MARIA JOÃO CANTINHO
POEMAS

um deus que caminha
invisível, por dentro dos jacarandás
desenhando a orla da noite
o arrepio do mar.

os barcos esperam-no
quietos, guardando a luz,
os olhos do deus, o seu deslizar
entre as águas tranquilas.
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A Canção Possível

Poderei ainda, amor, cantar
o exercício da insuportável ternura
sem que a vida sucumba
às cicatrizes do passado?

Por mais que digamos,
as nossas bocas morrendo uma na outra,
entre espasmos,
ainda a rosa é pálida
e os nossos dedos não passarão de mendigos
que se tocam na espuma dos dias.

Por mais que digamos,
as palavras jamais saberão o caminho
que lhes é devido,
o caminho das flores do silêncio
esse o único que salva o amor,
cravando-o na boca de Deus.

É noite, ainda, meu amor,
e a lua vem beijar-te os ombros
o teu corpo procura o lugar do meu,
como se nenhum outro coubesse dentro dele
antigo como a noite.

E os dedos serão ainda em torno da luz,
buscando a chama, o fruto,
a ferida que as tuas palavras
rasgaram no meu corpo
em volta dessa insuportável ternura.
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Canção sem fim

Algures no tempo a mulher cantava
talvez cantasse não mais que o paraíso,
a voz erguendo-se como um enigma
era uma voz que desconhecia a palavra,
ininteligível sonho de luz,
despertando a terra para a linguagem plena.

Era o canto sem tempo sem lugar
não mais que canto
entreabrindo-se como negra rosa
imponderável, convocando a chuva
irradiando a plenitude da música
dela saía o vento e a inocência
e tudo se deixava ferir pela sua candura,
uma outra espécie de morte na água.

Quando se toca
o som dessa canção queima
como ardem a inocência e o tempo puro,
adentra os sonhos e faz perdurar o domínio
desses obscuros animais que nos devoram o coração,
para logo o fazer renascer, muito além da terra,
uma febre de silêncio que nos afunda.

Olha: eu gostava de abrir esse lírio
anunciado na densidade do canto, muito para além
do azul cobalto que imaginamos para os céus de Tiepolo
e da luz das asas dos anjos,
esse canto, muito para além do muro da morte,
febre queimante, desdenhando o incêndio da vida.

Ela, mulher, cantando, alheia a toda a linguagem,
o corpo abrindo-se no enigma.

Eis que as vi, iluminadas no vento,
dançando em redor do fogo
essas crianças devastadas
com lágrimas que se confundiam com o riso.
Eram por todo o lado,
tremendo na fragilidade da noite,
duendes em desatino,
tão mudas e cintilantes,
caminhando na direcção do silêncio
e arrastando-se na terra como se dela
fossem a sua luz,
chafurdando no sangue das rosas.

Eram múltiplas, repetidas, silentes
sabiam-se imagens despidas,
à procura da voz de Deus,
atravessando a água dos sonhos,
escavando no rastro da lua
sonhando-se como animais de densos cascos
à espera da aurora, ali,
onde apenas era o fogo sem voz,
silêncio iracundo de Deus.

Durante muitos meses,
ainda antes de Abril, antes de tudo,
ficaram esses olhos cegos,
diante de tanta escuridão
e despiram-se, iniciando o canto
lento, lento, em redor do fogo.

E eis que esse canto puro,
ainda antes de Abril,
me fustigava a alma de dor.
É necessário caminhar por dentro da chuva negra.
É necessário talvez adormecer
como a mulher que se faz seiva
encerrada na árvore, os cabelos esvoaçantes
os olhos velados em acesa morte,
essa morte no meio da luz,
todo o tempo puro, já em meio de uma vida,
no país de um delírio incontido.

As crianças que cantam,
redescobrindo o poder do fogo
e inventando a alegria.
Eu sei. A minha alegria nasce da penumbra,
quando desejo abrir os dedos
e faço nascer as coisas
escrevendo-as no reverso da página.
Espero que elas despertem
que me acendam de novo o coração.

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Anjos amortalhados nas vértebras da noite
abrigados no enigmático sorriso
com que me afrontam. Esse um exercício
de exactidão numérica, rasando
o fogo na navalha da escuridão.

Anjos amortalhados no véu das asas
de olhos vazios, aves escuras desorbitadas,
pendurados como casacos amarrotados
nas luminosas entranhas de um animal.

Anjos amortalhados no redobrar do vazio
onde o tempo se enrola sobre si próprio
e se fecha numa pedra ou estrela coagulada.

Ouve. Toca a finados, o tempo todo
é por ti ainda, este requiem
sem que o reconheças, no inumerável
reflexo dos espelhos. Anjos espreitam-te.

E é onde não estou que se ergue, intangível
o canto puro, a voz que te enlaça
e te arrasta nas coxas da luxúria.

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a Daniel Faria

caminhar sobre as palavras
com os pulsos amarrados à vida,
ainda o medo, o tempo alucinado.

vem, repara na ternura
aqui sangra o silêncio da pedra
por entre os alvéolos da luz
respirando nos pulmões
de antigos afogados.

esta é a luz que nasce de ti. Do poema.
Azul, essa luz que se ergue dos mortos
e irradia em terra de ninguém.
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a Sylvia Plath

Devora-te a escuridão.
Percorrendo cada esquina, cada rua
e os cães conhecem-te o olhar
onde o líquido fel e o sabor a sangue
te inunda os lábios pelo despertar
de todas as manhãs.

Danças pela noite fora
como se o tempo te pertencesse
e lírios azuis florescem dos teus gestos,
tão absurdos e inúteis
como a tua valsa nos braços da noite.

Guardo a tua imagem nua e
etéreo corpo bebendo a luz,
tão perto da água e as estrelas reflectem
o teu improvável destino. Já não vês a vida.

O teu olhar sobrevoa a areia
do calcinado deserto. Não há esquecimento.
E são os dedos dóceis, embora firmes,
da tua solidão a escrever as cicatrizes
na tua pele os mapas da desolação,
onde retiras o alimento do teu destino.

Sem olhar para trás. E danças pela escuridão adentro
com vidros atravessando as pálpebras
do teu sono.

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As sílabas correm lentas, no dorso de mil águas. Há animais que nos espreitam por entre sombras, de lentas cifras, esquivos como deuses, dançantes no incêndio da folhagem, invisíveis e habitando desmesuradamente o mundo, dispersando-se em cada folha, cada grão de areia. Há animais cujo coração se faz avesso, no sangue das flores, transportando consigo a dor de já nada saber, que esperam que o corpo se aquiete nas sílabas da água, dormindo na pele de homens-pássaros, de mulheres que se fecham no próprio corpo, recusando os olhos. Há animais sonâmbulos que habitam as vísceras da luz, sem perceberem o inferno da beleza, navegando no inquieto dorso das águas, rasgando o tempo com os dentes, sacudindo a vida entre as suas garras. Animais para quem a quietude não existe, mas apenas essa vertigem do acontecer, procurando flores no abismo, saltando sem olhar, desdobrando-se, ampliando-se no inferno da beleza, adormecendo na voragem das sombras. Há animais.