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CLAUDIA SAMPAIO.... |
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«Desenlace» e outros poemas |
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desenlace
Tenho a poesia emaranhada nos cabelos e
penteio-me, confiante, de que sairá a solução.
Mãos ao alto,
olhos no tecto como se existisse um deus peço-lhe, peço-me,
peço-vos que me desenlacem esta coisa que trago nos bolsos de
terra.
Tenho um passado que não passa, um presente que não chega
e um futuro que goza comigo. Que alguém me envie uma vida ou me
atire água benta para eu me rir porque hoje acredito em tudo
qualquer coisa que me desfaça que me esmigalhe e que me envie para o
cosmos, ou para o raio que me parta de vez, pode ser para um anel de
Saturno.
Sou delicadamente cobarde e ainda ninguém me morreu
sou reiteradamente, desajeitadamente eu eu e os outros, eu e eu. ou
talvez simplesmente, um eu-sozinha, um eu-sozinha-ré-maior, si,
lá, dó que nunca mais acaba.
Eu contra tudo, com a cara de
cuspir em tudo, com a cara de não vos querer ver alma deslavada de
resistência.
E resistir é uma dor maior que a dos dentes.
Cheira-me a fim de linha enquanto espero o comboio.
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O peso dos outros
ao Homem tanto faz
a natureza se anda abismado, com outros às cavalitas quando chega
à meta já os perdeu a todos e depois é que olha o céu e sente a
chuva, tão nova.
ao Homem tanto faz o verbo se se multiplica
pelos actos quando dá por ele, já são muitos e depois a terra
abala-se e é a cabeça que inventa deus.
a mim, tanto me faz o
Homem sou espuma na onda desfaço-me mas volto e só existo de vez
em quando.
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serotonina
Deveríamos escolher ir para a esquerda
ou para a direita
é que sempre em frente, desalinhados
não chegaremos nem mais um passo
os teus pés nunca me acompanham
dizes tudo como nada, nada importa
eu sempre mais atrás.
Agora há horas a mais e as portas
batem-me na cara
andamos em redemoinho, uma centrifugação
de comida estragada
azedámo-nos
já não nos fazemos a digestão, andas
aqui para cima e para baixo como os
pimentos
não entras nem sais, não me dás
casa
vivo na rua desde que me puxas os lençóis
mudamos de abrigo e aposto
que chegas lá primeiro
eu fico sempre para trás
a ver o que perdemos.
Vou, mas fico
a autocomiseração é mais indigesta
que os teus passos à frente
e eu também preciso de me alinhar
bater continência à vida e alargar a boca
para os lados, coisa que não
me tem acontecido.
Tenho tudo pronto.
Andei a varrer os restinhos de serotonina
que nem me enchem um saco
vieram misturados com cabelos e
pequenas farpas de madeira das
portas que batem, mas espero que chegue
deixo-te à entrada os meus sapatos
que nunca estão ao teu lado na rua,
sempre um metro mais atrás, como
a distância da minha vida à tua
vou descalça
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ninguém conhece o infinito
A culpa é tua se dizes sempre
o mesmo nome
se tens sempre a mesma idade
e a mesma casa, se quando
revelas a tua identidade
é impossível que o céu te exploda
e que te acudas de incertezas
e de novos buracos.
A culpa é tua se ainda não
morreste, se nunca te
atrincheiraste à espera
de uma bomba que te mude os olhos
se nasces sempre no mesmo dia.
Não te aflijas.
Estás sempre a tempo de não
dormires na mesma posição
(com a mão aberta em esmola)
Também me custa
sobreviver a estes dias
mas o que ainda não chegou
é infinito.
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Só isso
Aspirei uma
linha de deus pelo nariz convencida que me vinha a fé, mas não
veio. Entraram-me uns quantos ácaros e universos de átomos e bosões,
só isso.
Mas não importa, ando descalça há tanto tempo que
andam mil Cristos desejosos de me beijarem os pés.
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A extrema inércia
bem que estalei
os dedos para me aparecer à frente alguma atitude que me salvasse
uma atitude ousada, de dedo espetado a dizer para eu fazer assim e
assado para eu dizer isto e aquilo e ver mais além e descobrir e
fazer coisas que poderiam ser geniais ou perfeitas, quem sabe,
poderiam nem ser nada mas seriam muito mais do que agora que já é
quase passado porque o agora não dura muito, no entanto, é infinito.
exterminei absolutamente todas as acções até as que nem se cruzaram
comigo porque nem as tentei não tentei rigorosamente nada nem um
esgar mais ousado de pôr o pé na rua, mesmo que ligeiramente
inclinado pela inércia ou um percurso mais prolongado do que dez passos
ou uma exclamação em voz alta um bahhh bahhh bum, que nem precisaria
de muito esforço tudo morto
o cotão junto ao rodapé
já deixou de ser mole está teso de tão defunto e eu sou viúva de
mais um dia exterminado pela minha ausência de raciocínio
agora,
que já é quase passado o instinto fez-me mover as narinas e o dia de
hoje a decompor-se cheira a gestos mortos de uma imbecilidade terna,
confusos, gafanhotos aflitos de pernas para o ar.
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Purificação
Quero uma alma
lavada engomada e dobrada apta para adornar o mais requintado
pescoço mas com a sensatez de alguns vincos.
Com o toque rebelde
de quem se pendura no eléctrico mas com a pose arquitectónica de
uma torre quando avistada da outra margem.
e uma cara que mude
de expressão todos os dias que reaja aos estímulos anunciantes
do dilúvio capaz de incorporar planos cinematográficos, imortais
e de texto teatral ao ponto do finito.
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A exaltação do meu silêncio
atiraram um saco
com lixo pela janela e eu ouvi tudo testemunho a minha solidão e não
tenho medo testemunho a solidão dos outros e confirmo que o melhor é
exaltar o meu silêncio levá-lo ao extremo pô-lo a galopar entre os
fetiches que não me lembro levá-lo ao colo pelas divisões da casa
deitá-lo na cama e beijá-lo falar com ele contar-lhe que ando a
fugir de tudo até de regar as plantas como se a vida não me
animasse assim desta maneira mas haverá outra? é tudo automático
já cruzei a outra perna quase escrevi um poema e nem dei por nada
Ainda hoje me disseram que preciso de amor e eu aqui de regador
na mão.
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Genocídio poético
Pudesse eu arrebatar-vos
com o que escrevo
ver-vos em fila a tombar que nem
tordos
queda em dominó à escala mundial
pudesse eu espetar-vos os dedos nos olhos
cegar-vos, mutilar-vos
arrancar-vos uma unha em cada sílaba
dilacerar-vos em cada letra
comer-vos um dia de vida à dentada por cada
pensamento meu
que vos explodissem as almas, as casas
e os carros
os empregos e as contas, o sexo
e o nexo
que vos acabasse o rumo, a certeza
a gentileza e a boa vontade
que se transformassem todos
num limão ainda mais amargo que eu
e que depois me espremessem
vocês, este mundo e os outros,
até ao meu infinito.
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Realismo
Tinhas a mesma vontade que eu
de louvar a imperfeição
de chamar as coisas pelos nomes
mesmo as que nem chamar se chamam
e o desatino do extremo cansaço.
É por isso que a nossa felicidade,
a que nem sabemos se é
(mas podemos fingir)
está na tristeza que aclamo, logo ao despontar do dia
e na rotina que me despejas, por vezes,
ao fechar da noite.
A minha fé está na dedicação
com que arrumas a loiça lavada
e a tua,
está na emoção com que ajeito os lençóis
antes de fechar os olhos.
Não existe mais nada para além deste querer
Querer sentar-me contigo
e contar-te o desnorte amargo das
minhas palavras
querer
continuar a adorar-te, apesar da dor de estômago.
Não te escondo que já me doeram todas as coisas
a vida, a não vida,
a voz, os cabelos, o pão
mas ao saber-te sentado no momento em
que abrir a porta
deus da secretária de madeira
pai-nosso, amor-meu!
tão existente quanto despojado das
grandes coisas
não há mundo nem ponta de estômago por
mais inflamada que esteja
que me impeçam
de não-doer.
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Cláudia R. Sampaio
nasceu em Lisboa em 1981. Dedicou-se ao ballet, ao teatro, à pintura, ao
cinema e à escrita de ficção para TV, sendo a poesia a sua forma preferida
de comunicação.
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