Corria o mês de Setembro
de 1940 quando, em São Paulo, Rubem Braga (n. 1913- Cachoeiro de
Itapemirim) escrevia e publicava uma das suas mais famosas crónicas: «Os
mortos de Manaus». Estava Rubem Braga a hesitar no tema de uma crónica,
algures entre um grupo de pretos que cantava na madrugada os sambas da
moda e uma fita de cinema sobre a qual podia valer a pena escrever mas,
de súbito, caiu na sua mesa de trabalho o «Boletim Estatístico do
Amazonas» com os 428 mortos do primeiro trimestre de 1940 em Manaus. Ao
ler e interpretar os números, Rubem Braga percebe que dos 428 mortos, 73
são crianças com diarreia e enterite. E explica: «Eis uma coisa que não
chega a me dar pena porque me irrita: o número de crianças que morre no
Brasil. O que me irrita é o trabalho penoso das mulheres, o sacrifico
inútil de dar vida a tantas crianças que morrem logo. A indústria
nacional que nunca foi protegida é a indústria humana. Preferimos
importar.»
Depois de uma dissertação
emocionada sobre as várias causas de morte (paludismo, tuberculose,
nefrites, lepra, cancro), depois de perceber que cada morto projecta
sobre a sua mesa de trabalho e sobre a sua alma uma «sombra acusativa»,
Rubem Braga termina a crónica com uma expressão irónica, vasta e fria
como a tristeza do Mundo: «Eu não tenho culpa nenhuma e nada tenho a ver
convosco. Eu não tenho culpa de nada, eu não tenho culpa nenhuma!»
No mesmo ano de 1940 o
poeta Carlos Drummond de Andrade (n. 1902 – Itabira do Mato Dentro)
publica «Ode no cinquentenário do poeta brasileiro» escrita em 1936 para
os 50 anos do poeta Manuel Bandeira. Vejamos um excerto:
«Esse incessante morrer /
que nos teus versos encontro / é tua vida, poeta / e por ela te
comunicas / com o mundo em que te esvais.
Não é canto de andorinha,
debruçada nos telhados da Lapa / anunciando que tua vida passou à toa, à
toa. / Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argentino /
diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito infiltrado. /
Não são os carvoeirinhos raquíticos voltando encarrapitados nos burros
velhos. / Não são os mortos do Recife dormindo profundamente na noite.»
Em 1927 Carlos Flávio, o
filho do poeta Carlos Drummond de Andrade, nasce e vive apenas alguns
instantes. Esse drama terrível marcará para toda a vida a obra poética
do autor de «Sentimento do Mundo». Por exemplo, no poema «Consideração
do Poema» pode ler-se:
«São todos meus irmãos,
não são jornais / nem deslizar de lancha entre camélias: / é toda a
minha vida que joguei./ Estes poemas são meus. É minha terra / e é ainda
mais do que ela. É qualquer homem / ao meio-dia em qualquer praça. É a
lanterna / em qualquer estalagem, se ainda as há. / - Há mortos? Há
mercados? Há doenças? / É tudo meu.»
Projectado um pouco do
contexto deste poema inesperado de Rubem Braga, inesperado também porque
incluído num livro de crónicas intitulado «O conde e o passarinho» (1961
– Editora do Autor), aqui fica, nos seus inesperados 35 versos, o poema
«Adeus»:
«Adeus, escritório, adeus,
Para sempre e nunca mais.
Eu vou sair pelo mundo,
Vou para Minas Gerais.
Já não quero mais cidade,
Onde tem muita prisão
E nenhuma liberdade.
Nem quero ser lavrador,
Quero ser é um vagabundo,
Do mais pobre e desgraçado,
Mas de espingarda na mão.
Se precisar trabalhar
Mudo sempre de patrão.
No fundo do mato arranjo
Comida para comer,
Cachaça para tomar,
Maleita para morrer.
Adeus, mulherada, adeus,
Para sempre e nunca mais.
Eu vou no rumo de Minas
Pego o sertão de Goiás.
Vou caçando, vou pescando,
Vou matando sem aviso
O branco que aparecer.
Depois desço por um rio
Para o Norte ou para o Sul
- Vou descendo sem saber -
Em Marajó ou no Prata
Eu varo as ondas do mar
E saio por este mundo
Barbado, pobre, sozinho
Doente, todo estragado,
Mas de espingarda na mão.
Eu saio por este mundo
E de espingarda na mão!»
A conclusão disto tudo
está talvez no título do trabalho e no seu sentido – somos todos irmãos
no sentimento do Mundo também porque, como escreveu em 1940 Rubem Braga,
o poeta da prosa, «A força da vida, a força da vida mais mesquinha é um
milagre de todos os dias.» |