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LUIZ VAZ DE CAMÕES
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Vinde cá, meu tão certo secretário dos queixumes que sempre ando fazendo, papel, com que a pena desafogo! As sem-razões digamos que, vivendo, me faz o inexorável e contrário Destino, surdo a lágrimas e a rogo. Deitemos água pouca em muito fogo; acenda-se com gritos um tormento que a todas as memórias seja estranho. Digamos mal tamanho a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento, a quem já muitas vezes o contei, tanto debalde como o conto agora; mas, já que para errores fui nascido, vir este a ser um deles não duvido. Que, pois já de acertar estou tão fora, não me culpem também, se nisto errei. Sequer este refúgio só terei: falar e errar sem culpa, livremente. Triste quem de tão pouco está contente! Já me desenganei que de queixar-me não se alcança remédio; mas, quem pena, forçado lhe é gritar, se a dor é grande. Gritarei; mas é débil e pequena a voz para poder desabafar-me, porque nem com gritar a dor se abrande. Quem me dará sequer que fora mande lágrimas e suspiros infinitos iguais ao mal que dentro n'alma mora? Mas quem pode algu'hora medir o mal com lágrimas ou gritos? Enfim, direi aquilo que me ensinam a ira, a mágoa, e delas a lembrança, que é outra dor por si, mais dura e firme. Chegai, desesperados, para ouvir-me, e fujam os que vivem de esperança ou aqueles que nela se imaginam, porque Amor e Fortuna determinam de lhe darem poder para entenderem, à medida dos males que tiverem. (Quando vim da materna sepultura de novo ao mundo, logo me fizeram Estrelas infelices obrigado; com ter livre alvedrio, mo não deram, que eu conheci mil vezes na ventura o milhor, e pior segui, forçado. E, para que o tormento conformado me dessem com a idade, quando abrisse inda minino, os olhos, brandamente, mandam que, diligente, um Minino sem olhos me ferisse. As lágrimas da infância já manavam com üa saudade namorada; o som dos gritos, que no berço dava, já como de suspiros me soava. Co a idade e Fado estava concertado; porque quando, por caso, me embalavam, se versos de Amor tristes me cantavam, logo m'adormecia a natureza, que tão conforme estava co a tristeza.) Foi minha ama ua fera, que o destino não quis que mulher fosse a que tivesse tal nome para mim; nem a haveria. Assi criado fui, porque bebesse o veneno amoroso, de minino, que na maior idade beberia, e, por costume, não me mataria. Logo então vi a imagem e semelhança daquela humana fera tão fermosa, suave e venenosa, que me criou aos peitos da esperança; de que eu vi despois o original, que de todos os grandes desatinos faz a culpa soberba e soberana. Parece-me que tinha forma humana, mas cintilava espíritos divinos. Um meneio e presença tinha tal que se vangloriava todo o mal na vista dela; a sombra, co a viveza, excedia o poder da Natureza. Que género tão novo de tormento teve Amor, que não fosse, não somente provado em mim, mas todo executado? Implacáveis durezas, que o fervente desejo, que dá força ao pensamento, tinham de seu propósito abalado, e de se ver, corrido e injuriado; a qui, sombras fantásticas, trazidas de algüas temerárias esperanças; as bem-aventuranças nelas também pintadas e fingidas; mas a dor do desprezo recebido, que a fantasia me desatinava, estes enganos punha em desconcerto; aqui, o adevinhar e o ter por certo que era verdade quanto adevinhava, e logo o desdizer-me, de corrido; dar às cousas que via outro sentido, e para tudo, enfim, buscar razões; mas eram muitas mais as sem-razões. Não sei como sabia estar roubando cos raios as entranhas, que fugiam por ela, pelos olhos sutilmente! Pouco a pouco invencíveis me saiam, bem como do véu húmido exalando está o sutil humor o Sol ardente. Enfim, o gesto puro e transparente, para quem fica baixo e sem valia este nome de belo e de fermoso; o doce e piadoso mover de olhos, que as almas suspendia foram as ervas mágicas, que o Céu me fez beber; as quais, por longos anos, noutro ser me tiveram transformado, e tão contente de me ver trocado que as mágoas enganava cos enganos; e diante dos olhos punha o véu que me encobrisse o mal, que assi creceu, como quem com afagos se criava daquele para quem crecido estava]. Pois quem pode pintar a vida ausente, c om um descontentar-me quanto via, e aquele estar tão longe donde estava, o falar, sem saber o que dezia, andar, sem ver por onde, e juntamente suspirar sem saber que suspirava? Pois quando aquele mal me atormentava e aquela dor que das tartáreas águas saiu ao mundo, e mais que todas dói, que tantas vezes sói duas iras tornar em brandas mágoas; agora, co furor da mágoa irado, querer e não querer deixar de amar, e mudar noutra parte por vingança o desejo privado de esperança, que tão mal se podia já mudar; agora, a saudade do passado tormento, puro, doce e magoado, fazia converter estes furores em magoadas lágrimas de amores. Que desculpas comigo que buscava quando o suave Amor me não sofria culpa na cousa amada, e tão amada! enfim, eram remédios que fingia o medo do tormento que ensinava a vida a sustentar-se, de enganada. Nisto ua parte dela foi passada, na qual se tive algum contentamento breve, imperfeito, tímido, indecente, não foi senão semente de longo e amaríssimo tormento. Este curso contino de tristeza, estes passos tão vãmente espalhados, me foram apagando o ardente gosto, que tão de siso n'alma tinha posto, daqueles pensamentos namorados em que eu criei a tenta natureza, que do longo costume da aspereza, contra quem força humana não resiste, se converteu no gosto de ser triste. Dest'arte a vida noutra fui trocando; eu não, mas o destino fero, irado, que eu ainda assi por outra não trocara. Fez-me deixar o pátrio ninho amado, passando o longo mar, que ameaçando tantas vezes me esteve a vida cara. Agora, exprimentando a fúria rara de Marte, que cos olhos quis que logo visse e tocasse o acerbo fruto seu (e neste escudo meu a pintura verão do infesto fogo); agora, peregrino vago e errante, vendo nações, linguages e costumes, Céus vários, qualidades diferentes, só por seguir com passos diligentes a ti, Fortuna injusta, que consumes as idades, levando-lhe diante üa esperança em vista de diamante, mas quando das mãos cai se conhece que é frágil vidro aquilo que aparece. A piadade humana me faltava, a gente amiga já contrária via, no primeiro perigo; e no segundo, terra em que pôr os pés me falecia, ar para respirar se me negava, e faltavam-me, enfim, o tempo e o mundo. Que segredo tão árduo e tão profundo: nascer para viver, e para a vida faltar-me quanto o mundo tem para ela! E não poder perdê-la, estando tantas vezes já perdida! Enfim, não houve transe de fortuna, nem perigos, nem casos duvidosos, injustiças daqueles, que o confuso regimento do mundo, antigo abuso, faz sobre os outros homens poderosos, que eu não passasse, atado à grã coluna do sofrimento meu, que a importuna perseguição de males em pedaços mil vezes fez, à força de seus braços. Não conto tantos males como aquele que, despois da tormenta procelosa, os casos dela conta em porto ledo; que ainda agora a Fortuna flutuosa a tamanhas misérias me compele, que de dar um só passo tenho medo. Já de mal que me venha não me arredo, nem bem que me faleça já pretendo, que para mim não val astúcia humana; de força soberana, la Providência, enfim, divina pendo. Isto que cuido e vejo, às vezes tomo para consolação de tantos danos. Mas a fraqueza humana, quando lança os olhos no que corre, e não alcança senão memória dos passados anos, as águas que então bebo, e o pão que como, lágrimas tristes são, que eu nunca domo senão com fabricar na fantasia fantásticas pinturas de alegria. Que se possível fosse, que tornasse o tempo para trás, como a memória, pelos vestígios da primeira idade, e de novo tecendo a antiga história de meus doces errores, me levasse pelas flores que vi da mocidade; e a lembrança da longa saudade então fosse maior contentamento, vendo a conversação leda e suave, onde üa e outra chave esteve de meu novo pensamento, os campos, as passadas, os sinais, a fermosura, os olhos, a brandura, a graça, a mansidão, a cortesia, a sincera amizade, que desvia toda a baixa tenção, terrena, impura, como a qual outra algüa não vi mais... Ah! vês memórias, onde me levais o fraco coração, que ainda não posso domar este tão vão desejo vosso? Nô mais, Canção, nô mais; que irei falando, sem o sentir, mil anos. E se acaso te culparem de larga e de pesada, não pode ser (lhe dize) limitada a água do mar em tão pequeno vaso. Nem eu delicadezas vou cantando co gosto do louvor, mas explicando puras verdades já por mim passadas. Oxalá foram fábulas sonhadas! |
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