Era pelo Inverno de cinquenta e sete.
No Porto Alto um homem de capuz e oleado
segurava uma lanterna com dois vidros pintados
e fazia alto com a outra mão.
A ponte sobre o Sorraia era de madeira
e só passava uma camioneta de cada vez.
Não havia ao tempo muitas Mercedes Benz
de cor verde e com a chapa do Estado.
Meu pai saudava o homem entre a chuva
e desejava-lhe uma boa noite impossível.
Se recordo estes passos e rituais
dos caminhos desse tempo
é porque aquele lugar marcava para mim
o principiar da circulação de uma temperatura
que me fazia lembrar Lorca.
Eu tinha aprendido a ler nos jornais.
Meu pai trazia-os à noite para casa.
Terá sido num «Diário Popular»
que li um texto sobre o poeta assassinado.
Mesmo sem conhecer os seus poemas
comecei a sentir naquele espaço
a respiração do verde e do vermelho,
a relva sem fim e o sangue dos touros,
o pó levantado pelos cavalos breves,
os gritos dos campinos sempre longe
e a noite sempre negra e sempre longa.
Mais à frente, a caminho do Montijo,
respirava o sal de Alcochete,
o sabor conservado de uma angústia serena,
a ideia imaginada de que estes campos verdes,
estas oliveiras e este som da alegria
rente à raiz de tudo
poderiam ter sido caminho
do poeta Federico Garcia Lorca.
Ainda hoje não sei porque cavaram
tão depressa os cabouqueiros da morte.
Sei que entre o Porto Alto e o Montijo
algures entre verde e verde
uma sombra esguia faz sinal aos deuses
e os deuses param.
Lorca poderia ter morrido aqui
à porta desta taberna, a caminho do Montijo.
|