Desde sempre as mulheres souberam ser, com a luz do seu olhar, o segundo sol no quotidiano do Mundo. São elas que sacodem o sono de quem está a seu lado e, inquietas, procuram o combustível para o fogo inicial da manhã. São elas que descobrem o pão quente, o sabor doce da geleia feito no Verão e a cor da manteiga alternativa para a primeira mesa do dia. São elas que multiplicam a vida. Desde a demorada gestação até ao tempo de dar à luz uma criança (nossa aposta e nosso implacável juiz no futuro) são elas que procuram, rápidas, a água quente, os cobertores, o cordão umbilical quebrado e, num perímetro de afecto, a sinfonia do primeiro choro. Depois as primeiras botas, as primeiras fraldas, os primeiros «chambres», os primeiros «baby grow». Mudam os tempos, mudam as referências mas não muda essa capital de um país sem nome cujas fronteiras são a ternura. São também as mulheres que vestem os mortos e ajudam a secar as lágrimas dos outros muitas vezes à custa de um aumento gradual das suas próprias lágrimas interiores.
Tudo isto (vida e morte, luz e sombra, alegria e solidão) não pode ser indiferente quando se trata de comentar um livro de poemas escrito por uma mulher. Belmira Besuga apresenta-nos em "Alentejo até aqui" uma aproximação repetida a um tempo e a um espaço. O tempo da infância e da juventude; o espaço da terra natal. Não que a infância seja um paraíso perdido no sentido total da palavra paraíso. Não que a terra natal que o poema invoca seja a terra prometida pela Bíblia onde o leite e o mel abundam. O que acontece é que a distância física e psicológica alteram e mitificam a realidade que o poema refere. O poema é sempre uma transfiguração. Não é um simples registo de sentimentos em palavras organizadas.
Há nestes poemas de "Alentejo até aqui" um apelo explícito. A autora pretende que o Alentejo, o seu Alentejo, venha até ao lugar do seu poema que se escreve entre o asfalto e o betão armado, entre os automóveis e a pressa sem sentido do quotidiano citadino. Mas como o Alentejo, o seu Alentejo, não se desloca de facto, cabe ao poema lançar as pontes de contacto. Cabe ao poema responder. E todo o poema é uma resposta - mesmo quando não parece. Escreve-se para ligar o que o tempo separou, escreve-se para procurar o que se perdeu, escreve-se para que as pessoas e as coisas não morram nem no poema nem em nós.
Há nestes poemas de Belmira Besuga uma simplicidade aparente. E aparente porque a voz desta autora incorpora o sentir de todo um conjunto de gerações de alentejanos atirados e cuspidos para uma emigração dolorosa seja no estrangeiro seja no próprio país. O poema "Aves do sul" diz tudo nos seus apenas dez versos:
"Somos as aves do sul / Procurando um novo rumo / Saindo da nossa terra / Indo embora daqui / Acabamos por voltar / Um dia mais tarde / Por vezes / Tarde demais / Gastamos lá longe a vida / E não há duas vidas iguais".
Falemos agora do poema "Chão". Nele essa simplicidade aparente surge no seu total esplendor. É quando o poema afirma que "o campo entra pela casa". O campo entra pela casa mas não só, dizemos nós seus leitores. Entra pelo poema, entra pelo livro, entra pelo olhar que a sua autora soube transfigurar em palavras.
É este o mesmo campo que se prolonga no poema "Terra" quando diz "Parece que saíram de mim / Estas espigas" ou nas várias memórias da infância. Seja na Escola e na sua disciplina ("Queria sentar-me outra vez / Nos bancos da minha escola") seja nos jogos e na sua festa: "Sou criança / Ainda brinco à cabra-cega / Faço a roda e salto à corda". Seja ainda na memória do pai e das suas mãos mágicas: "Um cocho de cortiça / Um chapéu, um tarro / Tudo isto feito / Por mãos de barro / Que a matéria moldam / De seu jeito capaz".
É este mesmo campo que se prolonga nos poemas - digamos - de viagem. Dito de outra maneira: mesmo quando canta a beleza da Praça do Giraldo em Évora, o esplendor das flores de Campo Maior, as ruínas do castelo de Montemor o Novo ou o peso da história da sua terra natal - Lavre -, Belmira Besuga canta sempre o campo, canta sempre a terra velha e ao mesmo tempo nova, cansada e exausta mas sempre pronta a novas sementeiras e novas colheitas.
O poema (todos os poemas deste livro - afinal) ergue do chão do esquecimento um cântico à terra de onde a autora um dia partiu e à qual há-de um dia regressar. Mas, ao levantar a sua voz contra a distância, contra a tristeza e contra a separação, o poema pretende de facto vencer a morte. E para alcançar esse objectivo conjuga todas as imagens, todas as memórias, todos os sonhos.
Imagem, memória e sonho - de tudo isto é feita a grande viagem deste livro. Partindo de um lugar suburbano e citadino, a autora anuncia "Vou daqui ao Alentejo /Sentir um pouco de sol" mas essa viagem é mais do que geográfica. É igualmente sentimental. O seu mapa não é o mapa das estradas; é uma estrada de memórias. Por isso diz num poema: "A casa de que me lembro / Está na sombra / Tão no fundo da memória". Só que o veículo para essa viagem à infância e ao lugar da infância não pode ser o automóvel. Tal viagem só cabe no sonho. Mas é uma viagem que vale a pena.
Habituado a ler, por dever de ofício, livros de poemas todas as semanas quer na crítica em jornais e revistas quer em prémios literários, não posso deixar de assinalar a pureza e a solenidade desta poesia simples só na aparência. Não posso deixar de dar relevo ao timbre de uma voz poética que não copia nem segue caminhos alheios antes se organiza nos seus próprios ritmos e modulações fazendo confundir afinal a sua voz com a voz da terra que tanto ama. Esse o seu fascínio e o seu prémio.
Mas o prémio maior será ver este livro ter os muitos leitores que merece. No Alentejo mas não só no Alentejo. Afinal em todos os lugares onde a palavra tem o poder de iluminar as distâncias, as tristezas e as separações dando ao poema o estatuto (mesmo breve) de lugar de felicidade. |