TEMPLO

É uma coroa-de-espinhos
este retrato vivo da alma radioactiva.
Pequenas gotículas de sangue
transbordam da ossatura do grito
lampejo de som, como um náufrago
do cataclismo dos decibéis.
Tenho do coração uma ideia errada
de um mar de paixões.
No entanto, ele rodeia o tempo a prata
moldura de imagens sépia.
Elevo uma oração contemplativa
no grande espaço do granito divino
onde as nuvens constroem o algodão
das curas ansiadas.


O TEMPLO VERDE

Ao fim do inverno
há um sol esperto e frio
de tocaia à primavera.
Os abetos libertam nostalgias
nórdicas. Zumbem gelos
quebrados cristais.
Uma manhã emqueo silêncio era maior.

Percorre as margens o rio
itinerante. Comunicante de
notícias. Pilastras arvoram
frondosas ramagens onde o passado
recria seus arquétipos de memória.
E há vozes. A avó estendia, a sépia,
toalhas gulosas em 1927.
Fuste erecto, capitel verde
sustenta a catedral.

VOLTEI À CASA PEQUENA
Editorial Diferença, Leiria, 1999


iniciação

a canção oferece-se
ao primeiro alvor da palavra.
o canto canta na voz
de um muezim.
a voz canta a água inicial.
a língua mergulha no som,
leito comunicante.
a língua canta o pensamento.
a razão desvela-se
mergulha profunda.
e, no entanto, sendo precária
a língua é infinita


azul

dantes quando olhava o céu
via as aves como flechas entre as nuvens
um gato à janela, desejante
do repasto aéreo mirava melancólico.
eu fazia desenhos com a
linha do horizonte.
dantes, quando vivia dantes
contemplava o ozono plenamente azul

VOZ DESCONTÍNUA - ANTOLOGIA MÍNIMA
Black Sun Editores, Lisboa, 2002


kodak

ruíram pela certa os lambris, embora furtivos à rapidez da imagem.
fixou-se a frontaria na película franca: luz, sombra. o lesto pestanejar
do isomorfo olhar. ora cândida, ora rude, nada persuade sua alma
industrial. a câmara arde de imagens por saber e já sabidas, perscruta
as janelas de reflexos, mas resguarda os segredos da escuridão.
ruíram os lambris, embora furtando-se à imagem, sua instantânea indiscrição.

O NARRADOR/O MAR
Editorial Caminho, Lisboa, 1989


AÇÚCAR

expectativa: um pouco da angústia que o licorne
retém. os primeiros passos sobre um vasto átrio
onde se guardavam rosas mornas como lábios.
os mesmos que diziam: "é na alegria que se
constroem ninhos, aqueles que a vida vive
no conforto dos breves sentires, no amor a branda
safra das formigas, como o abraço com que me acolhes".
junto às rosas, um açucareiro azul com casinhas doces
e licor dentro, magenta, alguns duendes dormem
sobre cogumelos coloridos.
os primeiros passos foram de açúcar.

ESTAMOS MUITO LONGE MEU AMOR
DE ALCANÇAR A TERRA PROMETIDA
Átrio, Lisboa, 1992