Em Beringel, apenas em Beringel, cantou-se na igreja durante muito tempo na liturgia dominical, por alturas do ofertório, uma toada tipicamente alentejana cujo texto passo a transcrever: "Somos da terra do pão / Pedimos Teu Pão, Senhor / Trazemos no coração / A fome do Teu Amor". Hoje graças à divulgação em CD e em cassete desses belíssimos "Cânticos Alentejanos" do Coro do Carmo de Beja sob a direcção artística do Padre António Cartageno e editados pelo Instituto Missionário Filhas de São Paulo, este e outros cânticos são repetidos todos ao domingos (ou todos os sábados à noite) em muitas igrejas e capelas de muitos lugares do Alto e do Baixo Alentejo.
O livro "Toadas Alentejanas" de Rosa Dias organiza-se, tal como este cântico litúrgico do ofertório, entre o pão e o amor. Porque - e não tenhamos dúvidas - a Poesia é sempre o lugar onde se ouve a voz do Homem e a voz da Terra. E isto seja homem ou mulher o autor que arrisca e se arrisca nesse cântico que todo o poema é. Somos de uma civilização cuja base é a terra e o pão; nada de profundo temos a ver com o arroz e a água. Foi pelo pão e pela terra (de onde nasce o pão) que na nossa civilização as lutas entre povos se travaram e as fronteiras dos países foram sendo alteradas ao longo do tempo. Rosa Dias canta o pão no poema "Homem do campo": "Nasceste Alentejano / Tens por sina a escravidão / És parte da terra seca / Onde semeias o pão / Diz o mundo à boca cheia / Que és homem sem valer nada / Que não conheces uma letra / Do tamanho de uma enxada / O culto pega a caneta / Pouco sai do seu escrever / O inculto pega o arado / Faz a terra dar comer".
Mas também canta o amor no poema "Vida barata": "Nestes tempos mais modernos / Vive bem quem viveu mal / Mas não perdeu a memória / Do que passou afinal / Um fio de azeite rançoso / Para um punhado de feijões / Com um marrocate duro / Era a janta dos ganhões / Foi assim vida de pobre / Há trinta anos atrás / Era pobreza eu bem sei / Mas era gente de paz / Nesses tempos não o nego / Houve miséria eu que o diga / O pão no saco era pouco / Para consolar a barriga / Mas hoje a miséria é na alma / Homens sofrendo de dor / Morrem como trapos velhos / Vivem carentes de amor."
Ora entre o pão e o amor não existe uma terra de ninguém. Pelo contrário - é esse o lugar do poema e do poeta. Rosa Dias (ela-mesma) e a sua voz poética (simples mas não simplista, simples mas não simplória, simples mas não simplificadora) escolhem e habitam o lugar entre o pão e o amor - o mesmo é dizer entre a paisagem e o povoamento de um lugar determinado. Rosa Dias habita o lugar e ergue a voz para dizer: "Fui menina e rapariga / Fui mulher e hoje sou mãe / Minha vida foi uma briga / Para chegar onde cheguei / Como estudos tive pouco / Falta de oportunidade / Sou fruto dum mundo louco / E desta louca sociedade / Sei um pouco de enfermeira / De electricista já fiz / Até já fui caiadeira / E de alfaiate aprendiz / Ainda vou a meio da vida / E tudo isto eu vivi / Vejo minha alma sofrida / A chorar o que perdi / Não fui porque ninguém viu / A força que eu tinha em ser / Fui simplesmente o pavio / Que ninguém quis acender".
É vulgar dizer-se para simplificar (todas as fórmulas são mistificadoras) que só existe poesia quando há um drama vivido por alguém mas, quanto a mim, isso não chega. Basta ir a um cemitério para perceber que isso não é verdade: as quadras toscas, as lágrimas passadas a limpo para a pedra não passam de um simples e modesto testemunho. Não são poesia nem andam lá perto. Poesia é outra coisa. Poesia é quanto a mim a voz do poeta à procura da voz da terra, da voz do tempo, do espírito do lugar. Procura e encontra. Escreve e proclama. E, no caso de Rosa Dias, nem precisa de escrever em Campo Maior para escrever o Alentejo. Basta escrever em Lisboa desde que o faça com a terra trazida na memória e no afecto que nela são já uma segunda pele. Uma segunda natureza. Dito de outra maneira: ao incorporar no seu discurso um tempo autobiográfico ("Fiz apenas quarta classe / Estudar mais não pôde ser / Segui por estreito caminho / Que me ensinou a viver") Rosa Dias não se refere apenas ao seu percurso mas eleva do chão do esquecimento as palavras de todos os que, perto de si, não podem ou não sabem usar as palavras. Há muita gente dentro dos seus poemas. São poemas povoados. Há todo um tempo português (anos cinquenta, sessenta, setenta) que estes poemas revisitam e, como num coro grego, implacável e acusativo, estamos todos lá. Todos mesmo os que fingem que não. Esses até estão logo na primeira fila.
Para terminar vejo em "Toadas Alentejanas" um percurso poético pessoal na sua organização e verdade interior mas, ao mesmo tempo, há toda uma geração de gente cujos sonhos foram esmagados no Portugal dos Pequeninos e que se junta em surdina ao testemunho poético da autora. Eu próprio também estou lá porque também ouvi dizer no ano de 1959, em voz baixa, estas palavras arrepiantes - " Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu". Para terminar. Este livro é para ler urgentemente. Nenhuma apresentação nem nenhum prefácio pode substituir a leitura de um livro e o seu usufruto pleno. Deixei nesta leitura pessoal apenas algumas pistas a partir da ideia de que os poemas deste livro se deslocam entre a Terra e a Céu - o mesmo é dizer entre o Pão e o Amor. O mesmo amor que os desconhecidos cantores de Beringel cantavam, na liturgia semanal, aos sábados à noite e aos domingos. O mesmo amor que Rosa Dias consegue decantar no meio da enorme revolta que não cala nem esquece quando, num dos seus poemas, recorda e afirma: "E assim o tempo dos sonhos / Ao lado de mim passava / Só por ter nascido pobre / Fui menina e não sonhava." |