Não morri. Sei
que vai sair um pequeno livro
com os meus três
contos por si guardados.
Em Vila Franca
pouca gente sabe do assunto
mas em breve esse
livro de contos vai esgotar.
Continuo nas
histórias breves que escrevi
e no seu pequeno
prefácio onde me recorda.
Sou o Bairro, sou
a Charneca, sou a Lezíria
e os sonhos dos
meus dois filhos por sonhar.
Não morri.
Continuo no olhar dos meus filhos
Clara bebé e João
Carlos que não cheguei a ver.
No olhar e nos
sonhos por mim transmitidos
entre o rio de
Santa Sofia e o Largo do Serrado.
Ainda hoje,
tantos anos depois, sobeja azeite
no aroma intenso
que se espalha pelas ruas.
Vem das várias
carroças, das raras camionetas
das ceiras onde
as azeitonas foram prensadas.
Não morri.
Aprendeu comigo a ler e a escrever
o chauffeur de
praça que levou Clara a Peniche.
Meu irmão Octávio
tinha então visitas breves
e a viagem era
tão longa por estradas velhas.
Não queria já
receber o dinheiro esse rapaz
mas Clara
insistiu sempre pelo pagamento.
Também lhe
ensinei à noite a não misturar
os seus deveres e
as influências sentimentais.
Não morri. No
Bairro, na Charneca e na Lezíria
vi mulheres que
não tinham tempo para cantar.
Os sonhos dos
engraxadores na estação da CP.
entram no meu
conto breve do livro pequeno.
Todos os outros
protagonistas saem de manhã
e vendem o seu
trabalho no campo à semana.
O vento pampeiro
penetra veloz entre as telhas
e sacode o sono
leve dos ranchos dos gaibéus.
Não morri. Nas
ruas escuras da Bica do Chinelo
corre ainda hoje
um forte rumor de esperança.
Passam cavaleiros
a caminho das Cachoeiras
e não há ainda as
camionetas para a Arruda.
Gerações
sucessivas trabalham uma memória
que há nos prelos
das tipografias clandestinas.
No nome dos meus
filhos Clara e João Carlos
se multiplica o
inventário dos meus sonhos. |