Maria Rilke, para quem só a
canção sobre a terra santifica e celebra.
Embora
não isenta de referências à cultura greco‑latina, esta poesia é
intimamente tocada pelo texto bíblico, quer no tom de algumas
composições de feição versicular, quer na glosa de episódios morais
da Sagrada Escritura. A escada de Jacob é o símbolo bíblico mais
explícito e fecundo na construção de um imaginário poético não raro
vocacionado para as mais ardentes contemplações místicas. Dele
emanam os degraus, a luz, o amor e os anjos que amiúde surpreendemos
em versos de ampla respiração. Dele emana a visão do movimento da
pedra para o ar, da terra para o céu, da porta para a casa. A escada
de Jacob é a árvore de Daniel, os anjos de Jacob são os pássaros de
Daniel. Em Explicação das Árvores e de Outros Animais, o poeta
Daniel abeira‑se da porta de Deus: «Devo ser o último degrau na
escada de Jacob»
(4).
Em Homens que São como Lugares mal Situados, remata uma glosa do
Eclesiastes com a conversão do motivo da escada numa fórmula
sapiencial: «Põe uma escada e sobe ao cimo do que vês»
(5).
E em Dos Líquidos, ao retomar o mesmo motivo como símbolo da ascese,
cria uma imagem mística de forte impacto visual e moral que podemos
tomar como explicação de alguns aspectos essenciais da sua poesia:
«Portanto farei uma escada no coração. / E pelos degraus subirei da
minha casa / Até bater com o pensamento no altíssimo»
(6).
Nos
antípodas da generalidade dos poetas da sua geração, Daniel Faria
concebe e pratica o lirismo, na conhecida fórmula de Novalis, como
elevação do homem acima de si mesmo, predominantemente em verso de
arte maior e em tom maior, de tónus vibrante e fluido, pleno de
vitalidade emocional em presença do imenso. Entre as razões desta
prática, temos a função genesíaca dos motivos bíblicos da Árvore e
da Escada — mas também as leituras da poesia mística e visionária,
de S. João da Cruz a Novalis, Hölderlin, Rilke, Pascoaes, Régio e
Herberto Helder. Com efeito, o vocabulário místico é profuso nos
versos de Daniel Faria, como nos versos dos autores que mais o
marcaram: noite escura, casa, degraus, fonte, águas, animais, aves,
alma, visões, chama, lâmpada, elevação, anjos, céus, luz,
contemplação, glória, arroubo, êxtase. Uma peça magnífica do livro
Dos Líquidos concentra o máximo alumbramento do verbo e do verso,
conjugando elevação e profundidade no mesmo sopro anímico:
Dai‑me a altura que
ilumina
A dança das folhas no
redemoinho, a dança
De um pé que não
comece na terra
Os milímetros leves
De um corpo que não
comece no chão
Deixai‑me começar a
claridade
De quem vive para
despenhar‑se no mundo
Dai‑me a chama, o
inextinguível, dai‑me
Para que me aqueça a
boca — o pão
[...]
Dá‑me um pouco do teu
corpo como herança
Uma porção do teu
corpo glorioso — não o que já tenho —
O que em ti já
contempla o que os santos vêem nos céus
Dá‑me o pão do céu
porque morro
Faminto, morro à
míngua do alto
(7).
Usando a imagem
de Ramón del Valle‑Inclán, a contemplação é uma lâmpada maravilhosa
que se acende para iluminar o invisível. Ela transporta o poeta para
o êxtase, arrebata‑o de si mesmo, desprende a sua alma das matérias
corruptíveis — e assim lhe propicia a inefável experiência da
Unidade. O anelo ascensional de «caminhar sobre as águas do céu» já
atormentava Daniel Faria em Explicação das Árvores e de Outros
Animais
(8),
porém as suas culminações mais agudas sucedem nas páginas de Dos
Líquidos, livro das «inúmeras águas» de quem queria «ser água»
porque as águas lustrais e os seus mistérios «jorram das palavras»
(9).
As águas que purificam são o lugar das visões, principalmente quando
trazem consigo a matéria do desespero alojada no órgão da visão: «é
pelas lágrimas / Que começam as visões», afirma o poeta no seu
cântico final
(10).
Quer dizer, as águas são chamas molhadas, na bela expressão de
Novalis, também desaparecido aos 28 anos e autor dos fulminantes
Hinos à Noite que fecundaram maciçamente a linhagem literária de
Daniel Faria até Herberto Helder. Antes de todos nós, Novalis falou
dos profundos mistérios do líquido, da água como origem maternal das
fusões aéreas e como elemento do amor e da união. No seu romance
filosófico Os Noviços em Saïs, um noviço adolescente argumenta que
«Só os poetas deviam ocupar‑se do líquido e ter o direito de falar
dele à juventude ardente»
(11).
Que melhor fonte para a explicação dos líquidos em Daniel Faria,
poeta e noviço em Singeverga?
Entretanto, o leitor atento não ignora que esta poesia resiste à
facilidade da sua redução mística, porque de facto ela nunca esquece
a sua ontologia poética. A atitude mística não pode ser confundida
com a poesia. Um místico não é necessariamente um poeta: pode
revelar‑se um poeta do mais alto quilate, mas também pode exprimir
altos pensamentos espirituais em verso sem a menor ponta de poesia
digna de atenção enquanto tal. Ora, Daniel Faria representa acima de
tudo um criador que teve a arte de fundir em estado líquido a
mística e a poesia, com facturas notabilíssimas que não temem
comparações no palco secular da sua geração, porquanto os seus
versos traduzem uma rigorosa objectividade da experiência espiritual
como elevação estética da palavra e da consciência. Eles incarnam a
poesia nas mais altas esferas da sensibilidade, lá onde é possível
sentir o pulsar das alturas da linguagem, o puro estado de liberdade
da matéria e da forma, o canto absoluto do sentido. São factores
determinantes deste empreendimento de grande magnitude, a par do
génio criador sem o qual o poema não passaria de mero biscate, o
lirismo meditativo e a estética do sublime, que possibilitam a fusão
subtil do conceito e da imagem numa expressão original.
O livro
Dos Líquidos colige cinco glosas dos solilóquios e das meditações de
Santo Agostinho. Um poeta de vivência religiosa não podia deixar de
conhecer este género da espiritualidade devota, cuja história
textual remonta às meditações sobre a vida de Cristo na Idade Média,
de São Bernardo a São Boaventura, para se consolidar no Renascimento
com os tratados de Tomás de Kempis, Santo Inácio de Loiola, Fray
Luis de Granada, San Pedro de Alcántara, Lorenzo Scupoli, São
Francisco de Sales e Luis de la Puente. A prática ascética da
meditação espiritual é de resto testemunhada por Daniel Faria no
pórtico da secção «Do que Sangro»: «O que medito (na cela nocturna):
/ As diferenças da luz da candeia no homem / Quando desce // O que
mais recordo: os degraus»
(12).
Contudo,
se tivermos em mente as Méditations Poétiques de Lamartine, ou se
pensarmos nos metafísicos ingleses, de John Donne a George Herbert
ou de Richard Crashaw a Andrew Marvell, modelos da poesia
meditativa, secular mas profundamente devota, repleta de chagas e
liturgias em constante dramatização interior, seremos forçados a
reconhecer em Daniel Faria um tipo de meditação que já se
transformou em método de composição poética, com formas e técnicas
específicas, graças ao qual os seus versos adquirem uma tonalidade
peculiar, na linha de toda uma tradição literária povoada por
figuras como Wordsworth, Hopkins, Yeats, T. S. Eliot ou Wallace
Stevens, que em Portugal frutificou em criações tão distintas como
as de Jorge de Sena, Fernando Guimarães, Echevarría e Ruy Belo. É
certo que o discurso de Daniel Faria vai buscar a sua amplitude
reverberatória a um tipo de lirismo com ressonâncias épicas, por
vezes filosófico e amiúde epidíctico, mas o que nele mais prevalece
é um fundo de serenidade pensativa, devotada à «explicação» da
existência, como elemento estruturante daquilo a que T. S. Eliot
chamou «verso meditativo». Assim construído, o poema meditativo
tende a desenvolver, e a resolver por momentos, um drama interior do
espírito que parte de um problema evocado pela memória e termina na
sua clarificação pela luz da consciência
(13).
Se o processo meditativo de Daniel Faria repousa nestes pressupostos
gerais, a verdade é que ganha uma intensa carga poética na fusão
peculiar dos conceitos e das imagens, do pensamento e da paixão: «A
magnólia enxerta‑me nos pensamentos, é um profundo / Rumor na minha
carne», escreve o poeta em Dos Líquidos
(14). O pensamento é pois a incarnação do verbo poético: «Fecho
/ A circulação ao cérebro. O pensamento / É o próprio transeunte.
Ele está preso na palavra»
(15).
Esta
aliança do abstracto e do concreto acaba por fazer convergir
teologia e poesia numa rigorosa finalidade estética que traduz a
manifestação sensível da ideia. Muitos versos de Daniel Faria
exprimem a glória do sensível na sua exuberante caminhada para o
reino da Estética, esse lugar nobre de todos os líquidos onde
matéria e forma, ou natureza e moral, alcançam uma condição de rara
liberdade num mundo em que as coisas meditam mas nada nos dizem das
suas meditações. Se os homens são lugares mal situados, é
poeticamente que eles habitam esta terra, como pretendia Hölderlin,
e só o verso devotado a um destino estético poderá re‑situá‑los num
lugar em que a representação coincida com a Unidade e o Sentido. O
homem é um pensamento encadeado no metro da linguagem, tropo do
espírito que se ergue infinitamente da queda radical, por isso o seu
lugar não é senão a possibilidade criadora de mudar de lugar.
Re‑situar
o lugar do homem é para o poeta nomeá‑lo por meio da metáfora e de
todos os processos de translação de sentido. Ora, Daniel Faria elege
o motivo do lugar como topos central da sua tropologia meditativa,
cumprindo os preceitos ecfrásticos da retórica clássica que o método
espiritual de Santo Inácio de Loiola designou por «composição do
lugar», acto de ver com a vista da imaginação o lugar onde se situa
o objecto contemplado. Com efeito, raramente os seus poemas iludem a
vivacidade objectiva e dinâmica da representação do lugar, poética
mas sobretudo estética, em virtude da sua natureza sensível. O
limiar de Homens que São como Lugares mal Situados expõe de forma
luminosa esta vivacidade que só uma sábia conjugação da análise
intelectual e da imaginação poética poderia produzir:
Examinemos um homem
no chão
Testemos a
transformação de um homem por terra
A sua natureza tão
diferente da lava, a sua maneira mineral
De adormecer.
O que mais interessa
é ver o seu lugar rodando para perceber o eixo
Que o move no mundo
Ou como pode a sua
posição orientar as aves e os astros.
(16)
Há muito
tempo, Coleridge ensinou‑nos que a imaginação poética tem o poder de
difundir um tom e um espírito de unidade que fundem como que por
magia todos os aspectos discordantes, o geral e o concreto, a ordem
e a emoção, o juízo e o entusiasmo, a ideia e a imagem. Daniel Faria
filia‑se na tradição que partiu de Coleridge, tal como os
surrealistas e o seu mestre mais directo, Herberto Helder. Nele, a
imagem está longe de representar a palidez da sombra platónica: a
imagem é a palavra tocada pela luz, que revela o lado oculto das
aparências e desencadeia uma fenomenologia das aparições do ser
submerso no aparecer. Só assim pôde o poeta escrever em Explicação
das Árvores e de Outros Animais: «enxerto a luz / Em tudo o que
nomeio»
(17). Ou em Dos Líquidos: «Escrevo do lado mais invisível das
imagens / Na parede de dentro da escrita»
(18). Temos aqui a figura viva de um destino estético que afasta
Daniel Faria da circunspecção retórica da poesia mística
convencional. As suas raízes românticas, imagistas e surrealistas
arrastam‑no para a centelha sensual que arde por entre as fissuras
da linguagem, essa grande casa heideggeriana onde habita a unidade
do Ser. Mas que fricção entre as palavras libertará essa faísca
adormecida? Creio que a magia desta poesia se explica, em grande
medida, pela capacidade superior de manejar um dado composto de
tropos, à luz da visão sincrética que o romantismo produziu e que os
surrealistas cultivaram com vertiginosa opulência. O que caracteriza
esse composto retórico, munido de dispositivos como a metáfora e a
comparação de tintas metonímicas, a sinestesia, a silepse, a enálage
e a hipálage, é a afectação das relações lógicas e semânticas
exactamente no processo de desdobramento do eixo sintáctico,
provocando associações imprevisíveis de distintos planos ontológicos
e sensoriais, do abstracto e do concreto, do conceito e da imagem,
do mental e do corpóreo, do literal e do figurado. Destaco alguns
exemplos: «A magnólia é pensativa como o homem / Que te olha por
detrás da janela onde te escrevo»
(19); «Ela estava no meu pensamento e tinha um pequeno tear»,
«Ela pegou na minha tristeza e começou a dobar»
(20);
«A sombra que tenho na memória é semelhante à tristeza no sangue»
(21). Ou ainda, num efeito de túnel que deforma as categorias da
realidade habitual: «Há um comboio iluminado no meu cérebro cheio de
túneis e noites / Uma ideia que passa cheia de janelas intermitentes
como pirilampos transformados / Borboletas rápidas — há esta imagem
respirando»
(22).
Dir‑se‑á
que Daniel Faria, como qualquer grande poeta da modernidade
romântica em que ainda vivemos, procura pela exaltação estética uma
via de acesso à exaltação do sagrado e ao reino do espírito. É a
pura verdade. Porém, essa via estética consiste numa via poética
animada pela energia do sublime, sem a qual nenhum meio de
transporte conduzirá ao êxtase. Lugar bem situado, entre o domínio
da razão e a serenidade moral, a meditação poética de Daniel Faria
é, não obstante, uma pesquisa e uma sondagem de um outro lugar, onde
ekstasis e aisthesis coincidam na chama vertiginosa em que o Ser e o
Nada reintegram a unidade absoluta. Por esta razão, que subentende
todas as outras, Daniel Faria é um poeta mal situado na história da
poesia mais recente, cujos melhores criadores perseguem a estesia da
linguagem como meio de dar luz às mais recônditas e insondáveis
vibrações. Ele é tudo menos uma excepção que só serve para confirmar
a regra no panorama dos poetas dos anos 90. Ele é uma parte
importante da regra, porque o padrão de cada época costuma ter as
medidas exactas dos vultos excepcionais.
|
|
Notas sobre a edição de Poesia |
|
Vera Vouga é a principal responsável pelo rápido
reconhecimento público de Daniel Faria. A sua edição do volume Poesia
alarga essa responsabilidade e merece‑me três ordens de observações.
Trata‑se de
uma edição que reúne, além dos livros que notabilizaram Daniel Faria,
três discretas compilações até agora ignoradas pelo público: Uma Cidade
com Muralha (1992), Oxálida (1992) e A Casa dos Ceifeiros (1993). Dir‑se‑á
que o poeta não reeditaria tão cedo estes livros, se tivesse sobrevivido
à morte precoce. Infelizmente, é outra a realidade, o que justifica a
reedição por razões documentais — mas também literárias, porque os três
livros, só na aparência juvenis, manifestam um estado qualitativo acima
da linha média atingida pela generalidade dos poetas de 90 até ao final
da década. Ora, mostrando não temer comparações, Vera Vouga compreendeu,
contra os apóstolos da ignorância, que a reedição permitiria revelar a
superioridade relativa do poeta nos seus verdes anos e aprofundar
criticamente o conhecimento da sua obra. Por mim falo, em tom de
confidência: embora os livros não me tenham fascinado em absoluto, a sua
leitura conduziu‑me a uma noção mais exacta do longo e meticuloso
trabalho poético de Daniel Faria, cujas forças latentes se percebem
nesses versos e, sobretudo, no intervalo silencioso mas produtivo que
separa A Casa dos Ceifeiros e Explicação das Árvores e de Outros
Animais.
O crítico
mais sensível às imagens homogéneas e estereotipadas sentirá porventura
algum abalo com esta subtil revolução na imagem do poeta. Mas o crítico
exigente, que nunca regateia aplausos à divulgação dos textos mais
remotos dos grandes criadores, saberá valorizar uma edição descomplexada
que assim amplifica as ressonâncias de uma obra singular com um futuro
aberto pela frente. O facto é que estas produções foram difundidas em
livro, têm autor e existem no espaço público, por mais que pese ao
cepticismo interessado e às ideias fixas dos críticos ligeiros. Com
efeito, a vida editorial dos poetas, mesmo neste tempo em que tantos
escondem do público sucessivos fracassos, também se constrói, pedra
sobre pedra, com a difusão das primícias mais modestas. Pensemos nas
infindáveis obras de Pessoa e de Jorge de Sena, por exemplo — ou nas de
Vitorino Nemésio, que hoje abrigam sem qualquer complexo o livro de
estreia Canto Matinal, publicado pelo autor aos 15 anos, ou o Caderno de
Caligraphia, composto por textos pessoalíssimos, não raro meramente
estenográficos e circunstanciais.
A segunda
nota prende‑se com a qualidade irrepreensível da transcrição. O texto
foi reproduzido por Vera Vouga e pelas Quasi Edições com esmero e
fidelidade, a ponto de se ter respeitado as grafias peculiares do autor.
Isto é o que realmente importa na ponderação da qualidade editorial,
ainda que verificá‑lo em todos os seus níveis e domínios dê muito
trabalho e prejudique os juízos apressados.
Por último,
a intervenção de Vera Vouga incide ainda na arquitectura exterior que
sequencializa os materiais numa espécie de narrativa mítica da criação,
sobreposta ao corpo poemático como película de revestimento que está
longe de ferir minimamente os livros coligidos: «Confidência», com um
prefácio esclarecedor em que uma docente universitária, experiente e
versada nos protocolos convencionais, repudia o bafiento tom académico
para privilegiar o tónus afectivo, sem prejuízo das informações
necessárias; «Antemanhã», com inéditos dotados de uma função epigráfica
exercida pelo próprio autor, e não por outrem, sob a responsabilidade
natural da editora; «Das Manhãs (Livros da Idade Adulta)»; «Das
Madrugadas (Livros da Idade Juvenil)»; e «Anteaurora», com novos
inéditos, igualmente epigráficos, mas agora epilogais. É lícito
discordar desta intervenção praticada pela única pessoa com legitimidade
para intervir, mesmo sob pena de se desencadear uma interminável
discussão bizantina sobre o sexo dos anjos, pois não há padrão objectivo
que possa decidir a disputa. Mas não é menos lícito reconhecer que esta
é assumidamente uma edição de Vera Vouga, com personalidade própria e de
composição específica, como não podia deixar de ser, embora o nome da
responsável, constante do cólofon, não figure na capa e no frontispício
do livro. De contrário, exigir que um editor renuncie à sua marca
pessoal não é senão reclamar, com alguma tolice, que ele vista a nossa
própria roupa e se revista da nossa própria marca. Dito de outro modo, é
desconhecer o rol de casos similares que possibilitam a comparação sem a
qual não há cultura geral ou especializada, é ceder às emoções mais
narcisistas e às ideias mais dogmáticas, e é sobretudo avaliar a obra
como quem mede um círculo com uma régua, pecadilho típico dos críticos
ingénuos que olham as obras de terceiros como quem se revê ao espelho
pela manhã e não encontra o reflexo esperado. Bem entendido, contra o
risco proverbial e previsível de esses críticos concentrarem as atenções
nos aspectos exteriores e imediatos, descurando o mais importante, o
livro oferece a poesia de Daniel Faria em toda a sua nudez, límpida e
integral, sem qualquer estorvo que obnubile as ideias claras e distintas
ou que possa servir de desculpa à falta delas.
Termino com
uma verdade de La Palisse: esta obra do autor Daniel Faria é também uma
obra da editora Vera Vouga. Mas, longe de ser uma obra a dois, é uma
obra a quatro, partilhada com Jorge Reis‑Sá e Valter Hugo Mãe, que assim
reforçam ao mais alto nível o lugar cimeiro das Quasi na divulgação da
recente poesia portuguesa. |
|
NOTAS |
|
(1) Daniel Faria, Poesia, edição e prefácio de Vera
Vouga, Famalicão, Quasi Edições, 2003. Apresentado publicamente, em
Lisboa e no Porto, com o presente texto.
(2) Explicação das Árvores e de Outros Animais, in
idem, p. 39.
(3) Idem, p. 43.
(4) Idem, p. 38.
(5) Idem, p. 161.
(6) Idem, p. 214.
(7) Idem, pp. 314‑315.
(8) Idem, p. 84.
(9) Idem, pp. 257, 281 e 335.
(10) Idem, p. 384.
(11)
Les Disciples à Saïs / Hymnes à la Nuit / Journal, Lausanne, Mermod,
1948, p. 89. Tradução confirmada pelo original, de Die Lehrlinge zu
Sais: «Nur Dichter sollten mit dem Flüssigen umgehn, und von ihm der
glühenden Jugend erzählen dürfen».
(12)
Poesia, ob. cit., p. 305.
(13) Cf. Louis L. Martz,
The Poetry of Meditation, New Haven, Yale University Press, 1978, p.
330. Ver ainda, do mesmo autor, a introdução a The Meditative Poem,
Garden City, Anchor Books, 1963.
(14)
Poesia, ob. cit., p. 330.
(15)
Idem, p. 317.
(16)
Idem, p. 119.
(17)
Idem, p. 42.
(18)
Idem, p. 271.
(19)
Idem, p. 334.
(20)
Homens que São como Lugares mal Situados, in idem, pp. 144‑145.
(21)
Dos Líquidos, in idem, p. 313.
(22)
Idem, p. 270. |
|
POEMAS |
|
Daniel Faria nasceu em Baltar, Paredes, em 1971. Frequentou o curso
de Teologia na Universidade Católica Portuguesa – Porto, tendo defendido
a tese de licenciatura em 1996. No Seminário e na Faculdade de Teologia
criou gosto por entender a poesia e dialogar com a expressão
contemporânea. Licenciou-se em Estudos Portugueses na Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Durante esse período (1994 - 1998) a
opção monástica criava solidez. A partir de 1990, e durante vários anos,
esteve ligado à paróquia de Santa Marinha de Fornos, Marco de Canaveses.
Aí demonstrou o seu enorme potencial de sensibilidade criativa
encenando, com poucos recursos, As Artimanhas de Scapan e o
Auto da Barca do Inferno. Faleceu a 9 de Junho de 1999 quando estava
prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga. |
|
|