LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO SEGUNDO
 
66
Neste tempo que as âncoras levavam,
Na sombra escura os Mouros escondidos
Mansamente as amarras lhe cortavam,
Por serem, dando à costa, destruídos;
Mas com vista de linces vigiavam
Os Portugueses, sempre apercebidos;
Eles, como acordados os sentiram,
Voando, e não remando, lhe fugiram.

67
Mas já as agudas proas apartando
Iam as vias húmidas de argento;
Assopra-lhe galerno o vento e brando,
Com suave e seguro movimento.
Nos perigos passados vão falando,
Que mal se perderão do pensamento
Os casos grandes, donde em tanto aperto
A vida em salvo escapa por acerto.

68
Tinha ũa volta dado o Sol ardente
E noutra começava, quando viram
Ao longe dous navios, brandamente
Cos ventos navegando, que respiram.
Porque haviam de ser da Maura gente,
Pera eles arribando, as velas viram.
Um, de temor do mal que arreceava,
Por se salvar a gente à costa dava.

69
Não é o outro que fica tão manhoso,
Mas nas mãos vai cair do Lusitano,
Sem o rigor de Marte furioso
E sem a fúria horrenda de Vulcano;
Que, como fosse débil e medroso
Da pouca gente o fraco peito humano,
Não teve resistência; e, se a tivera,
Mais dano, resistindo, recebera.

70
E como o Gama muito desejasse
Piloto pera a Índia, que buscava,
Cuidou que entre estes Mouros o tomasse,
Mas não lhe sucedeu como cuidava;
Que nenhum deles há que lhe ensinasse
A que parte dos céus a Índia estava;
Porém dizem-lhe todos que tem perto
Melinde, onde acharão piloto certo.

71
Louvam do Rei os Mouros a bondade,
Condição liberal, sincero peito,
Magnificência grande e humanidade,
Com partes de grandíssimo respeito.
O Capitão o assela por verdade,
Porque já lho dissera deste jeito
O Cileneu em sonhos; e partia
Pera onde o sonho e o Mouro lhe dizia.

72
Era no tempo alegre, quando entrava
No roubador de Europa a luz Febeia,
Quando um e o outro corno lhe aquentava,
E Flora derramava o de Amalteia;
A memória do dia renovava
O pres[s]uroso Sol, que o Céu rodeia,
Em que Aquele a quem tudo está sujeito
O selo pôs a quanto tinha feito;

73
Quando chegava a frota àquela parte
Onde o Reino Melinde já se via,
De toldos adornada e leda de arte
Que bem mostra estimar o Santo dia.
Treme a bandeira, voa o estandarte,
A cor purpúrea ao longe aparecia;
Soam os atambores e pandeiros;
E assi entravam ledos e guerreiros.

74
Enche-se toda a praia Melindana
Da gente que vem ver a leda armada,
Gente mais verdadeira e mais humana
Que toda a doutra terra atrás deixada.
Surge diante a frota Lusitana,
Pega no fundo a âncora pesada;
Mandam fora um dos Mouros que tomaram,
Por quem sua vinda ao Rei manifestaram.

75
O Rei, que já sabia da nobreza
Que tanto os Portugueses engrandece,
Tomarem o seu porto tanto preza
Quanto a gente fortíssima merece;
E com verdadeiro ânimo e pureza,
Que os peitos generosos ennobrece,
Lhe manda rogar muito que saíssem
Pera que de seus reinos se servissem.

76
São oferecimentos verdadeiros
E palavras sinceras, não dobradas,
As que o Rei manda aos nobres cavaleiros
Que tanto mar e terras têm passadas.
Manda-lhe mais lanígeros carneiros
E galinhas domésticas cevadas,
Com as frutas que antão na terra havia;
E a vontade à dádiva excedia.