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Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências
Editor | Triplov
ISSN 2182-147X |
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CARLOS VAZ.......... |
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Antologia 2011 |
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era uma vez um coleccionador de introduções. Mal
entrava numa livraria, corria logo para as páginas iniciais dos livros e
arrancava-as com toda a avidez. Um dia, enquanto este coleccionador de
introduções se mantinha entretido a rasgar as ditas primeiras páginas,
na famosa livraria onde várias vezes fora proibido de entrar, tropeçou
numa leitora que, ao contrário dele, coleccionava os mais belos
desenlaces.
Segundo a história, o coleccionador de introduções e a leitora dos ditos
desenlaces apaixonaram-se quase de imediato e ao fim de alguns anos, não
muitos, tiveram um filho traquina que avançava sempre as primeiras
páginas e nunca chegava ao fim de um livro
Carlos Vaz, um coleccionador de introduções,
in O Estrangulador de Bonecos de Neve, Ed. Labirinto
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era uma vez uma leitora que coleccionava desenlaces.
Pegava num livro, corria para as últimas páginas e arrancava-as de
imediato. A sua obsessão começou quando lhe disseram que os escritores
guardavam para o fim a parte mais bela de toda a história. Um dia,
enquanto a leitora se mantinha entretida a rasgar as últimas páginas de
um livro, conheceu um leitor, bem mais novo, que coleccionava apenas as
introduções, porque - segundo ele - lhe tinham confessado que os
escritores dedicavam mais tempo às primeiras páginas para agarrarem os
leitores.
A leitora que só lia os desenlaces e o leitor que só lia as introduções
apaixonaram-se e tiveram um filho que desistiu de ler e uma filha que
lia sempre tudo do principio ao fim
Carlos Vaz, uma leitora que coleccionava desenlaces,
in O Estrangulador de Bonecos de Neve, Ed. Labirinto
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O PRINCIPIO DA INCERTEZA, Heisenberg |
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alimentam-se dois pintores da tonalidade fraca de uma
luz
sobre a imagem de dois frutos
o primeiro, mais a direita, desenha pêssegos
o segundo, mais afastado, limões
por não se entenderem, acendem o espaço
e vêem duas laranjas
desiludidos pelo engodo, descascam e comem
gomo a gomo o que afinal não pintaram
Carlos Vaz, inédito |
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poemiocárdio |
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na ponta dos dedos sentiu as artérias vibrantes que
dão carne aos partos
procurou assim toda a metade direita onde se agregam as mensagens
venosas
que têm o mesmo paladar a ferrugem alojada num prego
sem nunca encontrar um registo que fosse
viajou para a metade esquerda, onde dão à costa
pequenas tábuas escritas com sangue arterial, mas nenhuma delas lhe
falava do amor
dali seguiu para a mais alta subida,
almejando a sístole e a diástole que choraram com espasmos e contracções
até romperem o lençol manchado com as pétalas vermelhas das coisas
traçou os riscos e uniu os pontos do
código piroclástico de cada batimento cardíaco,
o coração era pouco maior do que o seu punho
mas tinha a mesma vontade da explosão do cosmos
por isso, antes que o poema acabasse, partiu em direcção aos hemisférios
onde
se inclinam os sete sois que iluminam o mundo
mas aqueles poucos nativos, que alcançaram a barcaça, nunca souberam
explicar o que era o amor |
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por birra, um rei zarolho mandou arrancar a língua de
todos os poetas. Depois de dilatados, perseguidos e encontrados, eram
conduzidos ao pequeno castelo, onde, diante do rei, os poetas eram
obrigados a colocar a língua de fora, para ser cortada pelos algozes.
Não se sabe bem o modus operandi de todo aquele procedimento, porque
este texto não nos quis revelar, mas o que se sabe é que, um a um, os
poetas ficaram sem o poder da fala.
Ao fim de algum tempo, o rei zarolho constatou que os mesmos, afinal,
não precisavam das línguas para construir versos, pois tinham passado a
escrever o que antes apenas diziam. O poderoso monarca mandou, então,
arrancar as mãos de todos os que escreviam os sons que antes falavam.
Depois começou o estranho fenómeno. Sem língua e sem mãos, os poetas
resguardavam-se perto das coisas inefáveis, como o pôr-do-sol, ou para
assistirem a um instante deslizar de uma gota de orvalho numa pétala da
flor. A população, vendo tal estranho encontro, procurou observar aquele
estado de beleza dos poetas. O rei, apercebendo-se do perigo, e farto de
poesia, resolveu com um decreto-lei todos os seus problemas. Em nome do
seu olho perdido, ordenou, alegando que era o melhor para o progresso da
terra, que fossem retirados os olhos da população. Por isso, ainda hoje
se ouve dizer um ditado, que veio de tais estranhas paragens: em terra
de cegos quem tem um olho é rei.
Mas esta história não termina aqui, porque o texto assim nos quis dizer.
Segundo parece, uma vez toda a população cega, o rei começou a ter
graves problemas, sendo ele o portador do único olho, ou seja, da única
visão do reino, ao descrever as suas experiências, decisões e
observações aos súbditos cegos, teve a necessidade de explicar o que
via. Construía-se uma estrada, tinha de descrever uma montanha, sem
recorrer à visão que não tinham, mais à junção de imagens que ainda
possuíam; para construir uma ponte pedia-lhes para juntarem as
descrições e as imagens criadas durante a construção da estrada, à
audição da corrente e do frescor do rio. Assim, sem se aperceber, o rei
não se desfez dos poetas, mas abriu, sem saber, a sua escola de imagens.
Tornando-se, ele próprio no maior e melhor mentor de poetas do mundo.
Por isso, e desde então, o velho ditado, que nos chegou de tão estranhas
paragens, acabou por ser alterado, e em vez de ser em terra de cegos
quem tem um olho é rei, chegou até nós um outro dizer: em terra de cegos
quem tem um olho, afinal, é poeta
Carlos Vaz, um rei zarolho,
in Dez anos de solidão (Daniel Gonçalves), Ed. Labirinto
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Carlos Vaz (Carlos Rodrigo da Silva Vaz)
nasceu em Caminha, Portugal, a 21 de Junho de 1970. É o autor da
Trilogia da Experiência: A Casa de Al'isse, Seres de Rã e o romance
premiado pela crítica Capricho 43. Para além destas obras, é ainda o
autor do livro de poesia Laivo e do ensaio Diários de um
Real-Não-Existente, entre outros. Recebeu o Prémio Vergílio Ferreira
(Gouveia) em 2005 pelo ensaio Diários de um Real-Não-Existente e o
Prémio Literário António Paulouro (Fundão) em 2006 pela obra Capricho
43.
Obra Literária
Poesia
2000 - "Laivo" (poesia)
Prosa
2002 - "Seres de Rã": I - Trilogia da Experiência (Ed.
Labirinto\romance)
2004 - "A Casa de Al'isse": II - Tril. da Experiência (Ed.
Labirinto\romance)
2007 - "Capricho 43": III - Tril. da Experiência (Ed.
Labirinto\romance), Prémio Nacional de Literatura António Paulouro -
2006
2009 - "O Estrangulador de Bonecos de Neve" - Curtas I (Ed. Labirinto\microcontos)
Ensaio
2005 - "Diários de um Real-Não-Existente" (ensaio), Prémio Nacional de
Literatura Vergílio Ferreira - 2005
Crónica
2007 - "Tricotadeira de Ariadne" - Minotauro - Folha de Intervenção
Artística.
2010 - "A Coisa Crónica" - Jornal "Artes Entre as Letras".
Antologias em que participou
1998 - "Do Fingimento que Somos" (Autores de Braga\poesia).
2004 - "Isto é Poesia" (Ed. Labirinto\poesia); "Histórias para um
Natal" (Ed. Labirinto\conto).
2005 - "Afectos" (Ed. Labirinto\poesia).
2006 - Revista "Saudade8" (Edições do Tâmega\poesia).
2007 - "Afectos - Mulher" (Ed. Labirinto\poesia); "Afectos -
Liberdade" (Ed. Labirinto\poesia); "Um Poema para Fiama" (Ed.
Labirinto\poesia); "Las Palavras Puedem" (Panamá-UNICEF\conto); "Dez
Anos de Solidão" (Ed. Labirinto\ com conto para a obra do poeta Daniel
Gonçalves); "Afectos - Natal" (Ed. Labirinto\conto).
2008 - "Um poema para António Ramos Rosa" (Ed. Labirinto\poesia);
"Afectos - Amor" (Ed. Labirinto\conto).
2009 - "Os dias do Amor” (Ministério dos Livros Editores\poesia).
2010 - "O Prisma de Muitas Cores" - Antologia de Poesia Portuguesa e
Brasileira (Ed. Labirinto\poesia).
Espaços do Autor:
Página Pessoal:
http://site.carlosvaz.pt/
Blog Textualino:
http://www.carlosvaz.blogspot.com/
Wikipédia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Vaz
Revista de Artes, Textualino:
http://revista.textualino.com/ |
Data de entrada no TriploV:
18 de Março de 2011 |
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