23
Aquela que, das fúrias de Atamante
Fugindo, veio a ter divino estado,
Consigo traz o filho, belo infante,
No número dos Deuses relatado;
Pela praia brincando vem, diante,
Com as lindas conchinhas, que o salgado
Mar sempre cria; e às vezes pela areia
No colo o toma a bela Panopeia.
24
E o Deus que foi num tempo corpo humano
E por virtude da erva poderosa,
Foi convertido em pexe, e deste dano
Lhe resultou Deidade gloriosa,
Inda vinha chorando o feio engano
Que Circes tinha usado co a fermosa
Scila, que ele ama, desta sendo amado,
Que a mais obriga amor mal empregado.
25
Já finalmente todos assentados
Na grande sala, nobre e divinal,
As Deusas em riquíssimos estrados,
Os Deuses em cadeiras de cristal,
Foram todos do Padre agasalhados,
Que co Tebano tinha assento igual;
De fumos enche a casa a rica massa
Que no mar nace e Arábia em cheiro passa.
26
Estando sossegado já o tumulto
Dos Deuses e de seus recebimentos,
Começa a descobrir do peito oculto
A causa o Tioneu de seus tormentos;
Um pouco carregando-se no vulto,
Dando mostra de grandes sentimentos,
Só por dar aos de Luso triste morte
Co ferro alheio, fala desta sorte:
27
– «Príncipe, que de juro senhoreias,
Dum Pólo ao outro Pólo, o mar irado,
Tu, que as gentes da Terra toda enfreias,
Que não passem o termo limitado;
E tu, padre Oceano, que rodeias
O Mundo universal e o tens cercado,
E com justo decreto assi permites
Que dentro vivam só de seus limites;
28
«E vós, Deuses do Mar, que não sofreis
Injúria algũa em vosso reino grande,
Que com castigo igual vos não vingueis
De quem quer que por ele corra e ande:
Que descuido foi este em que viveis?
Quem pode ser que tanto vos abrande
Os peitos, com razão endurecidos
Contra os humanos, fracos e atrevidos?
29
«Vistes que, com grandíssima ousadia,
Foram já cometer o Céu supremo;
Vistes aquela insana fantasia
De tentarem o mar com vela e remo;
Vistes, e ainda vemos cada dia,
Soberbas e insolências tais, que temo
Que do Mar e do Céu, em poucos anos,
Venham Deuses a ser, e nós, humanos.
30
«Vedes agora a fraca geração
Que dum vassalo meu o nome toma,
Com soberbo e altivo coração
A vós e a mi e o mundo todo doma.
Vedes, o vosso mar cortando vão,
Mais do que fez a gente alta de Roma;
Vedes, o vosso reino devassando,
Os vossos estatutos vão quebrando.
31
«Eu vi que contra os Mínias, que primeiro
No vosso reino este caminho abriram,
Bóreas, injuriado, e o companheiro
Áquilo e os outros todos resistiram.
Pois se do ajuntamento aventureiro
Os ventos esta injúria assi sentiram,
Vós, a quem mais compete esta vingança,
Que esperais? Porque a pondes em tardança?
32
«E não consinto, Deuses, que cuideis
Que por amor de vós do Céu deci,
Nem da mágoa da injúria que sofreis,
Mas da que se me faz também a mi;
Que aquelas grandes honras que sabeis
Que no mundo ganhei, quando venci
As terras Indianas do Oriente,
Todas vejo abatidas desta gente.
33
«Que o grão Senhor e Fados, que destinam,
Como lhe bem parece, o baxo mundo,
Famas, mores que nunca, determinam
De dar a estes barões no mar profundo.
Aqui vereis, ó Deuses, como ensinam
O mal também a Deuses; que, a segundo
Se vê, ninguém já tem menos valia
Que quem com mais razão valer devia. |