Eis que as vi, iluminadas no vento, dançando em redor do fogo essas crianças devastadas com lágrimas que se confundiam com o riso. Eram por todo o lado, tremendo na fragilidade da noite, duendes em desatino, tão mudas e cintilantes, caminhando na direcção do silêncio e arrastando-se na terra como se dela fossem a sua luz, chafurdando no sangue das rosas. Eram múltiplas, repetidas, silentes sabiam-se imagens despidas, à procura da voz de Deus, atravessando a água dos sonhos, escavando no rastro da lua sonhando-se como animais de densos cascos à espera da aurora, ali, onde apenas era o fogo sem voz, silêncio iracundo de Deus. Durante muitos meses, ainda antes de Abril, antes de tudo, ficaram esses olhos cegos, diante de tanta escuridão e despiram-se, iniciando o canto lento, lento, em redor do fogo. E eis que esse canto puro, ainda antes de Abril, me fustigava a alma de dor. É necessário caminhar por dentro da chuva negra. É necessário talvez adormecer como a mulher que se faz seiva encerrada na árvore, os cabelos esvoaçantes os olhos velados em acesa morte, essa morte no meio da luz, todo o tempo puro, já em meio de uma vida, no país de um delírio incontido. As crianças que cantam, redescobrindo o poder do fogo e inventando a alegria. Eu sei. A minha alegria nasce da penumbra, quando desejo abrir os dedos e faço nascer as coisas escrevendo-as no reverso da página. Espero que elas despertem que me acendam de novo o coração. _____________________________ Anjos amortalhados nas vértebras da noite abrigados no enigmático sorriso com que me afrontam. Esse um exercício de exactidão numérica, rasando o fogo na navalha da escuridão. Anjos amortalhados no véu das asas de olhos vazios, aves escuras desorbitadas, pendurados como casacos amarrotados nas luminosas entranhas de um animal. Anjos amortalhados no redobrar do vazio onde o tempo se enrola sobre si próprio e se fecha numa pedra ou estrela coagulada. Ouve. Toca a finados, o tempo todo é por ti ainda, este requiem sem que o reconheças, no inumerável reflexo dos espelhos. Anjos espreitam-te. E é onde não estou que se ergue, intangível o canto puro, a voz que te enlaça e te arrasta nas coxas da luxúria. ____________________________ caminhar sobre as palavras com os pulsos amarrados à vida, ainda o medo, o tempo alucinado. vem, repara na ternura aqui sangra o silêncio da pedra por entre os alvéolos da luz respirando nos pulmões de antigos afogados. esta é a luz que nasce de ti. Do poema. Azul, essa luz que se ergue dos mortos e irradia em terra de ninguém. _________________________ Devora-te a escuridão. Percorrendo cada esquina, cada rua e os cães conhecem-te o olhar onde o líquido fel e o sabor a sangue te inunda os lábios pelo despertar de todas as manhãs. Danças pela noite fora como se o tempo te pertencesse e lírios azuis florescem dos teus gestos, tão absurdos e inúteis como a tua valsa nos braços da noite. Guardo a tua imagem nua e etéreo corpo bebendo a luz, tão perto da água e as estrelas reflectem o teu improvável destino. Já não vês a vida. O teu olhar sobrevoa a areia do calcinado deserto. Não há esquecimento. E são os dedos dóceis, embora firmes, da tua solidão a escrever as cicatrizes na tua pele os mapas da desolação, onde retiras o alimento do teu destino. Sem olhar para trás. E danças pela escuridão adentro com vidros atravessando as pálpebras do teu sono. __________________________ As sílabas correm lentas, no dorso de mil águas. Há animais que nos espreitam por entre sombras, de lentas cifras, esquivos como deuses, dançantes no incêndio da folhagem, invisíveis e habitando desmesuradamente o mundo, dispersando-se em cada folha, cada grão de areia. Há animais cujo coração se faz avesso, no sangue das flores, transportando consigo a dor de já nada saber, que esperam que o corpo se aquiete nas sílabas da água, dormindo na pele de homens-pássaros, de mulheres que se fecham no próprio corpo, recusando os olhos. Há animais sonâmbulos que habitam as vísceras da luz, sem perceberem o inferno da beleza, navegando no inquieto dorso das águas, rasgando o tempo com os dentes, sacudindo a vida entre as suas garras. Animais para quem a quietude não existe, mas apenas essa vertigem do acontecer, procurando flores no abismo, saltando sem olhar, desdobrando-se, ampliando-se no inferno da beleza, adormecendo na voragem das sombras. Há animais. |