a culpa é minha
os lábios tremelicantes de Wagner
a gata acomodada na minha almofada
e assim estamos, neste dia em
que Lisboa pára para ver o Benfica.
estou isolada numa ilha de pó e livros abertos nas
mesmas páginas desde Domingo.
só eu é que não quero saber da liga Europeia
só eu é que não quero saber se os astros
se uniram para me isolar em cima da manta-zebra
com dois ou três buracos de nicotina
a gata que está à janela ri-se de mim
e pisca o olho à vizinha que vai com
o tuperware buscar o jantar à Alice
toda ela feita de benfiquismo, hoje quarta-feira
dia de sol, vento moderado de sudoeste
uns milhões de mortes aqui e ali, menos
nascimentos e menos fodas
hoje ela nem cozinha e aposto que tem uns
camarõezinhos no frigorífico, resultantes
da poupança reforma.
o sol já teve três erupções esta semana
mas penso que nada têm a ver com o jogo
nada tem a ver com o jogo, só os adeptos
é que não percebem. Nem eles têm nada a ver
com o jogo. Aliás, nós não temos a ver
com nada de nada de nada.
Nós não somos feitos para pertencermos a
alguma coisa. Nós não somos feitos da
matéria resultante de investigações científicas.
Nós somos feitos de uma explosão, de conjunções,
de equações complicadas, de amor desconhecido.
Nós somos zero infinito, zero ao quadrado, zero perdido
no universo trocista que vai parindo novos
planetas para nos distrair.
também eu já pari novos planetas
tenho-os escondidos no ventre
que ninguém vê, nem eu. Aliás, eu não
vejo nada de nada de nada.
Só às vezes.
Mas quando mergulho no mar deixo
sempre os olhos abertos e por vezes
vejo alforrecas cintilantes que me
mostram a lingua, libidinosas
só a mim é que a libido vem em alforreca
e o prazer é um choco que me enche de
tinta quando espasma.
a gata à janela ri-se mais uma vez.
E eu não.
Só me rio de vez em quando e nem sequer
tem piada. É a tal cara de
cuspir em tudo, a minha,
a tal que dizem que é snob.
Deixem-na ser.
A minha cara é que sabe, eu não mando NADA DE NADA.
A cara é à parte do corpo. A cara tem um manifesto
em que explica as expressões a usar em cada
ocasião.
Não liguem se me rir num funeral, ou se vier a
chorar com o benfiquismo. A cara é que sabe.
A cara às vezes comunica com o resto do corpo
Por exemplo, hoje comunica com o meu pé que
está verde e roxo e chora pelas sapatilhas
de ballet. Nunca fui uma grande bailarina.
Nunca fui... nada de nada de nada.
Se fui, não me lembro. Talvez tenha sido mais
nas tardes em que me sentava à mesa da
cozinha com a minha avó, a comer pão
com marmelada e a mexer-lhe nos cabelos
brancos.
Agora sou apenas este corpo na
manta zebra a teclar umas letras com
o cheiro a laranja que não me sai dos dedos.
Tu também não me sais dos dedos.
Agarras-te à laranja e formas um pomar
um pormar feito de ti, quem diria...
pensava que só servias para me
lembrares da pequenez das minhas
palavras.
Pequenas, pequenas, pequeninas...
Nunca poderão sair grandes depois
das monstruosidades que já nos
dissemos. Nós não somos feitos de
acções, somos cobardes, escondidos
atrás de frases, aparecemos ao pôr-do-sol.
Um pomar... TU.
deiletemo-nos então em volta dos vários
pomares de TUS que por aí existem
e eu que nem laranja sou. Só tenho dedos.
se fosse algo, era apenas um figo seco em
embalagem fora de prazo, a contemplar
o ventre cheio de planetas e a sonhar com
o dia de aterragem.
Mas os figos nãoi aterram, deixam-se estar
a ser figos, eternamente. Vivem a secar.
VIVAM OS FIGOS SECOS
VIVA EU SENTADA NA MANTA ZEBRA
e cheiro os dedos mais uma vez,
cinco pomares estrelados, édens feitos de
TUS, feitos de eus, feitos de nós, feitos de
zeros mais zeros, mais zeros, mais zeros
infinitos zeros que me arrancam as sílabas
que me arrancam as horas a que tinha de
fechar a janela por causa do benfiquismo, as
horas a que tinha de fechar os livros, vão continuar
abertos,
sempre as mesmas páginas amareladas
com cheiro a vida ( a vida é nos livros)
cá fora há nada elevado ao extremo, apesar
de não sabermos, mas desconfiamos
a ânsia expande-se de boca em boca disfarçada
de rotina.
Cuspo em todos os que se
dizem felizes.
Cuspo em TODOS ao infinito, infinito,
Infinitamente elevado ao cubo
não tenho vergonha, a cara de hoje é snob.
VIVAM OS SNOBS!
Tu tus, tus, e já somos tambores
Rufemo-nos em melodias compassadas
Aí vem a claque
Aí vem o rebanho disfarçado de gente
Aí vem o mundo em todo o seu esplendor
clamoroso, ardente de sugar tus,
de nos mandar para o Espaço, de onde
viemos todos.
Irei.
Agora
vou arrancar tecla a tecla e engoli-las
para um dia as poder parir em
forma de pomar.
o amor
Não sei
há quanto tempo não pinto as unhas. Deixo-as com as pontas pretas para
me lembrar que as mergulho na terra para fazer crescer vidas.
Tenho um romance para acabar de escrever e um amor suspenso, preso por
andaimes um pouco inclinados e também eles de pontas pretas.
O meu amor já foi saltitante de nenúfar em nenúfar, digo-vos eu que
gosto de metáforas e esta parece-me bem. Um amor como uma rã, aos
saltos pelas nenúfares de belas cores, de coachar cantante, plena de
vida, problemas inócuos, a lembrar os dias felizes. Agora não há dias
felizes, há dias semi tristes, também um pouco inclinados,
suspensos não se sabe onde. As flores vão morrendo a cada dia que
passa, e eu tenho semi-deuses também eles inclinados entre os olhos,
que me sentam nos andaimes a balouçar, a ver-te na outra ponta da
cidade todo tu por inteiro, a continuar a tua vida, não tão
inclininada, mas também tão pouco direita,
Sou capaz de te dizer
adeus, sou capaz de te soprar uma nenúfar, de relembrar que os meus
dias sem ti são tão semi-tristes, sou capaz de me lançar dos andaimes,
de deixar as unhas pretas para todos verem, mas porra, o amor não
é uma rã.
a margem
Ando feita de crisântemos luz, banhos de ouro
e perfumes franceses. Nota-se assim que falo que um outro eu me
substituiu. Sou agora quase feita de anúncio de tv, cara de
porcelana e alma de fermento.
Sonhei.
Os demónios da boca
seca fizeram-me levantar da cama e suspensa por um fio de vida
redimi-me à margem solta de um suspiro que ainda falta.
Desfez-se-me o fermento e a alma, encolhida, coube-me perfeitamente
na fronha da almofada.
valsa
Tenho o corpo preso ao mundo.
A alma, se existir, prova de
todos os mecanismos do corpo,
está a esta hora pousada
no colo da minha mãe que
nunca mais me embalou.
Deixei a sopa mortificada
na mesa, não sou capaz
de lhe dar casa. Os braços
ramificaram-se, ásperos
de realidade, uma moradia
incompleta.
Em fundo, uma valsa do Strauss.
Aqui, o vazio a cuspir-me em cima
e eu sem lhe tapar a boca.
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