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LUIZ VAZ DE CAMÕES
A instabilidade da Fortuna

 

A instabilidade da Fortuna,

os enganos suaves de Amor cego,

(suaves, se duraram longamente),

direi, por dar à vida algum sossego;

que, pois a grave pena me importuna,

importune meu canto a toda a gente.

E se o passado bem co mal presente

me endurece a voz no peito frio,

o grande desvario

dará de minha pena sinal certo,

que um erro em tantos erros é concerto.

E, pois nesta verdade me confio

(se verdade se achar no mal que digo),

aiba o mundo de Amor o desconcerto,

ue já co a Razão se fez amigo,

só por não deixar culpa sem castigo.

Já Amor fez leis, sem ter comigo algüa;

já se tornou, de cego, arrazoado,

só por usar comigo sem-razões.

E, se em algüa cousa o tenho errado,

com siso, grande dor não vi nenhüa,

nem ele deu sem erros afeições.

Mas, por usar de suas isenções,

buscou fingidas causas por matar-me;

que, para derrubar-me

no abismo infernal de meu tormento,

não foi soberbo nunca o pensamento,

nem pretende mais alto alevantar-me

daquilo que ele quis; e se ele ordena

que eu pague seu ousado atrevimento,

saiba que o mesmo Amor que me condena

me fez cair na culpa e mais na pena.

Os olhos que eu adoro, aquele dia

que desceram ao baixo pensamento,

n'alma os aposentei suavemente;

e pretendendo mais, como avarento,

o coração lhe dei por iguaria,

que a meu mandado tinha obediente.

Porém como ante si lhe foi presente

que entenderam o fim de meu desejo,

ou por outro despejo, que a língua

descobriu por desvario,

de sede morto estou posto num rio,

onde de meu serviço o fruto vejo;

mas logo se alça se a colhê-lo venho,

e foge-me a água, se beber porfio;

assi que em fome e sede me mantenho:

não tem Tântalo a pena que eu sustenho.

Despois que aquela em quem minh'alma vive

quis alcançar o baixo atrevimento,

debaixo deste engano a alcancei:

a nuvem do contino pensamento

ma afigurou nos braços, e assi a tive,

sonhando o que acordado desejei.

Porque a meu desejo me gabei

de alcançar um bem de tanto preço,

além do que padeço,

atado em üa roda estou penando,

que em mil mudanças me anda rodeando

onde, se a algum bem subo, logo deço,

e assi ganho e perco a confiança;

e assi me tem atado ua vingança,

como Ixião, tão firme na mudança.

Quando a vista suave e inumana

meu humano desejo, de atrevido,

cometeu, sem saber o que fazia

([que de sua beleza foi nacido}

o cego Moço, que, co a seta insana,

o pecado vingou desta ousadia),

e afora este mal que eu merecia,

me deu outra maneira de tormento:

que nunca o pensamento,

que sempre voa düa a outra parte,

destas entranhas tristes bem se farte,

imaginando sobre o famulento,

quanto mais come, mais está crecendo,

porque de atormentar-me não se aparte;

assi que para a pena estou vivendo,

sou outro novo Ticio, e não me entendo.

De vontades alheias, que roubava,

e que enganosamente recolhia

em meu fingido peito, me mantinha.

De maneira o engano lhe fingia,

que despois que a meu mando as sojugava,

com amor as matava, que eu não tinha.

Porém, logo o castigo que convinha

o vingativo Amor me fez sentir,

fazendo-me subir

ao monte da aspereza que em vós vejo,

co pesado penedo do desejo,

que do cume do bem me vai cair;

torno a subi-lo ao desejado assento,

torna a cair-me; embalde, enfim, pelejo.

Não te espantes, Sísifo, deste alento,

que as costas o subi do sofrimento.

Dest'arte o sumo bem se me oferece

ao faminto desejo, porque sinta

a perda de perdê-lo mais penosa.

Como o avaro a quem o sonho pinta

achar tesouro grande, onde enriquece

e farta sua sede cobiçosa.

e acordando com fúria pressurosa

vai cavar o lugar onde sonhava,

mas tudo o que buscava

lhe converte em carvão a desventura;

ali sua cobiça mais se apura,

por lhe faltar aquilo que esperava:

dest'arte Amor me faz perder o siso.

Porque aqueles que estão na noite escura,

nunca sentirão tanto o triste abiso,

se ignorarem o bem do Paraíso.

Canção, nô mais, que já não sei que digo;

mas porque a dor me seja menos forte,

diga o pregão a causa desta morte.

 
 
>>>>>>>>>>>>>>>>>>>LUIZ VAZ DE CAMÕES