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JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
O Saco Do Adeus
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Teu pai
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Olha. Quando morre alguém não morre tudo

Acontece que esse alguém vai noutro caminho

Como se num teatro um actor ficasse mudo

Como se na estrada o viajante ficasse sozinho

 

Claro que não podes ouvir de novo a sua voz

Nem sentir o calor instalado entre o seus dedos

Mas mesmo quando dizes o eu em vez do nós

Misturas no que dizes parte dos seus segredos

 

E as histórias vividas de espingarda ao ombro

Com o cão atento ao movimento dos coelhos

Caçava animais e também coisas de assombro

Onde incluía muitas memórias dos mais velhos

 

Grande parte do que escreves e do que dizes

É afinal seguimento desta história inacabada

Tu vives de novo todos os momentos felizes

Quando escreves com a poeira desta estrada

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Terra trazida
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Na minha mão trago um poema e uma alface

Nascem da terra palavras e as coisas da horta

Por isso na mão esquerda eu faço este enlace

E com a mão direita bato devagar á tua porta

 

Trago também um grande, um enorme repolho

Há poucas horas ainda ele respirava humidade

Não sei se tu o aceitas. Não sou eu que escolho

Eu apenas o transportei do campo para a cidade

 

Trago-te também alguns limões bem amarelos

Frescos graças á ajuda dos últimos aguaceiros

Eu plantei esta árvore onde hoje fui colhê-los

E pelo cheiro se percebe que são verdadeiros

 

Haverá talvez uma moral neste meu gesto

Trazer um pouco de mim na terra trazida

Colada ás minhas mãos ela é um manifesto

Juntando esta minha terra á luz da tua vida

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Jardia
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Morreu o comboio dos meus sonhos de menino

Na segunda classe via partir os alunos do Liceu

No carvão queimado se queimou o meu destino

Mas naquele comboio nenhum lugar seria meu

 

Partiam do Montijo para a capital deste distrito

Alguns até vestiam a farda verde da Mocidade

Eu não partia porque o Liceu era quase um mito

Nascido numa aldeia eu nunca chegaria à cidade

 

Morreu o comboio que povoava esta paisagem

Anos cinquenta, ruas vazias, prisões a abarrotar

O meu destino era não fazer nunca esta viagem

Isso estava escrito num decreto lei por publicar

 

Anos depois faço esta viagem mesmo ao lado

Dos velhos carris tão calcinados desta linha

Eu morri também com o comboio do passado

Porque esta sombra no apeadeiro é a minha