CLAUDIA SAMPAIO....
«Requiem» e mais dois poemas

requiem


As relações afectivas deviam ter funerais
Poríamos dentro de uma caixa o que
correspondesse à dita - livros, cartas,
sapatos, ramos de flores secas, fotografias
de férias, os recados deixados na cozinha
as roupas de ocasiões especiais

convidaríamos os amigos mais próximos
testemunhas da sua existência e do seu fim
seguiriamos pelas ruas atrás da caixa levada
por um coveiro distante de pormenores
num silêncio, ou entre as palavras próprias de
quem segue um finado

chegados ao sítio do enterro, nada de muito diferente
abrir-se-ia a terra, talvez não fossem necessários os
sete palmos
duas ou três carpideiras para tornar o momento mais sério e credível
porque já se sabe que as relações não são materiais
punha-se a caixa na cova, atirava-se-lhe a terra para cima
quem quisesse podia deixar flores, talvez os que mais
tivessem acreditado na defunta

apenas uma placa com o nome dos que a constituiram
e lhe deram uma realidade palpável
"aqui jaz a relação de fulana e fulano tal" acrescido da
data de início e fim

posto isto poderia ir embora quem quisesse, poderiam
chorar os mais sensíveis
as carpideiras demorariam ainda mais uns minutos, devendo
ser as últimas a ir embora para que ninguém duvidasse do
triste final
há relações que não ficam bem enterradas
que se desenterram, que voltam para confundir

ao cair da tarde, ficaria a relação sozinha na cova
a largar o fogo-fátuo de imagens a preto e branco 
 

apetecia-me beber um whisky, arriscar contra
as regras da medicação
um belo whisky, o tilintar do gelo e eu a
brincar às divas decadentes
já sou decadente, consigo arranjar whisky,
só me falta a diva.
de qualquer maneira não sei fazer
aqueles caracolinhos na franja nem
tenho ouro para espalhar pelo corpo.
gostava de ter vivido como não,
agora vivo como sim
nem tem piada andar de rimel esborratado na
rua, vão pensar que é moda.

As pessoas pensam sempre alguma coisa.
As pessoas podem beber whisky sem serem
decadentes.
As pessoas podem ser divas sem se esborratarem.
Eu não consigo abrir nem uma garrafa de vinho,
porque o meu saca rolhas estragou-se.

Sei que há pessoas que conseguem abrir
garrafas com os dentes, mas eu nem ossos
consigo roer.
Apetece-me escrever uma carta sem destinatário
remetente: "diva decadente sem ser diva"
e que alguém me leia e pense em mim a
tentar abrir a garrafa com os dentes
o rimel a descer em cascata
e eu a abençoar as gatas e o vinho.

a fogueira de Marte

 

Eu toda endeusada a elevar-me a
outras esferas. Sem pentear o cabelo nem
arranjar a pele, sem vestir roupa lavada
o ar arruinado de meio-dia não me desvia da viagem
e tudo o que é penteado e engomado está disforme
e inaudível.  

Calor, calor, aspirações metafísicas que
trago no queixo. Negrume dilatado que
atirei ao ar, no meu foguetão não cabem queixas.
Deixarei de ir às compras e jogar computador
também não saberei de vidas nem da imensidão
das chuvas ou tremores de terra.
Tenho a pandeireta dos ranchos folclóricos para
não adormecer e um assobio de criança, mas
esse não sei porquê.  

Porra de Marte que fica tão longe
monto-me em cima de um pardal que
não pode comigo
mas também não posso com ele. Somos sozinhos
e pequenos, pardalito pardalito.
Somos casados com a gravidez da apatia,
das viagens nocturnas com bêbados e perdedores. 

Dizes-me ao ouvido que é difícil comer,
bem o sei. Passo fome todos os dias porque tenho
o estômago ligado à Terra e a Terra ligada ao fígado
num eterno retorno que me atira as ânsias com
toda a força.

A força também é subjectiva, não há nada que não
me traga suspeitas. Mas agora parece-me imensa. 

Cão macho a urinar à minha porta
não sei do que falas mas levo-te também.
A consagração dos bichos, sempre!

Ter só duas pernas é limitador quando
se vomita o mundo. Ter só uma boca não
chega para dizer. Está cosida a ponto cruz
com uma rendinha antiga que ficava bem
numa saia que não vou vestir. 

O perigo e o medo vaiam-me, apontam-me
o dedo do meio. Mas eu vou nesta velocíssima
direcção de Marte, velocíssima velocidade do adeus
sem olhar a meios.
Levo uma coroa de flores na cabeça para cheirar
o que perco e uma espada na mão para combater
o olho da Mãe. 

A esta velocidade perdem-se os sentidos, objectivo
final.
Não se ser físico custa muito, é maior que a agulha
que pica. Entro na estratoesfera e rebento com os
tímpanos – a mutação em zumbido.
Eu toda endeusada a deitar a língua de fora às
cascatas, não quero saber. Vou arder em Marte, mas
ficarei bem a saltar numa erupção espontânea
a espontaneidade aparece-me sempre no prato. 

Hoje não estarei cá e amanhã também não
Serei crocodilo solitário que engoliu um planeta,
ah, a grandeza dos bichos!
levo-os a todos comigo - sem mim
todos no nada, a caminho da grande marcha 

todos em triunfo,
depois da pele enxovalhada.

Cláudia R. Sampaio nasceu em Lisboa em 1981. Dedicou-se ao ballet, ao teatro, à pintura, ao cinema e à escrita de ficção para TV, sendo a poesia a sua forma preferida de comunicação. 

Blog: http://genocidiopoetico.blogspot.pt/2013/05/a-culpa-e-minha.html