LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO TERCEIRO
 

33
«Mas já o Príncipe claro o vencimento
Do padrasto e da inica mãe levava;
Já lhe obedece a terra, num momento,
Que primeiro contra ele pelejava;
Porém, vencido de ira o entendimento,
A mãe em ferros ásperos atava;
Mas de Deus foi vingada em tempo breve.
Tanta veneração aos pais se deve!

34
«Eis se ajunta o soberbo Castelhano
Pera vingar a injúria de Teresa,
Contra o, tão raro em gente, Lusitano,
A quem nenhum trabalho agrava ou pesa.
Em batalha cruel, o peito humano,
Ajudado da Angélica defesa,
Não só contra tal fúria se sustenta,
Mas o inimigo aspérrimo afugenta.

35
«Não passa muito tempo, quando o forte
Príncipe em Guimarães está cercado
De infinito poder, que desta sorte
Foi refazer-se o imigo magoado;
Mas, com se oferecer à dura morte
O fiel Egas amo, foi livrado;
Que, de outra arte, pudera ser perdido,
Segundo estava mal apercebido.

36
«Mas o leal vassalo, conhecendo
Que seu senhor não tinha resistência,
Se vai ao Castelhano, prometendo
Que ele faria dar-lhe obediência.
Levanta o inimigo o cerco horrendo,
Fiado na promessa e consciência
De Egas Moniz; mas não consente o peito
Do moço ilustre a outrem ser sujeito.

37
«Chegado tinha o prazo prometido,
Em que o Rei Castelhano já aguardava
Que o Príncipe, a seu mando sometido,
Lhe desse a obediência que esperava.
Vendo Egas que ficava fementido
O que dele Castela não cuidava,
Determina de dar a doce vida
A troco da palavra mal cumprida.

38
«E com seus filhos e mulher se parte
A alevantar co eles a fiança,
Descalços e despidos, de tal arte
Que mais move a piedade que a vingança.
– «Se pretendes, Rei alto, de vingar-te
De minha temerária confiança
(Dizia) eis aqui venho oferecido
A te pagar co a vida o prometido.

39
«Vês aqui trago as vidas inocentes
Dos filhos sem pecado e da consorte;
Se a peitos generosos e excelentes
Dos fracos satisfaz a fera morte,
Vês aqui as mãos e a língua delinquentes:
Nelas sós exprimenta toda sorte
De tormentos, de mortes, pelo estilo
De Sínis e do touro de Perilo.»

40
«Qual diante do algoz o condenado,
Que já na vida a morte tem bebido,
Põe no cepo a garganta e já entregado
Espera pelo golpe tão temido:
Tal diante do Príncipe indinado
Egas estava, a tudo oferecido.
Mas o Rei vendo a estranha lealdade,
Mais pôde, enfim, que a ira, a piedade.

41
«Ó grão fidelidade Portuguesa
De vassalo, que a tanto se obrigava!
Que mais o Persa fez naquela empresa
Onde rosto e narizes se cortava?
Do que ao grande Dario tanto pesa,
Que mil vezes dizendo suspirava
Que mais o seu Zopiro são prezara
Que vinte Babilónias que tomara.

42
«Mas já o Príncipe Afonso aparelhava
O Lusitano exército ditoso,
Contra o Mouro que as terras habitava
De além do claro Tejo deleitoso;
Já no campo de Ourique se assentava
O arraial soberbo e belicoso,
Defronte do inimigo Sarraceno,
Posto que em força e gente tão pequeno,

43
«Em nenhũa outra cousa confiado,
Senão no sumo Deus que o Céu regia,
Que tão pouco era o povo bautizado,
Que, pera um só, cem Mouros haveria.
Julga qualquer juízo sossegado
Por mais temeridade que ousadia
Cometer um tamanho ajuntamento,
Que pera um cavaleiro houvesse cento.