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JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

Fala de Carlos Pato a Alves Redol 60 anos depois

Não morri. Sei que vai sair um pequeno livro

com os meus três contos por si guardados.

Em Vila Franca pouca gente sabe do assunto

mas em breve esse livro de contos vai esgotar.

Continuo nas histórias breves que escrevi

e no seu pequeno prefácio onde me recorda.

Sou o Bairro, sou a Charneca, sou a Lezíria

e os sonhos dos meus dois filhos por sonhar.

 

Não morri. Continuo no olhar dos meus filhos

Clara bebé e João Carlos que não cheguei a ver.

No olhar e nos sonhos por mim transmitidos

entre o rio de Santa Sofia e o Largo do Serrado.

Ainda hoje, tantos anos depois, sobeja azeite

no aroma intenso que se espalha pelas ruas.

Vem das várias carroças, das raras camionetas

das ceiras onde as azeitonas foram prensadas.

 

Não morri. Aprendeu comigo a ler e a escrever

o chauffeur de praça que levou Clara a Peniche.

Meu irmão Octávio tinha então visitas breves

e a viagem era tão longa por estradas velhas.

Não queria já receber o dinheiro esse rapaz

mas Clara insistiu sempre pelo pagamento.

Também lhe ensinei à noite a não misturar

os seus deveres e as influências sentimentais.

 

Não morri. No Bairro, na Charneca e na Lezíria

vi mulheres que não tinham tempo para cantar.

Os sonhos dos engraxadores na estação da CP.

entram no meu conto breve do livro pequeno.

Todos os outros protagonistas saem de manhã

e vendem o seu trabalho no campo à semana.

O vento pampeiro penetra veloz entre as telhas

e sacode o sono leve dos ranchos dos gaibéus.

 

Não morri. Nas ruas escuras da Bica do Chinelo

corre ainda hoje um forte rumor de esperança.

Passam cavaleiros a caminho das Cachoeiras

e não há ainda as camionetas para a Arruda.

Gerações sucessivas trabalham uma memória

que há nos prelos das tipografias clandestinas.

No nome dos meus filhos Clara e João Carlos

se multiplica o inventário dos meus sonhos.

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO (Santa Catarina, Caldas da Rainha,1951).

Prêmio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. Colaborou no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses do Instituto Português do Livro. Poeta. Possui uma antologia da sua poesia publicada no Brasil. Jornalista, colaborou entre outros em "A Bola", "Jornal do Sporting", "Remate", "Atlantico Expresso"...

Autor de "Universário", "Jogos Olímpicos", "Iniciais", "Os guarda-redes morrem ao domingo", etc., bem como de antologias como "O trabalho", "O desporto na poesia portuguesa e "As palavras em jogo", entre outras.

É secretário da Associação Portuguesa de Críticos Literários. Vive em Lisboa.
 Contacto: jcfrancisco@mail.pt

 
 
 

 

 

 



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